As Paredes do Céu Negro - Capítulo 16
1
Enos e Daniel estavam dentro do carro, cruzando as ruas da cidade até o posto de gasolina mais próximo. O silêncio imperava entre os dois.
O destino era um posto de gasolina localizado na Avenida dos Imigrantes, uma larga faixa de rua que comportava inúmeros pontos de comércio. Não era a avenida mais conhecida da cidade, mas não ficava muito atrás da primeira colocada.
Parte do silêncio se devia às palavras de Daniel mais cedo, quando tinham acabado de sair de casa. Questionado sobre o que o fez pensar que ele estava morto, Enos apontou para a ausência de pulso no seu corpo.
— Eu estava muito nervoso. Só isso — explicou. — O nervosismo atrapalhou meu julgamento.
— Não te julgo, papai. Desculpa o susto.
— Não tem problema — disse.
A conversa acabou em poucos segundos.
Minutos depois, Enos pensou no rádio para iluminar o clima sombrio dentro do carro. Grande parte disso se devia à ligação de Daniel para Bruna, na qual o seu nome foi mencionado. Ele ficou sem saber o que foi falado.
— Vamos ver o que está passando no rádio.
Daniel, que somente admirava a paisagem do lado de fora, reagiu com um pequeno sobressalto.
— Hum? Nossa, faz tempo que não usamos esse carro. Será que ainda funciona?
— A gente vai descobrir agora.
Ele tocou o botão principal e acionou o dispositivo. Então, o som de estática agrediu seus ouvidos por um momento antes de Enos encontrar uma frequência ativa. Era um canal de notícias focado nas proximidades da cidade de Campinas.
— Funcionou mesmo — disse Daniel, surpreso.
— Nunca subestime uma boa faxina — respondeu, sorrindo com orgulho.
— Hihi. Bem, espero que eles estejam noticiando algo que preste.
— Dificilmente. Mas vamos ficar atentos.
Os dois fizeram silêncio para prestar atenção à voz do homem que dirigia o canal de notícias. Era uma voz enérgica mas ritmada, não era como aqueles locutores de rodeio vomitando dez palavras por segundo sobre os ouvintes. Parecia uma boa escolha para a manhã daquele dia.
— …e para a próxima notícia, temos atualizações sobre um caso peculiar. O vigilante mascarado de Campinas, ou como é conhecido, o “Anjo- Cortadeiro” apareceu novamente na noite desta terça-feira, por volta das onze horas. Uma moradora do bairro da Vila Industrial, junto de sua filha, estavam sendo atacadas por dois homens armados, fugitivos da polícia local, quando a figura misteriosa apareceu.
Então, o locutor fez uma breve pausa e prosseguiu:
— Esse sujeito peculiar está dividindo a opinião pública da cidade. No entanto, a vítima dos criminosos fugitivos diz ter sido, de fato, salva pelo vigilante mascarado, embora ele não estivesse… olhando para ela? Que estranho. Ela conta que o vigilante foi atacado enquanto passava por ali, mas não é como se ele estivesse tentando salvá-la desde o começo. Estava olhando para outra direção, aparentemente preocupado. Também no relato que a mulher entregou à polícia nesta manhã, segundo ela, havia “algo a mais” flutuando ao redor do corpo do vigilante, como uma espécie de sombra… sombra líquida? Isso está certo? Oh… U-Uma espécie de sombra líquida vazando de seu corpo, principalmente dos braços. Apesar de suas roupas e máscara estarem danificadas de outra ocasião, um homem que passava pelo local com o celular em mãos tentou capturar uma fotografia da figura misteriosa e não teve quase nenhum êxito. Ele diz ter visto a mesma sombra estranha, e que ela foi a responsável pela falha na captura das imagens. Nada sobre essa “sombra” foi confirmado até o momento, a polícia encara o ocorrido como um episódio de alucinação muito comum em situações estressantes. O Anjo-Cortadeiro fugiu logo em seguida. As autoridades assumem que ele esteve engajado em um combate antes de ir ao encontro da mulher, assim como suas roupas rasgadas e máscara quebrada mostravam. Ninguém sabe ao certo quem o perseguia e tudo ainda é um mistério.
