As Desventuras Surreais dos Becker - Capítulo 11
O jovem Adam observava seu pai preparar um elixir. Com destreza e estilo, Gunther Wolfgang Petry despejava vinho e areia em dois balões de fundo redondo.
— Ingredientes, Adam, pense neles — Gunther disse, gesticulando exageradamente, no intuito de reforçar o ensinamento ao filho — o básico na arte das misturas é saber que: os dois ingredientes servem como vestígios para a habilidade que possuirá após o ingerir. Se não levar isso em consideração, é bem provável que crie um elixir amaldiçoado, entendeu?
— Sim, pai — Adam anotava mentalmente tudo que lhe era ensinado.
— Ótimo. Lembre-se também: o ser humano, a maioria deles, só consegue aguentar o efeito de uma mistura, ingerir outros elixires pode lhe trazer sequelas irreparáveis. Portanto — Segurou firme a boca dos dois balões, logo em seguida, misturou ambos os conteúdos. Ao fim, jogou o elixir pronto em um pequeno frasco — guarde esses dois ingredientes, areia e vinho, essa será a sua mistura… mas não beba agora, isso vai ficar para a parte do treinamento prático de suas habilidades.
Impressionado com a habilidade do pai, Adam contemplou a bebida gasosa da cor bege presa no frasco. O modo de preparo parecia deveras interessante. A ciência por trás das misturas sempre fascinou o jovem aprendiz de alquimista, cujo sonho era se tornar o maior do mestre de misturas, como seu pai.
— Muito bem, garoto, acho que por hoje é só — Gunther mexeu em uma cesta ao lado da mesa de ingredientes, tirando de lá dois pães enormes e uma garrafa de leite — vamos comer, sohn.
Adam devorou tão rápido seu pão, que quase se engasgou, precisando da ajuda de seu pai e uma golada de leite para aliviar. No fim, os dois gargalharam da situação. O companheirismo de pai e filho era grande, já que ambos compartilhavam da mesma ambição.
— Pai, não sei se eu já lhe fiz essa pergunta… há uma mistura que nunca foi feita?
— Bom, Adam, generalizando, poderíamos dizer que sim — Gunther esfregou os dedos sobre o grosso queixo, pensativo — mas como já lhe ensinei, misturas amaldiçoadas não são catalogadas, portanto não contam.
— E quantas misturas funcionais estão catalogadas?
— No total? Temos cerca de trezentas misturas perfeitas catalogadas. Mas o que quer saber exatamente?
— Se há alguma mistura… uma mistura perfeita que nunca foi preparada.
— Ah, claro — Gunther então se levantou, indo buscar um de seus diários apressadamente, trazendo até o jovem — eu estava aguardando o dia em que me perguntaria isso, Adam!
Empolgado, Gunther abriu o diário e revelou uma fórmula relativamente complexa, a qual Adam não entendeu bulhufas.
— Essa mistura é um segredo da Sociedade, mas que logo em breve toda a Europa terá conhecimento, mas não importa.
— Por que não importa? É uma mistura difícil de se fazer?
— Não é bem isso. Primeiramente, o ingrediente número um é um conjunto de ervas e folhas de plantas, não sei quais exatamente, mas não importa. O ingrediente final é a verdadeira incógnita! — Estreitando os olhos, o alquimista demonstrou assombro em uma expressão cautelosa — a Pedra Filosofal!
As peças então se encaixaram. Se tratava de um mito que corria entre os alquimistas comuns, aqueles que lidavam com a ciência natural limitada. Com a Pedra Filosofal, poderia ser feito o Elixir da Vida, que concedia imortalidade a quem bebesse. O segredo, ao que tudo indicava, era o fato de a Pedra realmente existir e estar escondida em algum lugar.
— Sim, o Elixir da Vida é a mistura mais que perfeita, a única catalogada que nunca foi preparada. Claro, há também a Mistura Meta, mas essa desconsideramos por ser um tabu.
— Então isso quer dizer que falta apenas a Pedra Filosofal para que a mistura possa ser preparada?
— Hehe, aí você me pegou. Sabemos que ervas e flores são os ingredientes acompanhantes, mas não sabemos exatamente quais delas são os reais ingredientes. Mas como ainda nem sequer encontramos a Pedra Filosofal, essa parte não é muito estudada, pelo menos não é o que os pesquisadores dão prioridade.
