As Desventuras Surreais dos Becker - Capítulo 46
“E após as trevas chegarem ao fim, o mundo provavelmente voltou a brilhar, um emocionante irradiar pairou nos céus. Aquele foi o primeiro amanhecer da humanidade” — Pulget, o pequeno
Eles cessaram a caminhada, ao contestar algo chocante.
— Olha, o sol está se pondo! — Rebecca disse, apontando para o céu, que antes pulsava em cores psicodélicas, agora era substituído pelo resplandecer do sol, que não atual situação era a confirmação de todas as suas esperanças.
— É mesmo, parece que tudo tá voltando ao normal! — Jim pareceu ainda mais empolgado.
Stan ficou igualmente boquiaberto, olhando para o céu se tornando azul novamente. Até mesmo soltou o saco cheio de coisas de valor o qual segurava,
— É o que eu estou pensando, Midna? — ele perguntou à sobrinha — então eles realmente conseguiram? Foi Archie e os outros que fizeram isso?
Midna não respondeu, pois nem ela mesma sabia de que forma seriam capazes de fazer as coisas voltarem ao normal. Tudo que ela fez foi sorrir.
— Bem, já devem ter passado as setenta e duas horas, não é?
Eles continuaram caminhando, maravilhados, ainda que um pouco confusos.
Midna obviamente não aceitou ajuda de um nobre como o Sr. Weber, convencendo seu tio a deixarem o castelo sem avisar, levando alguns pertences; o que foi fácil, já que o nobre não tinha nenhum funcionário para os espiar. E ela sabia que ele não iria atrás dela e de sua família, para não desonrar o pedido de Archie.
No fim, ela ainda queria um dia tomar a coroa inglesa, e não faria aquilo se aliando à elite. Mas naquele momento, ela estava tranquila, vendo que tudo estava voltando ao normal.
Obrigada, Archie, eu sei que foi você, de alguma forma.
***
Aaron e os outros se aproximavam de Archie, maravilhados em ver as coisas voltando ao normal e chocados com a visão do Weezy e Archie caídos. Mary foi a primeira a ir de encontro com o corpo do noivo.
Ela consultou seus pulsos com alívio, vendo que seu coração ainda batia. Mas seu estado era lamentável. A batalha no fim fora sim tão violenta quanto ela imaginou que seria.
— FAZ ALGUMA COISA! — ela gritou para Aaron, tremendo — por favor…
Aaron, que segurava o cadáver de Victor nos braços, o deixou no chão. Paul estava paralisado, derramando lágrimas pelo irmão. Ele sabia mais do que todos o que era se sacrificar para manter alguém que você se importava vivo. Não morra, Archie, o Dr. Frankenstein nunca te perdoaria.
O alquimista não perdeu tempo, com um frasco contendo um elixir de cura na mão. Logo o despejou na boca aberta do garoto, que felizmente ainda tinha forças para ingeri-lo sem muitas dificuldades.
Mas enquanto eles estavam ali, aguardando o resultado do elixir de cura, o mundo inteiro despertava. As pessoas de Londres que haviam sobrevivido e foram transformadas em monstros, retornaram a sua forma original. Incluindo Paul, que mal deu atenção àquilo, prestando mais atenção em seu irmão.
Mas para Mary, Paul, Aaron e Pulget, tudo que importava era que o detetive acordasse. Mas após um minuto que parecia uma eternidade se passar, enfim conseguiram ouvir a sua voz, um tanto rouca:
— Amor, eu consegui — Mary, que o apoiou em seu colo, ouviu, derramando ainda mais lágrimas, mas dessa vez de felicidade — e foi culpa sua, se não fosse você… eu com certeza teria perdido.
— Eu não vou permitir que você me elogie agora, querido — Ela viu seus olhos abrirem — você nunca me decepciona… por isso que eu te amo.
— Também te amo.
Aquele parecia um momento feliz, então Pulget comemorou descrevendo um arco pelo corpo. Paul foi até o seu irmão, dizendo como ele fora incrível em combate. Archie não conseguia deixar de sorrir, por mais que ainda precisasse dizer algo a eles.
