As Desventuras Surreais dos Becker - Capítulo 8
— Saiam desta cidade, arruaceiros — o arcebispo gritava para Arthur, Pulget e companhia — e não voltem mais. Já causaram muita euforia com o povo — abaixou a voz, para que as pessoas não pudessem ouvir — ouvi alguns deles questionando. Tem noção da gravidade disso?
— O clero não precisa mais se preocupar conosco — Petry informou de forma pouco amigável ao arcebispo — já cumprimos nosso objetivo nesta cidade.
— Excelente. Que Deus os conduza em sua peregrinação. Agora, fora!
A trupe seguiu a estrada na montaria — exceto Luther, que acompanhava o galopar dos cavalos a pé com tranquilidade — Cheios de suprimentos, que durariam pelo menos cinco dias. Sua maior preocupação no momento era se a pista do destino de Herbert posterior a Wittenberg procedia.
Petry tirou um mapa que conseguiu nos cafundós da cidade, para lhes revelar os próximos passos da jornada:
— Muito bem, crianças. Prestem atenção — os outros se achegaram ao seu cavalo, para compreender melhor a explicação — como podemos ver, há um vilarejo aqui perto. Segundo fontes de Wittenberg, não é um vilarejo muito popular. Portanto, pode ser um local suspeito. Estejam atentos.
— Sendo um local suspeito, porque iremos para lá? — Luther perguntou, caminhando a passos largos sem parecer fazer esforço algum.
— Precisamos de um lugar para descansar essa noite, não é óbvio?
— Descansar? — Por um momento o monge pareceu confuso — Ah sim. Esqueci que vocês humanos precisam desligar o cérebro diariamente para recuperar as energias. Pois eu não preciso disso. Argh, desse jeito vai demorar pra recuperar as teses.
— Então porque o sabichão não vai sozinho na frente? — Petry soltou, já cansado da loucura do homem afetado em achar que era realmente uma entidade cósmica.
— Porque julgo imprudente avançar isolado contra uma ameaça desconhecida.
— Como eu imaginei — O alquimista então pigarreou, para continuar sua explicação — Bom, tenho mais novidades a contar, mas acho melhor quando estivermos no vilarejo. Vamos correr, rapazes e senhorita.
Eles avançaram a galopes velozes pelo vale estreito — a cena de Luther os acompanhando como um maratonista era impagável para a trupe — O clima, que já era frio, começava a esfriar ainda mais naquela região, afinal, o inverno estava próximo. Logo eles teriam de arranjar agasalhos para a jornada.
No meio da caminhada, Petry se achegou a Arthur e Pulget:
— Vejam, Luther vai morrer se continuar insistindo nessa loucura de entidade cósmica — Apontou para o monge, que começava a dar saltos seguidos de rolamentos para escapar de rochas no meio do caminho — a menos que os poderes adquiridos com a maldição do elixir sejam de uma magnitude que não imaginamos.
— Ou então o ser por detrás do casulo não-transcendental seja de fato uma entidade do cosmos — Pulget colocou em pauta.
— Acha mesmo, Pulget? — Petry perguntou em tom de deboche.
— Senti uma aura transcendental exalar de seu semblante, quando me encontrava no auge da peleja de nosso embate.
— Senhor Petry, pra mim ele continua sendo sim uma entidade cósmica no corpo daquele homem — Arthur insistiu — a forma como ele mudou de personalidade e comportamento, nunca vi nada parecido!
— Muito bem, amigos. Logo descobriram que estão errados, pois mesmo para o conhecimento da Sociedade Secreta dos Alquimistas, isso é absurdo demais.
O mestre de misturas então avançou. Arthur continuou a observar o monge demonstrando suas habilidades acrobáticas por um tempo. O sol começava a se pôr. Segundo o mapa de Petry, o vilarejo sinistro estava próximo.
Observando adiante, viu Julia. A garota galopava de forma suave — devia estar muito mais acostumada a andar de cavalo que o jovem aprendiz — Como sempre, ela parecia pensativa. Seus cabelos loiros bem cuidados, seu rosto solene junto dos olhos azuis deixavam qualquer um encantado.
Arthur se aproximou dela, a fim de tentar puxar assunto, o que parecia uma tarefa arriscada.
