Carnaval no Abismo - Capítulo 12
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- Capítulo 12 - A Complexidade das Extremas Direita/Esquerda (4)
Após algum tempo caminhando pelo fantasmagórico Isana Ágora, chegamos ao refeitório principal, uma requintada construção com grandes janelas de vidro translúcido. Foi através de uma delas que conseguimos espiar o que estava acontecendo no lado de dentro.
Vejamos, todos com exceção de Augusto, ao meu lado, e a diretora, viajando, estão lá. Numa reprise da cena que vivenciei mais cedo, Antony está bloqueando a única rota de fuga enquanto Hillary se encontra alguns passos mais à frente, encarando a multidão.
Cuidadosamente, aproximei o meu ouvido do vidro para poder escutar melhor o que eles estão falando.
— Como sabem, foi decidido que a partir de hoje, todos vocês estão sob a minha supervisão. — Antony anunciou. — Mas antes, precisamos esclarecer algumas coisas para que tudo possa funcionar corretamente. Primeiramente, gostaria de saber se vocês entendem qual é a primeira coisa que devemos estabelecer para manter a paz e a ordem dentro dessa comunidade.
— Seriam as “leis”, estou certa? — Lorena falou.
— Precisamente. Sem elas, estaremos destinados ao fracasso antes mesmo de começarmos. Para compreender a importância das leis, é só imaginar um mundo onde crimes possam ser praticados livremente, sem qualquer espécie de punição para os criminosos. É mesmo possível existir o conceito de “paraíso” em um lugar assim? — Fez sinal de negativo com o dedo indicador. — Até mesmo os bárbaros da idade das trevas tinham uma hierarquia e regras que deveriam ser obedecidas a todo custo.
Apesar do seu tom de voz gentil não vacilar por um segundo sequer, tudo o que Antony fala soa como uma ameaça, motivo para todos os seus colegas estarem com a guarda alta.
— Esse foi o motivo para ter nos reunido aqui? Uma aula? — O também sempre calmo, Leógenes, deu um passo à frente. — Todos nós possuímos cultura, meu caro. Já aprendemos o que é certo e errado há muito tempo. Então, não precisamos de toda essa lição de moral. Ou está achando que algum de nós cruzaria essa linha sem mais nem menos?
— E por que não cruzaria? — Foi a vez de Hillary entrar na discussão. — Olhe atentamente para a realidade onde você está agora. Não temos policiais, juízes ou advogados. Logo, não existem regras ou as morais do velho mundo que impedem um pecador de pecar.
— Deixe-me ver se eu entendi direito. Você está insinuando que qualquer um de nós pode se tornar um criminoso da noite para o dia? — Lorena questionou.
Até a mais compassível de todos do terceiro ano está claramente irritada com essas acusações.
— Sim, exatamente isso. — A garota de cabelos brancos respondeu secamente. — Representante, por mais que você afirme a ideia de que confia cegamente nos seus colegas, precisa admitir que todos eles possuem um lado obscuro escondido. Seja para não magoar alguém ou apenas para não mofarem na cadeia junto com outros bandidos. E esse lado podre pode escapar a qualquer momento agora que não existe nada que o mantenha sob controle.
— Você está exagerando.
— Pare de ser ingênua! — Hillary levantou a voz. — Hipoteticamente falando, como você reagiria se eu ferisse Juliana gravemente agora mesmo, sem nenhum motivo relevante, apenas por que me deu vontade? Conseguiria me perdoar? Ansiaria para que as consequências dos meus atos recaíssem sobre mim?
Lorena perdeu a fala por alguns segundos, e como não consegue fugir da sua própria honestidade, respondeu:
— Eu, provavelmente, apoiaria que você fosse mandada para bem longe de todos nós.
— Isso! Entendem agora? As leis são como armas carregadas apontando para as nossas cabeças, programadas para dispararem assim que fizermos algo que não é considerado “moral” para os padrões sociais. — Enquanto fala, Antony imitou o gesto da arma. — Mas é aí que entramos em outra parte complicada. Vocês acreditam que essa bala atinge todas as pessoas de maneira igual, sem distinção de idade, cor, gênero ou dinheiro na conta do banco?
Quem respondeu foi sua irmã.
— Não, obviamente. Em toda a história da humanidade, o paraíso só existiu em contos de fadas. Para termos uma noção do tamanho desse desastre, basta abrirmos os livros de história. Genocídios, doenças, desmatamentos, poluição, guerras e mais guerras. Até mesmo na sociedade moderna, onde tínhamos uma educação boa na medida do possível e a menor taxa de analfabetismo já registrada, nosso país ainda possuía uma das maiores taxas de homicídios do planeta. — Suspirou. — Mas isso não faz sentido, faz? O Brasil era um país rico, não era? Será que as nossas leis não estavam sendo aplicadas corretamente? Era culpa de fazermos parte de um sistema quebrado e facilmente corrompido pela corrupção? — Deu de ombros e balançou a cabeça em negativa. — Não, não. Nada disso. Só me vem à cabeça que nós somos criaturas malignas até o DNA, incapazes de trazer o paraíso das fantasias para o mundo real.