Mas antes que pudesse lhes dizer, notou o corpo de Victor alí, se lembrando do que pediu a Aaron caso conseguissem.
— Valeu, Sr. Schmidt — Archie agradeceu — tem um quintal lá em casa. A gente vai enterrar ele lá. Eu quero que a sua memória permaneça eterna… pelo menos comigo.
Ninguém ousou questionar o pedido. Aaron apenas acenou positivamente, ele devia aquilo a Archie e sabia que os pais de Victor não aceitariam enterrá-lo, tamanho o desgosto que sentiam dele.
— Tá, eu tenho algo pra contar pra vocês — ele disse, se forçando a manter o sorriso — bom… eu to vivo né, isso é surpreendente. Mas eu não… consigo sentir minhas pernas, hehe.
Ele sabia que era inevitável o choque de todos. Mary e Paul não evitaram derramar mais lágrimas. Aaron parecia desapontado consigo mesmo, ainda que, lá no fundo, sempre soubesse que Archie pagaria o preço de alguma forma por ter ingerido a Mistura Meta.
Já Maxwell, parecia apenas pensativo. Pela primeira vez não viu Archie como um imbecil molenga perto da sua filha, sabendo de sua luta contra aquela besta.
— A troca equivalente, oh quão cruel pode ser — Pulget expressou, com pesar — podemos vencer a morte, mas jamais as consequências.
Aquele foi o momento para eles apenas sentirem o que deveriam sentir, sem a necessidade de palavras. Depois de tudo que passaram naquela jornada perigosa, praticamente impossível, eles conseguiram vencer. O custo foi alto, mas inevitável.
— Vamos pra casa — Archie disse, também com lágrimas nos olhos, pois sabia que sua vida mudaria muito — precisamos enterrar Victor antes da mamãe e do papai chegarem… Paul, Mary, me ajudem, eu preciso de vocês… Sr. Schmidt, leva o Victor.
Todos concordaram. O alquimista carregou o corpo do parente distante. Mas quando Mary e Paul iam levantar Archie, Maxwell apareceu, e sozinho, carregou o genro. Mesmo parecendo péssimo, a força que o capitão de polícia havia construído há anos não era algo frágil.
— Não precisam mais se esforçar, nenhum de vocês — Maxwell disse, apesar do tom hostil, era notável sua demonstração de honra — eu vou carregá-lo.
Archie não protestou, feliz pela primeira vez ser valorizado pelo sogro. Já Mary, chorou, surpresa e contente com a atitude de seu pai.
***
Nem Reagan, nem Olivia conseguiam mensurar o alívio que era ver o sol nascer novamente. Eles tiveram sorte de ninguém ter invadido a residência dos Becker. No entanto, não tiveram coragem de deixar a casa, pois a polícia agia em peso para tentar controlar as multidões eufóricas.
Infelizmente a rádio ainda não estava no ar, para que pudesse ficar a par dos acontecimentos no mundo inteiro. Aquele Longo Eclipse certamente entraria para a história.
— Espero que o Sr. e a Sra. Becker estejam bem — o mordomo disse, polindo com cuidado um pote de uma mesa de cabeceira, onde jaziam as cinzas do pai de Henry Becker — e Archie e Paul também.
— Claro que estão, meu palpite é que todo esse caos só rolou aqui nessa cidade — Olivia deduziu, sentada na poltrona do Sr. Becker.
— Vai ficar ai sentada? Precisamos deixar tudo perfeito até eles chegarem.
— Eu já fiz minha parte. Que diga-se de passagem, é bem maior que a sua.
Reagan fez um sinal de desaprovação. Desde que começou a vida de mordomo, se tornou zeloso em demasia. Olivia, por outro lado, não tinha tanto apego quanto ele ao trabalho. O mordomo só pensou que tantos anos vivendo seria o suficiente para ela ver aquela casa como sua também.
TRIM! TRIM!
