As Desventuras Surreais dos Becker - Capítulo 2
Arthur estava completamente adormecido, em um sono sem sonhos, até risadas ao longe invadirem sua cabeça, o fazendo acordar no mesmo instante.
Notou que já era bem tarde da noite. Trovões cortavam o céu, as nuvens decidiram dar uma volta para o sul. O jovem se levantou, avistando ao longe três homens caminhando pela estrada. Dois eram altos e um menor e mais velho, que ria com gosto.
Seu olhar percorreu até a cabana de seu professor, notando que ela estava aberta e fumegando… Pegando fogo?!
— Não pode ser! — ele exclamou, disparando rumo ao local.
Chegando lá, ele notou que um pequeno incêndio começava. Mas não foi isso que o deixou mais assustado.
— Professor!
Ele foi até o corpo estatelado de Paracelso, já pálido. Sangue inundava o soalho. Aquela situação era toda muito inesperada e desesperadora. Não sabia o que fazer, não tinha quem chamar.
Em alguns minutos todo aquele lugar estaria em chamas, o corpo de seu mestre carbonizado e anos de estudo perdido. Arthur não podia fazer nada exceto se ajoelhar e chorar. Se fosse o caso, morreria ali mesmo, já que seu sonho estava acabado assim como aquela cabana.
— Ei, você — ouviu uma voz fanha, sem emoção alguma — quer deixar de existir, assim como ele?
Arthur encarou a criatura com certa indiferença, pois sabia que era Pulget, o homúnculo, criado no dia anterior pelo professor. Mas até onde lembrava, ele não sabia falar.
— O que aconteceu aqui? — Perguntou com aflição — como isso aconteceu?
— Você repetiu a pergunta duas vezes? Interessante.
— ME DIGA!
— Foi o alquimista — Pulget respondeu, se encolhendo — É assim que se fala, não é? Ele veio aqui e foi deselegante com o anfitrião, é o anfitrião que se diz, né?
— Espera, eram três homens?
— Defina, homens.
— Eram três indivíduos?
— Defina, indivíduos.
— Argh. Eram três?
Pulget contou nos quatro dedos de sua mão e, após uma pequena pausa, confirmou com a cabeça. Na mesma hora, as chamas aumentaram, se alastrando por quase toda a cabana. Eles precisavam sair dali.
— Estou apreensivo e arrepiado diante de tal situação, devíamos nos retirar do recinto antes que deixemos de existir também.
— Não — Arthur discordou veementemente — Meu professor… seu corpo, suas coisas.
— Mas ele já deixou de existir, por que você quer o corpo dele? Aliás, que palavra estranha, corpo… Eu acharia melhor definir como ‘’casulo de existência não-transcendental’’.
Arthur avaliou as possibilidades. De fato seria impossível sair dali com o corpo de seu mestre, muito menos com algum bem. O jeito era fugir dali e, se vingar do assassino de Paracelso, pois fosse quem fosse, era um traidor.
— Vamos — ele disse, colocando o homúnculo nos ombros e saindo disparado dali.
Bem na hora, a cabana começou a desabar. Arthur estava na porta, mas acabou tropeçando nas próprias vestes e desabando no chão para fora da cabana. A ponta de sua veste acabou sendo queimada.
— Ah não, não, não! — ele começou a bater a ponta e assoprar, até finalmente conseguir impedir que morresse queimado de forma estúpida.
— Ufa — Pulget disse, sua falta de expressividade incomodava um pouco Arthur, mas não podia esperar mais de um ser nascido fazia menos de quarenta e oito horas.
Ambos assistiram a cabana ser consumida pelas chamas, junto de suas esperanças. Agora Arthur era apenas um andarilho sem volta para casa e Pulget, apenas uma criatura esquisita e ingênua.
— Não, isso ainda não acabou — Arthur disse, com determinação — Vamos atrás desses homens e vingar o professor.
— Defina, vingar.
Mas sem dar atenção a tal questionamento, Arthur simplesmente saiu disparado pela estrada, com o homúnculo nos ombros. Pulget quase caiu, sentindo adrenalina pela primeira vez.
Seguiram um trecho cansativo, cruzando uma área rural, até finalmente avistar os três homens ao horizonte do vale.
Mesmo cansado, Arthur acelerou o passo. Quando estavam a quinze metros de distância dos três, gritou:
— Esperem, vocês!
Herbert e seus capachos, que estavam imersos em uma discussão sobre os próximos passos — exceto Saymon, que era um excelente ouvinte — se viraram com grande confusão para Arthur e Pulget.
— Ora, ora… o que quer, garoto?
— Vocês vão pagar pelo que fizeram com o professor!
— Não foi nenhum pouco… educado, acho que é assim que se confabula, não é?
Apenas naquele momento o alquimista notou que junto do garoto havia um homúnculo, o que não deixou dúvidas sobre quem se tratava.