Mas chegando ao seu lado, não conseguiu expressar nada. O homúnculo em seu ombro estava absorto em seus próprios questionamentos. Durante toda a jornada observava os vales, pastos, bosques e florestas que deixavam para trás.
— Tem saudade de casa, Arthur? Da família? — Julia perguntou, fazendo o jovem se surpreender.
— Bom… faz mais de um ano que não os visito, mas sim, tenho saudades — Arthur decidiu que queria falar mais — meu pai é ferreiro e sempre teve orgulho do meu dom, apesar de me querer com ele na forja. Sinto saudade da minha mãe também. Sempre foi muito carinhosa, fazia tudo por mim. Consigo até lembrar do cheiro dos biscoitos que ela preparava no final de semana.
Julia o ouviu com atenção, chegando a sorrir e fechar os olhos. Ouvir o relato de Arthur a fez se lembrar do seu pai. Se sentiu confortável em contar um pouco sobre si mesma:
— Bem, minha mãe faleceu quando eu era bem pequena. Meu pai disse que logo depois que eu nasci, ela contraiu uma doença que afetou seus sentidos — ela fez uma pausa dramática — mas meu pai cuidou muito bem de mim, mesmo às vezes ficando ausente por conta da Sociedade, ele sempre se esforçava em me instruir. E quando ele não estava, minha família era o povo do vilarejo.
Arthur ouviu tudo meio perdido, prestando atenção mais na beleza de Julia do que em seu monólogo, mas foi capaz de pegar o cerne de sua fala.
— Defina, família — O homúnculo entrou na conversa, curioso.
— Família, Pulget, é o conjunto de pessoas que te amam, se importam e que cuidam de você — Julia explicou — não precisa ser necessariamente as pessoas que te conceberam, basta serem aqueles a quem você mais se importa e que te amam.
— Isso de fato foi muito… não consigo encontrar um adjetivo referente a minha impressão de sua explicação, fêmea humana.
— Fofo, é o que você quer dizer — a garota parecia muito encantada com o pequeno ser — Arthur, se importa de eu ficar um pouco com ele? Me deixou fascinada.
— A vontade — o jovem colocou o homúnculo no ombro de Julia.
Durante o resto da viagem, a garota explicou várias coisas ao homúnculo e até fez perguntas. Como Pulget não estava habituado com questionamentos diretos, acabou elaborando as respostas das formas mais mirabolantes possíveis, fazendo Arthur e Julia gargalharem.
Algumas horas de viagem seguiram, até que enfim, na calada da noite avistaram o local a qual rumavam.
Avançando juntos e atentos, eles adentraram o sinistro local, que de fato, exalava uma atmosfera mórbida. A névoa noturna permeava os poucos casarões e a catedral que ali havia. Visualizando a área, Petry avistou um hotel, que parecia grande o suficiente para lhes abrigar.
— Aquele está ótimo. Provavelmente possui uma lareira para podermos nos aquecer e assar os marshmallows e as salsichas.
Avançaram, um tanto temerosos. A sensação de estarem sendo observados os perseguia naquela noite sem estrelas. Até mesmo os cavalos pareciam apreensivos de pisar naquelas bandas.
Enfim chegaram à fachada do hotel escolhido por Petry. O vidro da janela estava completamente estilhaçado, a madeira desgastada. Não parecia o local mais amigável para se passar a noite, mas na falta de opções melhores, era o que lhes restava.
Prenderam as rédeas dos cavalos às estacas empunhadas na fachada. Mas na hora de entrar, todos pareciam receosos, exceto Petry e Luther. O monge adentrou a mansão sem rodeios, mas o alquimista observou Arthur, Pulget e Julia vacilarem em prosseguir.
— Qual o problema, crianças? — indagou incrédulo — vamos entrando. Antes de descansar faremos uma reunião.
— Mas… Senhor Petry! — Arthur mal conseguiu se conter, chegou a tremer um pouco de medo — não acha que… uma ameaça pode estar nos esperando por aqui?!
— Não há ameaça alguma. No máximo, ladrões soturnos, que não são páreos para nós. Vamos entrando, nosso tempo é curto.
Os três medrosos se entreolharam. O homúnculo — ainda no ombro de Julia — parecia em pânico. De fato, nunca presenciou um local com uma atmosfera tão tensa. Nem mesmo no casarão de Donovan Aurora.