Era a campainha, o que deixou os dois funcionários deveras confusos e tensos ao mesmo tempo. Como eles poderiam ter chegado tão rápido se não fazia nem uma hora que tudo havia voltado ao normal? Liverpool e Genebra eram lugares bem distantes.
Reagan fez um sinal para que Olivia ficasse em silêncio. Ele tirou um revólver do bolso, aquele que só usaria caso fosse necessário; ou seja, salvar a vida de algum membro da família ou impedir um assalto.
Mas assim que observou os convidados através do olho mágico, guardou o revólver. Ainda assim, parecia nervoso. Quem diabos é esse homem de sobretudo, esse outro de jaleco desmaiado e… essa coisa no ombro de Paul?!
O que o fez decidir abrir a porta, foi o fato de já ter visto coisas bizarras e sobrenaturais mais perigosas durante o eclipse, então deixou-os entrar e fingiu que estava tudo normal.
— Archie, Paul, Capitão, Srta. Robinson e… seus amigos excêntricos, entrem por favor — ele disse, com um sorriso amarelo ao ver a aparência e semblante péssimos que eles carregavam.
— Miau — Igor se apresentou.
— Ah, e tem um gato também, e… O QUE É ISSO? ESSE HOMEM ESTÁ MORTO?!
Só naquele momento notou que o homem nos braços do alquimista estava morto, notando o sangue no seu abdómen, que não conseguiu ver no olho mágico.
— Calma, Reagan — Archie disse, ainda sendo ajudado por Maxwell — a gente vai explicar tudo… aconteceu muita coisa, pode apenas nos ajudar por enquanto?
O olhar do garoto mostrava que a situação era realmente séria. Por mais que o mordomo estivesse fervendo em confusão e dúvidas, apenas obedeceu às suas ordens. Era o momento de pôr todo o seu profissionalismo de anos em ação.
Após o policial colocar Archie na poltrona do pai, Mary tranquilizou Olívia, que começou a chorar ao ver o cadáver de Victor e notar o que havia acontecido com Archie.
— Bem, eu acho melhor a gente contar tudo quando o papai e a mamãe chegarem — Paul disse ao irmão, que parecia sem forças até mesmo para falar muito.
— Sim… vamos enterrar o Victor.
Todos se encaminharam para o quintal, que ficava nos fundos da residência. Archie foi ajudado pela noiva dessa vez, enquanto Reagan e Olivia levaram uma cadeira para que ele pudesse ficar sentado durante o simples funeral.
O quintal era uma espécie de horta, feita na fundação da casa para abrigar cerejeiras, além das hortaliças. Fora um local que o avô havia decidido colocar na casa em seus últimos dias de vida, antes de passá-la para o seu pai.
Archie lembrava o quanto o pai considerava aquele lugar, o quanto ele era importante para a memória de seu avô. Ainda não sabia como lhe contaria sobre o que estava fazendo. Victor precisava de um lugar tranquilo para descansar.
Paul, Aaron e o mordomo ajudaram a abrir um buraco no meio do quintal, onde nada estava plantado. Em seguida, colocaram cuidadosamente o corpo do cientista ali. O alquimista deu uma última olhada para Frankenstein, o último de sua linhagem, antes de jogar a terra por cima.
Como se todos ali estivessem em sintonia com Archie, assumiram um semblante melancólico. Mary colocou uma flor de cerejeira no lugar onde ele foi enterrado, a pedido do noivo.
Eles passaram os próximos trinta minutos apenas observando aquela flor. Archie não conseguiu derramar mais lágrimas. Naquele momento, apenas contemplou o seu objetivo concluído, cumprindo tudo que havia prometido ao amigo.
Mary ficou o tempo inteiro segurando a mão de Archie, sabendo que ele precisava dela naquele momento. Já Paul, Reagan e Olívia desataram a chorar.
