Carnaval no Abismo - Capítulo 16
Por fim, depois de tanto esforço, claro que conseguimos alcançar o nosso objetivo. Leógenes realmente voltou a si, mas foi preciso mais algumas horinhas para acalmá-lo e trazê-lo de volta à realidade. O engraçado é que, desde então, toda a fúria dele tem sido direcionada apenas a mim, sendo que não fiz nada! Dá pra acreditar em tamanha ingratidão?!
— Oh, céus… Ninguém vai querer casar comigo agora. — Ele esconde o rosto entre os joelhos, sentado sobre as cinzas das notas de duzentos. — Preciso de uma consulta psiquiátrica, urgente…
— Ei, garoto, seja macho! Não está feliz por termos te libertado?! Por que não nos elogia pelo bom trabalho em vez de ficar reclamando sem parar?! — Gritei, zangada.
— Poderia até agradecer se não estivesse com a sensação de que fui profundamente corrompido! Roubaram… a minha pureza! — Puxou os cabelos com força. — Além do mais, por que logo eu tive que passar por isso?!
— Ora, não é óbvio? Se vamos fazer um golpe de estado, precisamos daquele bom e velho bode expiatório para jogar no poder. E, de todos do Terceiro Ano, você é o que melhor se encaixa no cargo. Não que eu estivesse com vontade de me vingar de você por ter me perseguido e atrapalhado todos os meus momentos de vadiagem, nem nada do tipo.
— Bem que podia tentar fazer um pouco mais de esforço pra disfarçar um ataque tão pessoal, sua maluca! Espero que esteja preparada para arcar com as devidas consequências! A pena de cárcere privado somado a de tortura física e psicológica será o menor dos seus problemas! Deixarei que apodreça na cadeia!
Nossa, mas que molequinho ranzinza…
— Então, senhora. Você disse que precisava de outra pessoa para virarmos o jogo contra Antony e Hillary. Agora que o temos, qual é o plano? — Keyla perguntou.
— Plano? — Dei uma risadinha forçada e cocei a nuca. — Não cheguei a pensar tão à frente, sinceramente… Que tal bolarmos um agora, rapidinho?
Meus dois alunos desabaram no chão ao mesmo tempo, perplexos. E, quando se levantaram, marcharam em silêncio rumo a bancada do horror.
— Ué?! O que foi?! Falei alguma coisa de errado?! Por que estão pegando esses objetos de tortura?! Ei, respondam-me! O que significa todo esse fogo saindo da boca de vocês?!
Por algum motivo, acho que estou bem próxima de ser brutalmente chacinada. Mas o que exatamente fiz de errado para merecer isso?! Respondam-me! Não é justo eu morrer sem saber!
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A verdade é que ainda não formulei um plano de contra-ataque porque estou estagnada. Não saber exatamente quais são as motivações dos irmãos Vasconcelos para estarem fazendo tudo isso tem me causado uma inquietação que me impede de pensar racionalmente. Sou incapaz de enxergar um caminho simples para trilhar.
— Talvez, eu esteja precisando de um pouco de ar fresco para clarear a mente.
É o começo da madrugada. Keyla e Leógenes foram dormir cedo, exaustos, motivo para eu não os incomodar mesmo necessitando de companhia nessa busca por respostas.
— Depois de um dia tão barulhento, o silêncio da noite parece bem melancólico, não?
Joguei uma lata vazia de energético na lixeira e suspirei.
Quando foi que o meu coração adquiriu essa habilidade idiota de ficar apertado sempre que estou sozinha? Eu não costumava viver bem e feliz sem ninguém por perto? Quando isso mudou? E por que mudou?
Sentindo-me um tanto incomodada, peguei a chave do carro e caí na estrada. Não que eu tenha esperanças de encontrar mais pessoas por aí. Apenas quero divagar um pouco, não pensar em nada de relevante. Ouvir alguma playlist no aleatório, queimar combustível e deixar que os meus instintos me guiem até uma resposta.