— Respeito os seus pensamentos, sinceramente. Só não compreendo o porquê de estar generalizando. — Foi a vez de Juliana dar a sua opinião. — Concordo que muitos quebravam as leis apenas porque gostavam disso. Mas e quanto a todos os outros que respeitavam, lutavam e derramavam seus suores para fazerem do mundo um lugar melhor? Também eram criaturas malignas?
— Talvez não. Porém, do que adianta uma única pessoa jogar o lixo na lixeira enquanto outras vinte não fazem o mesmo? As ruas só tendem a ficar mais e mais sujas com o passar do tempo. — Hillary agora usa um tom de voz triste. — Eu não estaria falando essas coisas se ainda tivesse esperanças de que as coisas pudessem mudar no futuro. No entanto, a corrupção é algo que nunca vai deixar de existir. Igualdade de gêneros? Fim da criminalidade? Extinção de todos os tipos de preconceito? Se continuarmos seguindo pelo mesmo caminho de antigamente, esses sonhos só se tornarão realidade após todos nós sermos varridos da face da Terra.
Foi a vez de Juliana recuar. Como alguém que conhece bem a crueldade dos humanos, não se sente no direito de condenar a opinião da sua colega de classe. Muito pelo contrário, em vários trechos, seus pontos de vista se assemelham.
Entretanto, o mesmo não vale para Leógenes.
— Se apenas as leis que vocês pretendem criar não serão o suficiente, o que planejam fazer de diferente para que essa “nova sociedade” funcione?
Antony tomou a frente da sua irmã.
— Antes de responder a sua pergunta, gostaria que respondesse a minha primeiro. Se agora mesmo eu criasse uma lei que beneficiasse todas as pessoas do nosso grupo igualmente, você a respeitaria sem questionar? Algo como: todos devem, a partir deste momento, receber o mesmo salário, morar em casas idênticas, trajarem roupas sem nenhuma espécie de luxo e usufruírem de uma única religião em prol de termos um futuro sem conflitos ideológicos! — O garoto de cabelos brancos mantém uma expressão fria como gelo no rosto. — Será que alguém manipulador e calculista feito você conseguiria viver assim?
— Provavelmente, não. — Leógenes respondeu sinceramente. — Eu não fui criado para obedecer a ordens e sim para dá-las. Não posso me contentar em ter os mesmos bens que os outros, se existe a possibilidade de obter mais e mais. Não consigo viver a mesma vida que os meus vizinhos, se posso ter uma ainda melhor.
Antony sorriu ao ouvir essa resposta.
— Agora, consegue entender? Enquanto formos quem somos, o mundo nunca mudará. As disputas por terras continuarão, os conflitos por riquezas nunca cessarão, o ódio sempre existirá.
— Não me diga que o plano secreto de vocês é iniciar uma ditadura? — Surpreendentemente, dessa vez, a sempre quieta Keyla foi quem levantou a voz. Ela também está ciente do quanto a conclusão desse embate pode impactar a sua vida daqui para a frente. — Antes de responder, já aviso que existiram muitos ditadores por aí que falharam ao tentar acorrentar o seu povo. Impor uma opinião que muitos outros discordam sempre resulta em perdas e sofrimento para ambas as partes.
Hillary se aproximou, ficando a apenas um passo dela.
— Eles só falharam porque permitiram que os seus súditos fossem livres para pensar. Na verdade, é isso que faremos de diferente. Arrancaremos à força toda a parte podre de vocês. — Sorriu. — Sem o desejo de roubar, nada será roubado. Sem a necessidade de mentir, ninguém mentirá. Sem a vontade de matar, ninguém ficará ferido. Simples assim.
Leógenes riu bem alto, zombando das palavras da vice-presidente do mundo.
— E, por acaso, existe alguma maneira de retirar os desejos dos humanos? Chega de fazer piadas sem graça e nos permita jantar em paz, por favor?
— Então, que tal mudarmos a sua opinião com uma simples demonstração? Vamos mostrar o quanto estamos sérios sobre tudo isso. — Hillary mostrou um grande sorriso. — Meu irmão, faça agora.
— Sim.
Foi então que algo inacreditável aconteceu. Uma única e gigantesca asa branca surgiu nas costas do presidente do mundo. Penas brancas se espalharam e começaram a cair feito neve dentro do refeitório.
Mais do que nunca, o garoto se assemelha a figura de um deus.
— Mas que merda…?!
Não apenas o aluno de cabelo em formato de cogumelo como todos os seus colegas estão de queixos caídos. Afinal, teoricamente, uma criatura divina tem sim o dom de intervir na vontade humana.
— Muito bem, você será o primeiro. — Antony flutuou até a frente de Leógenes e segurou o rosto dele, forçando-o a encarar seus olhos azuis cintilantes.