Pulget se lembrou do dia em que presenciou a morte de um grande aliado e amigo. Nessa ocasião, sentiu o luto e descobriu o niilismo. Mas depois de muitos anos, refletindo sobre a morte, chegou a uma conclusão imprescindível:
— Se a morte é o fim de nossa existência neste plano, Sir Paul, o que importa é a jornada e não o seu fim — ele disse, para o garoto, que se sentiu um pouco melhor com aquela afirmação.
— Professor, posso lhe pedir algo?
— Diga-te.
— Eu quero que… antes do Senhor ir embora, me ensine mais sobre a filosofia. Eu quero ser seu aprendiz, eu quero que este dia fique eternizado de alguma forma no que eu irei mostrar ao mundo — Paul disse aquilo com muitas lágrimas, lembrando de como o Dr. Frankenstein o admirava.
— Vejo que tem grandes ambições, Sir Paul — Pulget brincou com os bigodes — lhe garanto um mês nesta era. Todo dia irá aprender comigo até que o mês chegue ao seu fim.
Paul ficou tão emocionado, que apenas sacudiu a cabeça positivamente.
Maxwell não parecia tão comovido quanto os outros. Tudo o que sabia sobre aquele Frankenstein era que ele fora o responsável pela criação da maldita besta. Então pensou que no fim ele apenas sofreu as consequências dos próprios atos.
Já Aaron, que tinha todo o contexto da situação, sabia da sua culpa naquilo tudo. No fim, sua tentativa de se igualar aos Becker, foi sua ruína. Ele veria aquilo como aprendizado e lembraria como no fim, seu distante parente era realmente um gênio.
Ao menos o Sistema não errou. No fim conseguimos derrotar a criatura e trazer normalidade a tudo, graças a Mistura Meta. Isso sim é surpreendente.
Eles continuaram um bom tempo ali, contemplativos, até uma chuva começar a cair. O fim de tarde chegava e era bem provável que seus pais já estivessem a caminho de casa.
***
— Será que esse negócio atingiu o mundo todo? Espero que a rádio já tenha voltado ao ar — Henry reclamou, abrindo com pressa a porta.
— Eu só quero saber se Archie e Paul estão bem, do jeito que essa cidade tá é até bom que viajaram — Agatha disse, preocupada.
Eles entraram na casa e caminharam pelo hall apressadamente.
— Duvido que isso tenha chegado tão longe, querida, a não ser que…
Mas antes que pudesse completar, ele e a esposa chegaram na sala de estar, ficando surpresos com a quantidade de gente ali. E o pior de tudo, todos pareciam abalados, em especial Archie, que estava sentado na poltrona do pai, cabisbaixo, enquanto Mary segurava sua mão.
Agatha não se segurou e foi para cima dos dois filhos, sem nem dar tanta atenção ao fato de que eles estavam alí e não em Genebra.
— Que bom que vocês estão bem, era só nisso que eu pensava, queridos.
— Sim… estamos bem, mãe, mas não precisa de tudo isso — Paul disse, sendo apertado pelo abraço da mãe.
Archie sequer reagiu. Ele não se sentia preparado para aquele momento.
— Archie, o que aconteceu? Fala comigo… — ela então percebeu que ele era o único ali sentado, sem nem sequer mexer as pernas de forma agitada como sempre fazia — o que aconteceu… Mary?
— A gente vai explicar tudo, Sra. Becker — a nora tentou tranquilizá-la, vendo que ela começava a ler com precisão a situação — por favor se acalme…
— SE ACALMAR? O QUE RAÍOS ACONTECEU COM MEU FILHO? E QUEM SÃO ESSES DOIS? — Agatha explodiu, olhando bem para Aaron e o homúnculo nos ombros de Paul, parecendo ter uma espécie de epifania — Espera… quem são vocês? Aposto que tem culpa nisso, não é? Vocês são alquimistas?!
— CHEGA — foi Archie quem gritou, decidindo que deveria agir como um homem e contar tudo — Mamãe, por favor, se acalme, deixe a gente contar tudo.
Ela engoliu as palavras entaladas, vendo que o filho estava certo. Explodir daquela forma só iria atrapalhar o entendimento de toda a situação.