E foi assim que, num estado de entorpecimento, cheguei à mansão dos Vasconcelos. Casa que ocupa praticamente uma quadra inteira no centro de Taguatinga, uma das regiões mais nobres do Distrito Federal. Estou surpresa por ainda lembrar o endereço já que li a ficha dos gêmeos apenas uma vez.
— Talvez, seja a mão divina agindo? — Dei uma risadinha. — Acho que não vai ser difícil invadir este lugar. Principalmente sabendo que não existem pessoas ou cachorros violentos me aguardando no outro lado.
Escalei o muro alto, tomando cuidado com a cerca no topo, e pousei no quintal. Bastou apenas um passo para o alarme começar a gritar feito maluco.
— Bem, não que isso faça alguma diferença numa vizinhança sem ouvidos para escutar. Porém, tanta barulheira não deixa de ser um grande incômodo.
Para abrir a monumental porta da frente, precisei apenas de algumas marteladas na fechadura. Após entrar, não hesitei antes de ligar todas as luzes possíveis.
— Hum… É isso que os riquinhos chamam de “hall de entrada”? — Levantei uma sobrancelha. — Mas era mesmo para estar tão vazio assim?
Quase não existem móveis aqui. Com exceção do sofá de três lugares e uma mesa de centro, não há mais nada. Onde estão as estantes de madeira maciça, os gigantescos retratos de família nas paredes ou a televisão de todas as polegadas para as visitas sentirem inveja dos donos da casa?
A cozinha está tão vazia quanto. Tem apenas uma geladeira, praticamente sem mantimentos, pia com armário e nada mais ocupando o gigantesco espaço.
— Nem mesmo uma mesa, eim? Eles comiam nos quartos, por acaso? Se bem que nos últimos anos, o estranho seria a família se reunir pra jantar…
Enquanto continuo o meu turismo, tento reconstruir o dia a dia da família Vasconcelos na minha mente. Apenas três pessoas viviam nesta casa. O pai empresário e seus dois filhos. Digo isso com certo nível de certeza porque não encontrei pistas da existência de uma mulher adulta ou sequer empregados. Apesar das coisas não estarem muito desorganizadas, também não estão impecáveis, mostrando que a casa não costumava ser arrumada com frequência.
— Uma família quebrada no meio? Ou, quem sabe, a senhora Vasconcelos não pertencia mais ao nosso mundo?
Não fiquei surpresa ao descobrir que Antony e Hillary dividiam o mesmo quarto mesmo em uma mansão com vários cômodos vazios.
— Bem, este é, com certeza, o lugar mais vivo que vi até agora.
Cada um deles tem a sua própria escrivaninha com notebook, camas arrumadinhas e um grande tapete felpudo no chão. Até seria um exemplo de quarto para se esfregar na cara de vários adolescentes arruaceiros por aí se não fosse aquela coleção requintada de coleiras, correntes e chicotes numa estante. Parece até uma exposição de arte bizarra.
— Acho que o papai sabia do fetiche estranho deles, eim? Por estar tudo exposto desta maneira, quem sabe, até apoiasse?
Aproveitando essa deixa, saí e fui até o local de descanso do dono da casa. Assim que abri a porta, meu corpo paralisou de susto.
— Mas que diabos…?!
Para se ter uma pequena noção de tamanho, o lugar deve ter por volta de trinta metros quadrados. No entanto, existe apenas uma cama de casal ocupando todo este espaço. Todas as quatro paredes são brancas e secas, sem nenhum adorno colorido para dar vida. No chão, nem mesmo um simples tapete para contrastar com o porcelanato branco e vazio.
Eu tinha esperanças de ver algo diferente no closet, mas a minha estranheza apenas aumentou ao abri-lo. Está repleto de ternos nos cabides. Mais precisamente, o mesmo modelo de terno. Várias calças pretas, impecavelmente organizadas, gravatas, meias e alguns pares de sapatos sociais. O pai Vasconcelos não tem uma roupa casual sequer para vestir.
É mesmo possível que uma pessoa consiga usar exatamente a mesma combinação de vestimentas todos os dias? Para trabalhar, ir ao mercado ou apenas ficar em casa?
