As Paredes do Céu Negro - Capítulo 15
1
O relógio de Enos já marcava nove e cinquenta oito da manhã quando terminou de limpar o carro. Havia tantas coisas acumuladas sobre os bancos e no guarda-malas que ele achou que não conseguiria a tempo, mas, de alguma forma, foi capaz de tirar a poeira e, principalmente, a bagunça de dentro do carro. O tempo que ficou sem uso não foi gentil com o Volkswagen Gol preto dele.
Tudo estava nos conformes agora. Entretanto, eram quase dez horas e eles ainda não tinham saído de casa. Precisavam começar o dia o mais rápido possível ou a lista ficaria incompleta.
Assim que teve esse pensamento, correu para abrir a porta que conectava a garagem à cozinha e gritou:
— DANIEEEEEEL!!! PRECISAMOS SAIR!!!
Nenhuma resposta.
— EU. DISSE. QUE. TEMOS. QUE. IR!!! AGORA!!
Novamente, nem sinal do garoto. Adentrou a cozinha com impaciência e começou a procurar por ele.
— Que droga, ele deve estar tão entretido com aquele jogo que não percebeu a hora passar… Eu não deveria ter sido um pai tão complacente… Daniel, responda! Precisamos ir!
Varreu o lugar com os olhos várias e várias vezes, e nada de encontrar o garoto. Então, expandiu sua busca para a parte de trás do balcão onde Daniel devorava um pão amanteigado mais cedo e olhou ao redor.
Quando guiou o olhar um pouco mais para baixo, teve a visão mais terrível da sua vida. Seu filho estava deitado de lado no chão, com os olhos fechados, aparentemente sem respirar. O banquinho de madeira estava caído aos pés dele, tal qual o telefone-celular. Não pôde acreditar a princípio, mas a imagem grudou-se na sua mente como chiclete.
— O-O quê?! D-D-D-Daniel…
Quis fechar os olhos, mas não conseguiu. Então, se jogou no chão para agarrar o seu corpo e tentou pegar o seu pulso. Os batimentos cardíacos de Enos estavam a um passo de explodi-lo de dentro para fora. Quando percebeu que não havia pulsação no corpo do menino, sentiu como se o mundo desabasse sobre ele.
— N-Não pode ser… Não… NÃ…
Um suspiro de alívio soou. Porém, não foi o do homem completamente devastado.
— Que barra! Vou te falar, esse Desafio foi um dos mais difíceis que eu já enfrentei.
Enos tentou processar o que via. Seu filho estava vivo e bem, tagarelando sobre alguma coisa. Não entendeu o que se passava e ficou com cara de tacho enquanto observava suas movimentações.
— Ufa, meu celular tá intacto! Imagina só se ele quebrasse, papai. Você-sabe-quem ia me esganar! Hahahahaha! — disse Daniel, aparentando estar muito contente. Agarrou o aparelho e ligou-o por um momento, apenas para verificar uma coisa. — Já são dez horas! Nossa, já tá na hora de sair, não tá? Eu tô errado? Papai? O que houve?
— Esqueça a sua mãe. Eu te esganaria agora mesmo se tivéssemos tempo.
Antes de reerguer-se do chão, Enos tomou o celular das mãos de Daniel em um movimento ágil.
— A gente precisa ir. Por sinal, seu celular está confiscado até o fim do dia.
— H-H-H-Hein?! O que eu fiz?!
Enos não respondeu, indo direto até a garagem. Esperou que o garoto o seguisse.
De alguma forma, a cara de tacho permaneceu. Ele simplesmente não soube como lidar com a situação e ignorou quaisquer perguntas. Confiscar o celular foi um capricho sem razão de um pai transtornado, pois ele mesmo ainda não sabia toda a verdade por trás da “queda” de Daniel.
2
— Eu ainda não entendi por que você tá assim.
Veias saltaram na testa de Enos com o comentário. Enquanto ele ainda estava do lado de fora do carro, Daniel já havia entrado e estava sentado no banco ao lado do motorista. Era uma concessão que Enos estava disposto a fazer por conta do caráter único daquele dia, apesar do estresse que passara há poucos minutos.
— Você só pode estar brincando comigo.
— Não tô, não. Eu até ganhei uma partida em homenagem a você, pai. Me diz, por que tá tão bravo?
— Ganhou uma partida e tentou me matar do coração logo em seguida. É por isso que estou furioso. Esse jogo é tudo de ruim!
Daniel entendeu rapidamente do que ele falava.
— Agora faz sentido. Papai, eu só estava deitado no chão porque fiquei cansado durante a partida — disse. — Bom, apesar de não estar nos meus planos cair do mesmo banco pela segunda vez… Essa parte não foi planejada, mas eu descansei mesmo assim. Não leva pro coração, vai.
— Não vou levar. Só que você vai ficar sem celular até voltar pra casa.
Enos guardou as outras chaves e a carteira no bolso e preparou-se para entrar no carro. No entanto, foi interrompido por Daniel:
— Então, sobre isso… eu acho que vou precisar do celular agora. Já se esqueceu da lista? Preciso falar com a minha mãe antes de irmos para o posto de gasolina ou o shopping.
— Droga.
Novamente com um semblante inexpressivo e até cômico, respondeu:
— Seja rápido. De preferência na velocidade da luz.
— Não sei se consigo ser tão rápido, mas pode ser que eu desperte meus poderes de velocista no caminho e…
— Sem piadas.
— Ok, ok, eu já volto.
Daniel dirigiu-se para um canto distante na garagem e ligou para a mãe. Cerca de dez segundos depois, ela atendeu a ligação.
Por outro lado, Enos ficou a revisar seus pertences na carteira e as chaves que trazia junto deles. Vez ou outra, escapava um olhar na direção do filho para tentar espionar sua ligação. Era o instinto agindo sobre ele, não a razão do homem de vinte e sete anos que ali estava.
Essa curiosidade se provou ser sua maior sabotadora. Houve um momento em que reteve a atenção no garoto por mais tempo do que um piscar de olhos, então notou que havia algo errado. De repente, o semblante antes iluminado e gracioso de Daniel tornara-se sombrio e distante, como se ouvisse coisas que não desejava ouvir. Até mesmo suas mãos tremiam ao segurar o celular.
Por um breve e irrisório segundo, Enos teve a sensação de ser observado por aqueles olhos tão infelizes. E foi nesse segundo que descobriu de quem a pessoa do outro lado da linha estava falando.