Henry não disse nada, mas estava visivelmente chocado, em especial com os dois desconhecidos. Não… não pode ser.
Mesmo assim, nada disse, apenas se sentando no sofá. A atitude simples deixou Agatha indignada:
— Não tem nada para dizer, Henry?!
— Deixe-os contar, Agatha — o patriarca da família Becker encarou Archie, com um semblante tranquilo — não tem motivo para toda essa euforia.
A mulher queria xingá-lo, mas por hora iria acatar aquilo. Também tinha curiosidade em saber o que realmente aconteceu. Então decidiu permanecer em pé mesmo.
— Mary, Paul, me ajudem a contar tudo — Archie pediu, enfim criando coragem para encarar o pai. A última vez em que esteve diante dele foi praticamente da mesma forma.
Os três começaram a contar de forma intercalada os eventos que ocorreram no início até o fim do Longo Eclipse. Archie contou as coisas mais importantes, enquanto Paul narrou os pequenos desafios malucos que passaram e Mary pelo que tinha passado no Palácio de Westminster.
Agatha achou aquela história muito mirabolante, naturalmente, mesmo que não estivesse surpreendida com algumas coisas. Já Henry, não demonstrou uma reação mais clara, ficando apenas mais rígido à medida que ouvia os detalhes.
As únicas coisas que realmente lhe arrancaram uma expressão boquiaberta, foram a identidade dos desconhecidos ali presentes e como Archie havia usado a Mistura Meta para derrotar Weezy.
Mesmo assim, não os interrompeu. Agatha chorou, ao ver o filho parecer triste com a última coisa que faltava contar:
— Mas a gente não derrotou Weezy de primeira… era para Victor ter derrotado ele com a mistura executora, mas… ele morreu, bem na minha frente e eu não consegui salvá-lo — as lágrimas voltaram a cair. Pela primeira vez desde que era um bebê, Archie chorou na frente do seu pai — a culpa foi minha. E se não fosse Paul, eu também teria morrido.
Mary apertou a mão do noivo, dizendo para ele que não era sua culpa. Já Paul, apenas chorou também, dando batidinhas no ombro do irmão.
Reagan e Olivia, que estavam ouvindo tudo aquilo pela primeira vez, também caíram no choro.
Quando viu que a explicação já havia terminado, Henry se levantou. Ele agora nem tentava mais esconder o seu choque com tudo aquilo, carregando um semblante de pesar, ainda olhando o filho nos olhos. Mas diferente do que Archie imaginava, o pai não parecia o julgar por estar chorando.
— Archie, Paul, preciso contar algo a vocês — ele disse, varrendo o olhar pela sala e todas as pessoas ali reunidas — não precisam sair, podem ouvir também.
As lágrimas cessaram. Archie esperava uma bronca, ainda mais porque estava prestes a contar sobre o enterro de Victor no quintal. Mas aquela declaração do pai o fez adiar o momento.
— Bem, eu sempre soube sobre a Arte das Misturas — a revelação de Henry chocou a todos os presentes, exceto Agatha — sua mãe sabia, naturalmente, apesar de não nos mínimos detalhes. Nossa família segue os princípios da verdadeira alquimia desde que o Patriarca Arthur fez seu nome na história. Nossos ensinamentos foram passados oralmente, para que ninguém os tomasse de nós. Sim, eu sabia sobre a Sociedade Secreta e Unificada, mas nunca interagi com eles e muitos menos pensei que o faria algum dia, ainda mais dessa forma.
Apesar do choque, desde que soube sobre Arthur Becker, achava que seu pai ter conhecimento das misturas era uma possibilidade. Mas ouvindo isso da sua própria boca, era revoltante. O detetive cerrou os punhos, querendo xingar o pai, mas ele ainda não parecia ter terminado o que queria dizer.
Envergonhado, Henry curvou a cabeça, antes de continuar:
— A tradição da família sempre foi revelar isso aos filhos quando eles completam quinze anos, até lá, é dever do pai instruir seu filho para um caminho intelectual, para que ele esteja preparado e apto para lidar com a responsabilidade que são as misturas.