— Ele era uma máquina? — Retorno para o quarto e deito na cama. — Melhor, sequer estava vivo?
Enquanto enrolo uma mecha dos meus cabelos com o dedo indicador, começo a unir as peças que recolhi durante o meu passeio. Imediatamente, sou atingida por uma forte vertigem que teria me feito cair de joelhos caso estivesse de pé. Aguento firme e chego a uma resposta que me causou um frio na espinha.
— Só pode ser isso. — Respiro fundo enquanto olho fixamente para o teto. — Espero que eu esteja completamente errada, pois se não estiver, aquelas crianças entrarão na minha lista de pessoas mais cruéis que já conheci.
Permaneço deitada por mais alguns minutos até a tontura diminuir. Depois, retorno ao quarto dos gêmeos e reviro tudo em busca de alguma prova do passado deles. Esvazio as escrivaninhas, os armários e os guarda-roupas, mas não encontro nada. Antes de desistir, resolvo olhar debaixo dos colchões. No da garota, apenas sacolas vazias de papel, mas no de Antony…
— Tá, talvez seja aquilo, você sabe…
Para a minha surpresa, não é. O que encontrei num envelope velho e maltratado é uma única foto. Uma selfie que mostra versões infantis dos irmãos e de outras nove crianças que não reconheço. Estão todos sorrindo, parecendo verdadeiramente felizes enquanto se divertem com a câmera.
— Isso é sério? — O que mais me chamou a atenção foi o local capturado na foto. — Por que vocês estavam nesse lugar?
É um cenário que só esquecerei se arrancarem o meu cérebro. Um dos locais que frequentemente assombra os meus pesadelos.
— Ugh…
A vertigem retorna, forçando-me a recuar até encontrar uma parede para poder apoiar o meu corpo. Em seguida, levo uma mão à boca a fim de conter o vômito que tenta escapar, com sucesso.
Um minuto depois, assim que retomo o controle da minha mente anestesiada, pego o meu celular. Apesar de ser quase três da madrugada, não hesito antes de ligar para um certo número da minha agenda. Após o caso de Juliana, a diretora praticamente me obrigou a pegar o contato de todos os alunos para o caso de alguma emergência.
— E pensar que na hora duvidei de que precisaria usá-los algum dia.
Tocou apenas três vezes antes de atender.
— Que surpresa, senhora. Mas por quê? — Antony falou com o tom de alguém que acabou de acordar.
— Quero que me encontre na quadra de natação da escola em uma hora. Mas vá sozinho, tá?
— Será que não entende o quanto queremos te capturar? Acha mesmo que farei tudo o que está pedindo tão facilmente?
— Fará sim. E quer saber o motivo? Porque eu preciso bater um papo com você sobre o seu tempo no miserável Lar das Crianças Felizes. Ah, e só para que tenha uma leve noção do que está acontecendo, estou na sua casa neste exato momento com uma certa fotografia em mãos. É bem limpinho o lugar, gostei bastante. Já o alarme é de péssima qualidade. Foi bem fácil desarmá-lo. Aconselho que compre um melhor na próxima vez.
Antony pareceu ter petrificado no outro lado da linha, precisando de vários segundos para formular sua próxima frase.
— Quanto você sabe?
— Muita coisa, mas não tenho provas de nada. Bem, não que provas sirvam para algo ultimamente. Enfim, estarei esperando ansiosa por mais detalhes dos crimes que você e sua irmã cometeram. Te vejo daqui a pouco.
Desliguei sem esperar por uma resposta.
— Oh, céus…
Estou tremendo.
Isso é raiva? Do que aquelas crianças fizeram? De mim mesma por fraquejar diante de uma simples foto?
Aah… O demônio podre do meu passado está gargalhando de dentro do baú onde está trancado, feliz por conseguir me atormentar novamente depois de tanto tempo.
— Essa situação está ficando uma droga, sinceramente.
Apenas agora notei que um grande sorriso ficou estampado no meu rosto molhado por suor frio durante todo esse momento de reflexão.