— Então… — A euforia que crescia no jovem Petry era tamanha, que não conseguiu se conter. Levantou da cadeira, encarou o pai com uma expressão alegre e um semblante inquieto — quer dizer que se encontrarmos a Pedra Filosofal e preparar o Elixir, seria…
— O maior feito de um alquimista na história da humanidade!
Ambos comemoraram naquela tarde, apenas diante da expectativa de um dia alcançarem seu objetivo.
Foi exatamente por isso que Adam Wolfgang Petry aceitou a missão de caçar Vagner Von Herbert, pois aquela parecia ser a oportunidade de alcançar seu objetivo. Assim, poderia cumprir a promessa de seu pai, que morreu adoecido, com a esperança de que seu filho alcançasse o objetivo que ambos iniciaram naquele dia comum de ensino.
***
Eu ainda conseguirei, pai. Prometeu o alquimista, diante do novo oponente.
Com o seu espelho tridimensional já materializado, tudo que precisava fazer era encontrar uma forma de investir e salvar Fritz.
O demônio do vale então rugiu, criando uma forte corrente de vento, elevando o nível da grama baixa, fazendo Petry ter de proteger o rosto com os punhos. A primeira possibilidade que já poderia descartar seria de tentar iludir o monstro com seu espelho, pois a criatura aparentava ser totalmente selvagem.
Preciso lidar com essa coisa como se fosse um urso feroz… se eu puder derrotá-lo, não é o animal da caverna quem vai nos impedir de encontrar a Pedra Filosofal.
Na mesma hora, os companheiros chegaram, todos surpresos com a visão da criatura.
— Não fiquem aí parados — Petry os alertou — essa coisa é obra de Herbert!
— Mas, senhor Petry, o poder das misturas funciona contra essa coisa? — Arthur perguntou, com um frasco cheio de elixir já em mãos.
— Árvores também são seres vivos, Arthur — enfim, a criatura investiu, usando um de seus galhos como chicote. Por sorte, o alquimista conseguiu desviar com um sobressalto certeiro — SALVEM ÀQUELE HOMEM, EU CUIDO DA ÁRVORE.
Foi só nesse momento que notaram Fritz preso em um dos galhos, no topo da árvore. Sem perder tempo, o aprendiz de alquimista bebeu todo o conteúdo do frasco, logo sentindo os efeitos do elixir.
‘’Morra!’’, ele gritou sem necessidade. Correu de forma desajeitada até a copa, mas quando estava a um metro da área coberta pelas sombras, foi surpreendido.
Uma raiz longa emergiu do solo como uma estaca. Se Arthur não possuísse a super agilidade, provavelmente seria empalado, morrendo de forma ridícula ali mesmo.
Merda. Ao se posicionar à esquerda da raiz-estaca, outras foram surgindo. À medida que circulava a área coberta pela copa da árvore, as raízes surgiam para proteger a arena de combate à qual Petry se encontrava aprisionado. Pelo visto, Herbert pensou em tudo para prender o alquimista em uma espécie de armadilha.
Mesmo assim, o jovem não desistiu, tentando socar com toda a sua força as raízes. Mas no fim conseguiu apenas deslocar o mindinho, pois aquelas estacas pareciam mais duras e firmes que ferro.
— Não vai dar certo, Arthur — Julia gritou, fazendo o garoto desistir da tentativa — Herbert sabe o que faz. Pretendia prender o Senhor Petry ali dentro, e conseguiu.
— O que faremos então? — ele perguntou, se juntando aos amigos, segurando a mão esquerda e massageando o mindinho.
— Creio que talvez minhas bolas possam ser de utilidade — Pulget disse, materializando uma pequena esfera cromada — usando cálculos, posso dizer que se atingisse o galho onde o melancólico está preso, este despencaria de uma queda segura, para fora da arena fechada.
— Talvez suas bolas sejam exatamente do que precisamos, Pulget — Julia apontou para Petry, que usando seu espelho como escudo, conseguia bloquear as perigosas investidas do monstro árvore — se conseguir distrair o monstro, pode dar uma chance para o Senhor Petry pensar em algo.
Dito isso, o homúnculo preparou o arremesso. Em três segundos, disparou a bolinha, que percorreu de forma veloz o caminho desejado. Mas, assim que estava prestes a colidir contra o galho que prendia Fritz, um outro rebateu, com uma agilidade surpreendente.