As peças começaram a se encaixar. Mary sentiu o corpo inteiro de Archie tremendo, com ele colocando as mãos na cabeça. Até mesmo Paul ficou chocado, se lembrando de tudo que o pai havia feito por ele e como o incentivava a seguir o caminho da filosofia. Aquilo parecia ser demais para sua mente.
Mas antes que qualquer um deles pudesse protestar, Henry levantou a cabeça, fitando os dois filhos. No entanto, lágrimas caiam pelos seus olhos, pela primeira vez em anos.
— Me desculpem, Archie, Paul! — o pai exclamou, soluçando — a culpa é toda minha, sua mãe estava certa. Eu o via como uma decepção, Archie, por não seguir o caminho que toda a nossa geração seguiu, foi um choque que eu me deixei levar e… decidi adotar Paul, quando vi que era um prodígio a altura das ambições dos Becker, e assim que ele completasse quinze anos, eu iria contar tudo.
Os irmãos Becker pareciam claramente abalados, em especial Paul, que pensou já ter passado pelo pior dos traumas.
Agatha se sentou no sofá, começando a chorar também. Mesmo que aquela sala estivesse cheia, ninguém senão os quatro membros da família se atreveram a se meter no diálogo.
— ME PERDOE, POR FAVOR — Henry sabia o peso das suas palavras naquele momento, então se ajoelhou diante do filho aleijado — eu falhei… com vocês dois. Eu não os enxergava como uma família, eu só pensava no propósito, no legado… eu deixei meu próprio ego me guiar!
— Pai.
A voz de Archie fez Henry levantar a cabeça. Mas o que viu não foi uma expressão de rancor nem decepção, mas sim um sorriso envolto de lágrimas.
— Eu sempre soube, que era sobre o legado. Já ouvi em uma conversa sua e da mamãe, mesmo não sabendo sobre as misturas — Archie se lembrou de Victor e de sua promessa de viver a melhor vida possível por ele — o senhor só precisava admitir isso, eu não vou mais guardar rancor. Assim como a culpa pode sempre ser terceirizada, as coisas boas que acontecem, também podem vir de coisas ruins. Eu perdoo o senhor.
O sorriso de Henry foi o mais genuíno possível. Mas então, olhou para Paul, que parecia ainda chocado.
— Paul…
— Eu também o perdoo, papai — Paul disse, parecendo reflexivo — eu sei que o senhor estava apenas seguindo a sua mentira interna e… eu não quero ficar com raiva, eu amo vocês, eu não quero deixar de fazer parte dessa família.
A sinceridade de Paul tocou a todos alí.
Eles não conseguiram mais se segurar. Agatha levantou do sofá e foi até eles. Assim, a família Becker se abraçou. Indiretamente, a amarra destrutiva do legado foi quebrada ali.
Henry notou que no fim, Archie havia conseguido usar a Mistura Meta de qualquer forma e, que o código de conduta que ele e seus ancestrais seguiram por anos era bobagem, que não importava o que seguissem, a genialidade, seja em qual campo fosse, era intrínseco aos Becker.
— Oh, quão tocante é a reconciliação familiar — Pulget disse, agora no ombro de Aaron.
Assim que o abraço terminou, Archie viu a oportunidade para contar ao pai sobre Victor. Apesar das desculpas do pai, ele ainda se sentia inseguro quanto a sua reação.
Assim que contou, não foi só ele que ficou nervoso, mas Mary, Paul, Reagan e Olívia também ficaram com medo da reação do patriarca da família.
Ao contrário do que eles imaginavam, Henry apenas abriu um sorriso:
— O senhor não está… irritado?
— Como eu estaria, Archie? Aquele homem recebeu os conhecimentos de Arthur Becker e era um gênio, eu mesmo não o esnobei quando apresentou sua ideia genial no evento, mesmo que só tivesse ouvido falar, pois não estava presente e… bem, ele era seu amigo, não era?