— Mesmo alguém com um veneno tão poderoso, agora não poderá ferir mais ninguém com suas palavras.
O jovem que nunca tinha sido manipulado, calou a boca e ficou com um olhar vazio no rosto. Parece até que a sua alma foi sugada, perdendo qualquer traço da humanidade que um dia possuiu, tornando-se uma espécie de máquina sem vontade própria.
Sem dar tempo dos outros se recuperarem do susto, Antony fez a sua segunda vítima. Foi a vez de Juliana se tornar uma casca vazia.
— Esse desgraçado…
Augusto sussurrou ao meu lado. Está tremendo de tanta raiva. Ver os seus amigos perdendo tudo aquilo que os torna únicos, está despertando um sentimento realmente poderoso dentro dele.
— Ei, mantenha a calma. — Sussurrei.
Porém, esse sentimento transbordou de vez no instante em que Antony puxou o braço de Keyla para poder olhar nos olhos dela.
Imediatamente, o garoto de cabelos tingidos pegou uma grande pedra e a arremessou com toda a sua força na janela de vidro. Por sorte, consegui me afastar o suficiente para não ser atingida pelos cacos que voaram para todos os lados.
— Solte-a imediatamente! — Em um piscar de olhos, Augusto tinha invadido o local e segurado a mão livre do anjo. — Se não o fizer, vou quebrar o seu braço em pedaços!
— Olha só quem está aqui! Hum…? Qual é o seu nome mesmo? — Antony brincou.
— Para de zoar com a minha cara, babaca!
— Ei, não precisa se estressar. É claro que lembramos de você. — Hillary zombou. — Augusto Vidal, o hiperativo que adora ficar fazendo showzinho no meio das aulas. Sempre declarando o seu amor unilateral para a estranha sombria que é incapaz de amar. — Deu uma piscadela para Keyla. — Sabe? Já que você não liga para ele mesmo, não fará mal se eu o pegar para mim, certo?
A ruiva estremeceu por um breve segundo, mas logo se recompôs.
— Não ligo.
— Nossa, mas que resposta cruel! Viu só, Augusto? Ela acabou de admitir que não tá nem aí para o que pode acontecer com você. Mas será que é isso mesmo? Vamos fazer um teste? — Alargou o seu sorriso. — Irmão?
Com três movimentos, Antony virou o jogo e imobilizou Augusto, prendendo as duas mãos dele. Foi nesse momento que uma asa idêntica à do irmão, mas no lado oposto, surgiu nas costas de Hillary. As penas brilham feito diamantes. Sua beleza paralisou todos os seus colegas de classe por um momento.
— Você a ama? — Ela perguntou para Augusto enquanto se aproxima.
— Não tenha dúvidas. — O garoto de brinco respondeu sem hesitar.
— Será que a ama tanto quanto pensa?
Tocou o rosto dele carinhosamente como se faz com um amante. Depois, aproximou-se o máximo que pode, testando-o, vendo se Augusto fraquejava diante da sua proximidade e charme surreal.
Porém, não funcionou. Ele sequer piscou.
— Meus parabéns, você acabou de me deixar irritada. Mas será que conseguirá manter toda essa indiferença diante disso?
Hillary o beijou com fervor por vários e vários segundos, parecendo sugar a vitalidade dele lentamente. Quando os lábios dos dois, enfim, separaram-se, ficou evidente que tudo mudou.
O garoto de cabelos tingidos se tornou apenas um fantoche nas mãos do anjo.
— Sua maldita… Eu vou acabar com você…
Se o plano de Hillary era despertar a fúria de Keyla, posso afirmar que funcionou perfeitamente.
Desde que entrei nesta escola, é verdade que presenciei muitas cenas onde a ruiva foi brutal e cruel, mas não ao ponto de sentir uma aura tão extremamente violenta pesando o ar. Algo que faz até mesmo os seus colegas de longa data recuarem instintivamente.
Acabo de presenciar o estopim da primeira guerra do novo mundo, sem dúvidas.
— Isso não vai terminar bem. — Sussurrei.
Por mais que Keyla não tenha medo de encarar Hillary, infelizmente, não possuí a força necessária para derrotá-la, muito menos o irmão multiesportivo dela. Todos perderão suas almas se eu não fizer alguma coisa.
Rapidamente, levantei e dei a volta no prédio. Assim que encontrei a caixa de força, desliguei todos os disjuntores ao mesmo tempo, apagando as luzes do refeitório.
— Hora da heroína aqui entrar em ação!
Correndo com apenas a frágil luz da Lua iluminando o máximo que podia, invadi o local e segurei o pulso da primeira pessoa que encontrei pela frente, arrastando-a na direção da saída, abandonando todos os outros vultos na escuridão.
Como não posso salvar todos, pelo menos, levarei um deles comigo. Até porque não pode haver guerra se existir apenas um exército no campo de batalha.