A bolinha então foi arremessada de volta ao remetente, acertando em cheio o homúnculo, fazendo ele despencar do ombro de Julia.
— Ah não — A garota foi até o pequeno ser, que não parecia tão machucado — você tá bem?
— Defina, bem.
— Ótimo, agora não temos mais opções para ajudar o Senhor Petry — Arthur reclamou, se voltando para o monge, que todo esse tempo ficou inerte, observando a situação — Ei, Luther. Cadê aquele seu poder de abrir o vão da inexistência? Seria muito útil agora…
— Quem me concedeu aquele poder foi o soberano Skript, só usarei novamente quando for de seu desejo.
— E por que não é do desejo dele agora? Anda logo, por acaso ele não consegue ver o que tá acontecendo aqui?
— Já disse, garoto Arthur. Se ele não me concedeu tais poderes, deve ter seus motivos.
Droga. O aprendiz de alquimista começava a se desesperar, pois se encontravam em uma situação crítica.
— Eu acho que consigo salvar o homem — Julia disse, receosa — Está escuro, posso usar minhas mãos para tirá-lo de lá, pelo menos.
— Tem certeza, Julia? — O aprendiz de alquimista parecia preocupado — essa coisa é forte demais…
— Precisamos ajudar o Senhor Petry, de alguma forma.
A garota se afastou da trupe, aproximando-se das raízes-estacas que emergiram no mesmo instante. Sem temer, ela encarou a criatura do tronco, como se ela fosse o próprio Herbert. Poderia não ter força para danificar o tronco, mas alguns dos galhos tentáculos ela era capaz de arrancar.
Se agachou, o vestido cobriu a grama ao seu redor. Se focou no solo com o objetivo de liberar a maldição de seu corpo. Isso exigia concentração, então fechou os olhos, pensou no ódio acumulado dentro de si, logo sentindo o mórbido poder externalizar.
As mãos deslizaram pela grama, tingindo o solo de um negro escorrido, que atravessou as estacas sem dificuldade. À medida que se aproximava do tronco, os dedos grossos iam emergindo, criando uma visão tão horripilante quanto a do demônio do vale.
Petry não se deixou distrair pela manifestação de Julia no combate. Seu espelho repelia toda investida dos galhos tentáculos. Logo seria necessária uma nova estratégia, caso não quisesse permanecer eternamente naquele combate.
As mãos sombrias escalaram o tronco de forma visceral, fincando as pontas afiadas dos dedos na madeira. A criatura não se deixou abalar, mesmo sentindo o invasor por sua casca. Ao chegar na copa, Julia guiou as mãos até os galhos, que reagiram. Dezenas deles começaram a chacoalhar freneticamente para afastar o invasor, mas não teve sucesso, pois as mãos negras eram firmes em agarrá-los.
— SENHOR PETRY — a garota gritou, fitando o alquimista, com fúria nos olhos — ACABE COM ELE!
Torcendo violentamente o galho em que Fritz estava preso, conseguiu libertar o homem, o fazendo despencar da arena de combate. Julia usou uma das mãos para impedir que o homem caísse com tudo na grama.
A maldição cessou, com Julia se sentindo exausta.
Agora era só Petry e a criatura selvagem.
O tentáculo-raiz chicoteou com violência em sua direção, sendo repelido sem muitos problemas pelo espelho, que desde o início do combate serviu como um escudo.
Precisava de um plano para atacar. Primeiro pensou de que forma poderia usar seu espelho: usar ilusionismo não daria certo, considerando a selvageria da criatura, tampouco seria capaz fazer o ataque refletido, para isso, precisaria estar em um ângulo muito específico, inviável naquele momento.
Qual a fraqueza de uma árvore? O alquimista indagou a si mesmo, com um sorriso maroto, obviamente sabendo a resposta, Fogo!
Enquanto repelia mais investidas, que não cessavam, varreu o perímetro da arena de combate, em busca de uma pedra. Avistou uma de tamanho médio, perfeita para o que planejava. Correu até o leste da arena, onde coletou o material de formato geóide.
Foi mais fácil ainda achar o outro item que precisava: um pedaço de madeira. Simplesmente catou um dos gravetos derrubados por Julia, quando esta salvou Fritz.
Voilá!
Com graveto e pedra em mãos, tudo que precisou fazer foi seu truque de mágica.
— Boa tentativa, Herbert — Começou a esfregar os dois materiais — conseguiu nos atrasar um pouco, de fato.