Archie sorriu, aliviado. A felicidade que sentia ao notar como ele e o pai estavam se dando bem era extraordinária.
Henry olhou para o pote com as cinzas de seu pai, sabendo que ele ficaria orgulhoso, considerando o significado do quintal. O senhor me avisou, não é? No fim de sua vida, que eu deveria aproveitá-la. Agora eu entendo o que queria dizer.
— Mas então, Reagan, Olívia, que tal um banquete para comemorar que todos estamos bem? — Henry sugeriu, deixando todos ali animados.
— Claro, meu senhor — Reagan disse, com ele e Olivia se encaminhando para a cozinha.
— Por acaso teria cerveja aqui, Henry? — Maxwell perguntou — eu carreguei o seu filho até aqui, acho que mereço, não é?
— Vamos beber juntos, Maxwell — Henry concordou, em seguida se voltando para Aaron e Pulget — então você é o líder sênior, não é? Já ouvi muito sobre relatórios. E o outro, acredito que seja Pulget, o pequeno.
— Sim, temos muito a conversar, Sr. Becker — Aaron disse.
— Temos mesmo, quero saber todos os detalhes.
— Sir Paul, podemos conversar sobre sua tutoria? — Pulget disse, voltando para o ombro do caçula.
— Claro, professor.
Archie não podia estar mais feliz com toda aquela euforia pela casa. Ele se voltou para a noiva, que ainda estava do seu lado, dizendo:
— Acho que agora é a hora certa da gente falar pra eles sobre o casamento, não é?
— Concordo. Principalmente agora que você ganhou uma moral com papai.
— Eu acho que ainda preciso de mais confiança.
Mary então o beijou, talvez o beijo mais longo que já tiveram.
— E agora, se sente mais confiante?
Archie sorriu, mas antes que pudesse responder, Igor subiu em seu colo, se acomodando ali e ronronando. Ele e Mary o acariciaram. Aquele gato era a última memória palpável que tinha do amigo, então iria cuidar dele com todo o carinho.
Aquela foi umas das melhores noites que todos eles haviam tido na vida. A comida era farta, as conversas intermináveis e a felicidade absoluta. Archie fez questão de aproveitar aquele momento. Inclusive, deixou um copo de cerveja em homenagem a Victor. Eu te falei que íamos beber juntos, não é?
Epílogo
O mundo se recuperou relativamente rápido. As pessoas acordaram e chamaram aqueles três dias que passaram em sono de “Os dias perdidos”, um dos maiores mistérios da humanidade.
Já a Inglaterra, acabou demorando mais para acalmar as multidões, enquanto os nobres trataram aquilo como um delírio coletivo, preferindo fingir que nada aconteceu, no objetivo de manter seu reinado inabalável.
O Sr. Thompson rompeu os laços com os Becker, após brigar com Henry pelo telefone, acusando seu filho de coisas absurdas, como ter matado seu filho recém-nascido.
Archie, ao longo do tempo, foi conseguindo se aperfeiçoar como detetive. Logo, o seu filho com Mary nasceu, com ele decidindo que deixaria o filho ser o que quisesse, quebrando um ciclo para a linhagem Becker.
Mary se tornou a primeira mulher a atuar em uma área da segurança pública, se tornando investigadora sénior do DP de Londres. Ela e o marido formaram uma equipe em diversos casos. Além disso, ela se tornou uma figura importante para o movimento dos direitos das mulheres, que começava a engatinhar.
Após um mês de tutoria de Pulget, Paul retornou a Genebra para cursar na universidade. Após se formar, se tornou bastante influente na filosofia moderna. Ao completar trinta anos, decidiu ir para os Estados Unidos, onde conheceu sua esposa, mas não teve filhos.
Aaron e Pulget retornaram para o seu tempo, indo até a árvore onde o alquimista havia entregado a caderneta para Victor. Ele entendeu que o legado era uma realidade, não algo moldável e viveu sua vida fazendo o que queria.
Assim se encerrou, aquelas Desventuras Surreais.
Fim da Parte 2