As Paredes do Céu Negro - Capítulo 14
1
— O que foi? Não vê que estou tentando descansar?
— Eu ainda tenho algo a dizer. Preciso que você me responda uma coisa, Daniel.
Sofridamente, Daniel virou a cabeça na direção de Eliseu. A dor o fez grunhir de leve.
— Sou todo ouvidos.
— Por que decidiu usar esse baralho em um Desafio Ranqueado? Digo, não posso acreditar que você veio com a intenção de perder.
— Ha! Claro que não — respondeu. Em seguida, sentiu ainda mais dor. — A-Ai… Eu venci de qualquer forma, não é? Isso é tudo que importa.
— Contra todas as possibilidades. Você puxou a única carta que poderia salvá-lo de perder a partida, então tenho certeza de que foi…
— …sorte? — interrompeu. — Tem razão, foi sorte mesmo. Não posso mentir dizendo que planejei cada jogada que realizei. A vida é assim mesmo: um “tantinho” de esforço, um “tantão” de sorte. Você provou isso na pele.
— Você deve ter razão… — concordou.
Então, perdeu o equilíbrio por um momento e quase bateu a cara no piso frio e duro da torre. Permanecer de pé estava se provando muito difícil. Para cada ferimento no corpo de seu rival, Eliseu tinha dez; a proporção não era nada justa com ele. No entanto, isso não era uma surpresa diante do ataque recebido — um golpe direto do poderoso Oráculo do Mar Profundo. Grunhiu de dor antes de vacilar outra vez, as pernas bambas e a visão turva.
— A-Acho que vou me sentar.
— Nem precisava avisar, dá pra ver que você tá nas últimas — constatou. — Não é muito diferente comigo.
A dor também consumia o seu corpo, mas não queria parecer fraco. Reuniu todas as energias que pôde e colocou-se sentado no chão da torre. Eliseu fez o mesmo, desabando sem forças sobre si mesmo.
Os dois se encararam por um longo instante. O silêncio demorou-se entre eles, machucados que estavam.
— Me perguntou por que eu usei um baralho fraco em um Desafio Ranqueado.
— Hein? Sim, eu perguntei. É um mistério pra mim.
— Um mistério… — repetiu em introspecção. Com o olhar tomando cor novamente, continuou: — Eu quis homenagear o meu pai.
Eliseu arregalou os olhos.
— Isso explica muita coisa.
— Heh, e não é? Eu só… só pensei que, ao vencer com o baralho dele, eu poderia fazê-lo sorrir um pouco. Agora que volto a pensar nisso, foi uma ideia boba. Ele sofre com um mal que eu não posso nem imaginar, uma simples homenagem não pode tirá-lo de onde ele está agora. É, é assim que o vejo… Num poço bem, bem fundo. Eu gostaria de poder ajudá-lo, mas é impossível me aproximar. Eu só consigo me ver cada vez mais distante dele conforme os dias passam.
— Daniel…
— Não precisa me bajular, eu tô bem.
Eliseu se calou por um momento, tentando processar as dores do amigo.
— E como não te bajular? Você jogou feito um profissional.
— Não era disso que eu estava falan…
— Você pode se tornar um dos melhores do mundo algum dia. Já que chegou às finais do campeonato da cidade, não deve ser impossível pra você conquistar o mundo com as suas cartas. Talvez o Lorde Feudal das Chamas não seja somente um sonho impossível.
— Não precisa me colocar em um pedestal, eu joguei o que pude e contei com toneladas de sorte. Fora que o Lorde Feudal das Chamas é a carta mais rara do mundo, então o único jeito de consegui-la é vencendo o campeonato mundial. Não é possível que me veja de forma tão positiva, Eliseu.
— É claro que eu vejo. Você é o melhor que eu conheço — disse. Uma onda de tristeza repentina caiu sobre ele. — Digo, muito melhor do que eu, com certeza. Eu sou e sempre serei uma negação nesse jogo. É uma pena, mas é a vida. Heh.
— Você jogou muito bem. Além disso, você é o que mais se esforça entre todos. Vai acabar me superando em algum momento, te garanto.
— Não precisa ser modesto…
— Não estou sendo modesto. Sabe, eu vou precisar de um sucessor quando for competir no exterior, por isso te escolhi como o meu discípulo há muito tempo. Alguém vai precisar colocar ordem na cidade.
Os olhos de Eliseu brilharam como estrelas com o elogio.
— F-Fala sério?
— Seríssimo.
Ele não pôde conter a alegria e abriu um grande sorriso.
— Heh! V-Você deve ter razão!
— Eu sempre tenho — respondeu com confiança.
Mas a instância estava prestes a ser encerrada, quisessem eles ou não. Do nada, a voz robótica do narrador irrompeu em seus tímpanos:
— A instância será fechada em dez… nove… oito…
Cilindros de luz amarela começaram a envolver os dois jogadores, estabelecendo-se, a princípio, como partículas radiantes que pairavam ao seu redor. O sistema os estava enviando de volta para o lugar de onde vieram. Diante disso, Eliseu chamou pelo amigo com um grito:
— DANIEL!!
O garoto teve a atenção fisgada na mesma hora, descendo os olhos sobre ele.
— A instância tá fechando. O que foi?
— Pega isso!
Ele arremessou alguma coisa na direção de Daniel, que agarrou o objeto pouco antes de ser atingido no rosto. Olhando mais de perto, percebeu que tratava-se de uma carta. O desenho no centro exibia um pinguim gorducho, baixinho e azul segurando duas facas táticas de borracha. O pequenino vestia um uniforme de camuflagem do exército e, além das facas, estava armado do fuzil de brinquedo que trazia nas costas. A paisagem ao redor era um infindável campo branco de neve com iglus espalhados por todo canto, um lugar que Daniel deduziu ser o Polo Norte.
— O Pinguim Soldado do Norte. Desde quando você tem cartas do Atributo Gelo?
— Eu a consegui em um pacote genérico, dizem que é bem rara. E você sabe bem que prefiro o Atributo Mar.
— Está me dizendo pra ficar com ela?
— Eu faço questão. É um presente do seu amigo e discípulo Eliseu, beleza?
— Claro, claro. — Segurou a carta entre os dedos e enfiou-a no baralho antes que fosse tarde demais. — Valeu pelo presente. É uma carta bem maneira.
— Não foi nada.
Os cilindros de teletransporte estavam quase completos e, em mais alguns segundos, a instância seria dada como encerrada. Agora, era possível ver com clareza a forma dos tubos de partículas amarelas que encobriam os corpos dos Elementalistas.
— …quatro… três… dois…
Só um segundo os separava do mundo real.
— Daniel — a voz de Eliseu soou dentre o amontoado de partículas cintilantes. Apesar de distorcida, ele a reconheceu de imediato. Quando a barreira de luz piscou, o corpo do garoto apareceu e deu-lhe uma brecha: — Feliz Aniversário, cara. Nos vemos por aí.
E tudo tornou-se escuridão. A última memória que restou na mente de Daniel foi o sorriso acolhedor do amigo enquanto mantinham os olhos um no outro.
— A instância foi encerrada. Computando os dados…