Mesmo assim seguiram Petry até o interior da mansão. Era um local razoavelmente largo. Cruzaram a recepção e seguiram para as escadas, rumo ao segundo andar.
O mestre de misturas foi até a sala de jantar, onde havia uma lareira apagada. Dos bolsos do casaco, revelou uma pedra e um pedaço de madeira. Ele então se virou para o trio ali reunido — Luther explorava a mansão, para fins próprios.
— Estão vendo isso? — estendeu as mãos para lhes mostrar a pedra e o pedaço de madeira — Nós, verdadeiros alquimistas, usamos isso para acender fogo (defina, fogo). Uma coisa fascinante, não? Mas seria impossível acender a lareira com esses dois aqui. Pois bem, eu possuo um truque, minha marca registrada.
Esfregou os dois materiais, a fim de produzir uma faísca e gerar fogo. Mas o seu truque se revelou quando, em vez de uma pequena fagulha de chama começar a se espalhar pelo pedaço de madeira — o que já seria surpreendente — acabou causando uma verdadeira explosão dentro da lareira.
‘’Uau’’, os três exclamaram após verem a lareira acesa com êxito.
— Vamos, Arthur. Prepare seu elixir, antes que uma inconveniência ocorra.
Colocando um pouco de água do cantil em uma chaleira, o jovem a levou até o fogo, no intuito de fervê-la. Enquanto isso, retirou um pedaço da carne de guepardo da bolsa no coldre — a carne começava a apodrecer, mas segundo Petry, isso não afetava o efeito.
Julia, já sentada na mesa de jantar, apoiava uma das mãos na cabeça. Estava exausta pela viagem, mas como o mestre de misturas insistia em fazer uma reunião, tentou se distrair com Pulget. O homúnculo encontrou um entretenimento na mesa: materializar uma bolinha e empurrá-la para queda livre no outro lado da mesa, sua missão era resgatar a bolinha antes que esta caísse.
Quando enfim a água começou a ferver, Arthur tomou a chaleira e jogou a água dentro de um dos balões de vidro. No outro, lançou um pedaço da carne quase pútrida de guepardo. Misturou os dois conteúdos, da forma como foi instruído e voilá!
De uma mistura aparentemente sem sentido, um conteúdo líquido gasoso surgiu — parecia delicioso — Arthur guardou o elixir em um frasco, não falharia mais quando estivesse diante de outro combate.
— Muito bem, senhores e senhorita… onde está o monge?
No mesmo momento Luther surgiu, como um fantasma. Chegando a assustar Arthur, o quase fazendo derrubar o frasco com o elixir recém preparado.
— A vistoria foi feita, não há nenhum ser não-transcendental vivo aqui além de vós — informou com a maior segurança do mundo.
— Certo, vamos começar essa breve reunião. Por favor, sentem-se todos — assim que todos se acomodaram, Petry continuou — Bom, creio que a informação que todos desejamos saber é: para onde foi Herbert?
Arthur se ajeitou mais na cadeira. Pulget deixou as pernas caírem, ficando sentado no meio da mesa, com a bolinha ao seu lado. Julia quase se levantou, com as mãos negras surgindo nas paredes. Luther ficou indiferente.
— Vou ser direto: um qualquer num beco de Wittenberg me informou que havia um alquimista correndo para fora da cidade, junto dele havia um outro homem trajado com vestes de arcebispo. Esse homem resmungava ‘’caverna’’. Óbvio que a descrição era exata de Vagner e seu irmão — Petry então sacou o mapa, o posicionando no centro da mesa. Pulget saiu do caminho — eu arranjei esse mapa com um peregrino, por coincidência, há a localização de uma caverna não muito longe daqui. Eu perguntei do que se tratava e ele disse que era apenas uma caverna isolada, e, que não era muito recomendado de se visitar por, segundo lendas, haver um urso feroz morando lá…
— Então é pra lá que Herbert está indo? — Julia indagou — para que procurar abrigo em uma caverna tão perigosa?
— Eu acho que sei a resposta! — Arthur se posicionou — a caverna é um local seguro para o inverno. Talvez ele pretenda passar uns dias ali.
— Seu palpite é válido, Arthur — Petry disse com sinceridade — mas não creio que tenha pego o que peguei com essa informação.