Enos e Daniel mantiveram a atenção voltada para a voz do locutor a todo momento. Ele tornou a falar, complementando:
— Uma imagem de parte do rosto do vigilante foi divulgada no nosso portal no começo desta manhã. Em contato com a polícia, a equipe editorial foi recomendada a incentivar que qualquer pessoa com informações valiosas as repasse para a delegacia imediatamente, considerando a periculosidade do caso. E agora vamos para o os comerciais…
Enos estava em choque com o que acabara de ouvir. Desligou o rádio prontamente e olhou para Daniel.
— O que está havendo naquela cidade? Mas que droga… Uma sombra líquida? Será algum tipo de arma biológica?! R-Romeo…
Daniel percebeu a preocupação dele. Era óbvio que ficaria assim.
— Aposto que o tio Romeo vai ficar bem, papai.
— As notícias não são boas. Ele está em perigo.
— S-Sim, mas… mas…
Ele tinha razão, não dava para argumentar contra suas palavras. Um passo em falso e Romeo poderia estar morto na manhã seguinte.
— Ah, desculpa — disse Enos. — Não quero te encher com notícias ruins hoje. Eu ligo pro Romeo depois, então não se preocupe.
Daniel suspirou com pesar. Então, teve o ímpeto de pedir o celular a Enos para poder ver a imagem divulgada do rosto do Anjo-Cortadeiro. Apesar de ter confiscado o aparelho até o fim do dia, Enos abriu uma exceção por se tratar de um assunto sério e por ser pouco habilidoso com a tecnologia. No fundo, ele também estava curioso sobre a imagem divulgada, por isso permitiu que o garoto usasse o celular por um ou dois minutos.
— Eu quero ele de volta assim que você terminar.
— Eu sei disso. Não vou demorar.
Quando acessou o portal e viu a imagem, Daniel não pôde entender quase nada. Tudo naquela fotografia era um borrão. Com um olhar de soslaio, Enos se manifestou:
— Essa é a foto, não é?
— Sim. Quer ver? Não que você vá entender alguma coisa.
— Eu vou dar uma olhada.
Desviando o olhar do trânsito por um segundo, Enos moveu-o para a fotografia que seu filho lhe mostrava. Nesse momento, seu sangue pareceu congelar dentro do corpo e sua pele ficou pálida. Era como se tivesse visto uma assombração naquele festival de borrões negros.
Com os olhos voltados mais para o centro, Enos, de alguma forma, deparou-se com algo incomum. As pistas eram insignificantes: apenas a parte de cima do rosto do homem estava exposta, acompanhada de um par de olhos distintos e cabelos negros como a noite. O borrão era generalizado. Mesmo assim, ele conseguiu deduzir como era o rosto daquela pessoa.
Não. Pelo contrário, ele simplesmente imaginou.
O rosto de um homem branco, de traços finos e com cabelos pretos penteados graciosamente, ladeados por uma trança primorosamente enrolada no extremo esquerdo da cabeça, surgiu na mente de Enos como um intruso. Os cabelos de seda dele batiam na nuca. No entanto, esse não era o mais impressionante em sua aparência. Cada uma das pupilas do homem carregava uma cor distinta da outra: enquanto a pupila do olho direito era cinza-escura, a do olho esquerdo era totalmente branca. Mas ele não era cego, Enos sabia disso de alguma forma.
— Você está vivo, Dom…
— PAPAI!! CUIDADO! OLHA PRA RUA!! — interrompeu Daniel.
Mais à frente havia uma pessoa cruzando a rua. Distraído como estava, Enos não a percebeu e guiou o carro sem controle. Eles estavam muito próximos. Então, mesmo freando com força total, a batida aconteceu.
Póft!