— Arthur Becker, o tal aluno favorito de Paracelso, como pude ter esquecido — Herbert deu uma risada rouca, talvez tenha rido além da conta naquela madrugada — Não há nada que você e seu amigo homúnculo possam fazer. Eu já tenho o que é necessário para preparar o Elixir da Vida e me tornar o alquimista supremo.
— Obrigado por delatar suas intenções não educadas — Pulget expressou — irei tabular em minha consciência.
— Eu não vou deixar você roubar a pesquisa mais importante, devolva agora!
— Senão o quê, jovem? Vocês estão em desvantagem aqui. Duvido que tenha trazido um elixir de poder consigo.
— Um o que?
— Viu só, não tem a menor chance — Herbert tirou um frasco do bolso e entregou a Saymon — Trucide-os, Saymon. Não tenho muito tempo a perder por aqui, vai que aquele curioso do Petry resolveu xeretar. Vamos, Fagner.
E assim, os irmãos Herbert caminharam adiante, deixando Arthur e Pulget com um grande problema.
— Argh, aquele covarde. Não temos a menor chance contra ele.
O homem de quase dois metros bebeu o conteúdo do frasco e caminhou até eles. O sol começava a se pôr, as nuvens decidiram voltar.
Eles tinham duas opções, ou correr ou tentar passar pelo brutamontes mudo.
— De fato este um tem uma alta estatura — Pulget comentou, ainda totalmente apático — um devaneio não ortodoxo veio a minha consciência a pouco… Bolas.
— Bolas? Que história é essa? — Arthur perguntou, agora muito irritado com a aleatoriedade do homúnculo em uma situação delicada como aquela.
Saymon estava a apenas cinco metros deles, Arthur ia retrocedendo lentamente os passos, ainda tentando pensar em algo.
— Isso mesmo, camarada consciente, bolas… bolas de cunho pouco comprido, se assim posso falar.
— Isso não faz nenhum sentido, será que dá pra ficar quieto enquanto eu penso?
Mas um fenômeno inesperado ocorreu. Pulget mentalizou bolas, e uma bolinha cromada surgiu entre suas duas mãozinhas. Pela primeira vez, Pulget sentiu o peso.
Quando Arthur notou o feito do homúnculo, não pensou em nada exceto em como eles estavam ferrados.
— Não dava pra ter pensado em uma espada ou coisa do tipo?
— Não creio que funcione de acordo com tal propensão — ele sentia um magnetismo manter a bola flutuando entre suas mãos, cuja física funcionava como um estilingue.
Pulget podia não saber o que era um estilingue, mas o jeito com a bola se comportava lhe induziu a disparar contra Saymon, pois quem sabe o efeito fosse o mesmo que o professor sofreu quando Herbert perfurou seu estômago, ou seja; fazer o inimigo perder a capacidade de existir.
Esperou o inimigo se aproximar mais, a ponto de ficar dois metros próximo deles. Arthur já se encolhia, esperando pelo pior, quando Pulget manipulou a bola e disparou contra a testa do inimigo, já que era de lá que vinha a consciência.
Deu certo!
Saymon caiu no chão, duro. Demorou para Arthur se dar conta do feito do homúnculo, ficando espantado.
— Não acredito — disse com empolgação — Matou um homem de quase dois metros com uma bolinha? Você é praticamente o Rei Davi, Pulget!
— Não conheço este um, mas tal afirmação me fez internalizar um sentimento positivo, penso que devia retribuir tal… Elogio? Essa é a palavra?
— Sim, Pulget, essa mesma — Ver o primeiro inimigo derrotado deixou o aprendiz de Paracelso contente, pois por mais que tivessem um longo caminho para trilhar. Agora ao menos sabia que seria capaz…
Mas de repente, algo estranho aconteceu!
O corpo de Saymon começou a ser coberto. Uma espécie de casca foi se formando ao redor de seu corpo. Arthur observou aquilo com curiosidade e medo ao mesmo tempo.
Ao fim, o corpo do inimigo foi coberto por uma casca no exato formato de um ovo e um som agudo começou a soar, se tornando mais frenético à medida que os segundos passavam.
— Mas que merda é essa? — Arthur perguntou. O som então chegou ao limite — AH NÃO!
Ele se virou rapidamente e se afastou o máximo que conseguiu do ovo gigante. Sua intuição estava certa, o ovo explodiu, fazendo Arthur e Pulget serem atingidos por uma onda de choque e rolando pela encosta, razoavelmente feridos.
Ao se levantar, Arthur sentiu as costas doloridas, tinha certeza que pelo menos uma costela havia partido. Olhou para o lado e viu Pulget na grama, que não parecia ter se ferido tanto.
— Essa foi por pouco — o jovem disse, aliviado — É O QUE?!
Ao olhar para a estrada acima da encosta, preferiu pensar que havia enlouquecido. Lá estava Saymon, diante de seus olhos, no topo da encosta, os encarando, sem nenhum ferimento.