— Primeiramente — foi o homúnculo quem apontou — quantas cavernas existem neste largo espaço verde e azul chamado Terra?
— Essa não é a questão, Pulget…
— Eu sei o motivo — foi Luther quem disse, se pondo de pé e caminhando pela sala, pensativo — vocês humanos são tão lentos. Não está claro que há uma coisa naquela caverna que Herbert pode desejar?
Todos ficaram de boca aberta, exceto Petry, pois era exatamente isso que ele havia pensado.
— A Pedra Filosofal?! — Arthur e Julia disseram em coro.
— Precisamente. Não é uma certeza, mas tudo indica que sim, segundo meus conhecimentos — O alquimista se virou para eles, encarando as chamas crepitar na lareira, sombrio — chegou a hora, amigos. Se Vagner está a caminho daquela caverna, é bem provável que vá demorar um tempo até conseguir entrar e achar o que deseja, pois precisará matar o urso. Iremos partir pela manhã, então é melhor todos irmos descansar, amanhã será um longo dia.
Após o discurso, todos foram para seus quartos, finalmente descansando depois de um longo dia.
Arthur acabou caindo no sono após muito pensar sobre como impediriam o oponente. Chegou a ter pesadelos com uma caverna escura e densa. Logo em seguida, quando achou que estava sozinho, avistou a silhueta de Julia no fundo da caverna. Suas mãos sombrias começaram a deslizar em sua direção, prontas para lhe fazer uma massagem…
Blim, blim!
O ecoar de um sino de mão começou a se espalhar por todo o vilarejo. Arthur levantou com tudo, achando aquilo muito suspeito. Pulget estava observando a janela —não fazia ideia de como ele foi capaz de chegar ali.
— Art, meu companheiro, creio que temos problemas.
Ao chegar na janela, o jovem avistou o problema apontado pelo homúnculo. O som do sino vinha da catedral, e um homem misterioso cantava uma oração um tanto distorcida em frente a sua fachada; estava trajado como um verdadeiro padre.
— Esse cara sempre esteve aqui?! — Arthur indagou — bom, vamos descobrir agora, Pulget.
Com o frasco de elixir na mão, os dois desceram até a recepção, onde encontraram Luther. O monge estava parado como uma estátua no meio do ambiente, uma cena meio incômoda.
— Não está ouvindo os sinos?! — o jovem perguntou, impaciente.
— É uma coisa para se importar? — o monge questionou, sem sair daquela posição de estátua.
— Sim.
Luther então se colocou em posição de combate, após mais uma cambalhota marcante.
— Vamos verificar — disse, já deixando o hotel.
O trio se direcionou até a catedral. Seja quem fosse aquele padre, não parecia dos mais confiáveis.
— Abençoe nossa, missa, ó Deus — o homem de baixa estatura e aspecto franzino ia dizendo — que esses seres puros consigam se encher ainda mais de luz.
Ao chegarem na fachada da catedral, nada disseram. Uma pequena poça de água separava eles do padre. Aguardaram pacientemente o estranho terminar de rezar. Ao abrir os olhos, o tal não pareceu nenhum pouco surpreso de ver desconhecidos ali.
— Oh, visitantes — disse, abrindo um sorriso tão largo que soou um tanto assustador — Deixem me apresentar, sou o Padre Valentin, sacerdote do próprio Deus, separado do clero. Como devem imaginar, não estamos acostumados a receber visitas.
— Defina, não estamos.
— Exato. Mais alguém mora aqui? — Arthur reforçou a pergunta.
— Mas é claro! — Valentin então se virou, foi até as portas da catedral e as escancarou. De lá, emanava um cheiro horrível de podridão — Eu e todas as almas puras arrancadas dos ventres de suas mães impuras. Pelo que vejo, vocês também são impuros, então se preparem para serem purificados YO-HOOOOOOOOOO!
O padre fanático, de forma inesperada, sacou dois balões de fundo redondo abaixo das vestes. Já havia conteúdo nos balões; em um havia azeite, enquanto no outro, apenas água (benta).
— Você… é um monstro, um biruta, um doido de pedra — Arthur sacou seu frasco de elixir, com uma sede por combate como nunca sentiu antes — você vai pagar!
Após feita a mistura, Valentin bebeu seu elixir, juntamente com Arthur. Em poucos segundos, ambos estariam preparados para o combate.