Assim que a faísca reluziu entre a pedra e o graveto, um estouro médio revelou chamas fortes irradiadas do pedaço de madeira. Sem perder tempo, o alquimista lançou o material incendiado contra o oponente… Acertou na mosca!
A esquerda da ‘’boca’’ do tronco vivo foi maculada pelas chamas, iniciando a combustão. Os ataques dos galhos-tentáculos cessaram e a criatura parecia assustada com o ocorrido, soltando um rugido agudo.
— Ah-há! — o alquimista comemorou, triunfante por terminar aquele combate de forma tão rápida.
Estamos quase lá, pai…
— MAS QUE DIABOS! — exclamou Fritz, que observava a cena de perto, sem nem ter se colocado de pé após salvo dos galhos vivos.
Petry também teve um transe de incompreensão. Do vão em formato de boca, uma enorme língua roxa surgiu e, em um movimento ligeiro apagou as chamas com a mesma eficácia de um balde d’água.
Raios.
A criatura então suspendeu a língua gigante para dentro do vão, rugindo novamente. Petry sabia que uma saraivada de investidas estavam por vir, então logo posicionou seu espelho como escudo.
Droga, vou ter que pensar em outra coisa.
Os parceiros, sem nada poder fazer para auxiliar, observavam apreensivos o desenrolar do confronto. O que parecia ser apenas mais um obstáculo no caminho, na verdade foi a maior carta de Herbert para impedi-los de chegar à caverna.
Para Petry, a inconveniência daquele embate já passava dos limites. Deu lugar a devaneios de outrora, pois não conseguia deixar de pensar em seu pai, o responsável por ele ter chegado tão longe.
— Filho — lembrou de suas últimas palavras, no leito de morte, um dia sem cor nem nuvens no céu — eu sabia desde o começo que esse dia chegaria, o dia que eu seria levado…
As lágrimas vinham sem esforço dos olhos âmbar do jovem Adam, vendo a pessoa mais importante, mais íntima e mais leal definhar diante de si.
— Me prometa, Adam, que vai seguir em frente, que vai cumprir nosso objetivo — uma crise de tosse fez o alquimista veterano se interromper.
Adam não era capaz de dizer nada, apenas acenou positivamente. A única coisa que queria naquele momento era ouvir o pai, pois sabia que seria a última vez.
— Escute, há uma coisa sobre as misturas, mais especificamente sobre as habilidades, que não te contei — Gunther Wolfgang Petry se permitiu um sorriso para o filho único — quando estiver em uma situação crítica, canalize todo o seu poder em um golpe final. Assim, poderá superar qualquer obstáculo, esse é um segredo que não abordam, pois quando se utiliza disso, aquela mistura nunca mais lhe concederá poder.
Aquela parecia a hora perfeita para se lembrar, mas isso não significava que era uma boa notícia.
Durante toda a jornada, fez de tudo para não ter que apelar para o ataque máximo, nem sequer cogitou contar para Arthur sobre. Pretendia usar aquela façanha contra o próprio Herbert. Mas diante das circunstâncias, teria de fazer aquele sacrifício, pelo bem da missão.
— Vamos ver quem tem mais truques aqui. ungeheuer — disse, se deixando ser acertado por um dos tentáculos na bochecha.
Para conseguir usar o ataque supremo, precisaria de algo a mais, pois na arte das misturas, a junção era fundamental em qualquer aspecto. De certo, a primeira coisa que pensou foi no fogo. Se a sua primeira investida se mostrou insuficiente para começar um incêndio na criatura de madeira, multiplicar por dez o ataque seria sem dúvidas, super efetivo.
Novamente se viu na tarefa de catar um pedaço de madeira e uma pequena pedra. Os localizou com facilidade, mas isso custou levar uma chicotada ardente de um dos galhos furiosos.
Muito bem, agora sim vamos esquentar as coisas. Tentando se divertir com a situação, para esquecer a consequência do seu próximo ato, sorriu. Eu lhe prometi, pai, e vou cumprir minha promessa, seja o que vier em meu caminho.
O espelho então ficou estático diante do mestre de misturas, repelindo os golpes enquanto este esfregava madeira e pedra. A pequena lasca de chama começou a surgir, como um fio de esperança. Tudo que o alquimista precisava fazer era canalizar o fogo em sua habilidade.
Ainda não está tudo perdido, pai, disse para si mesmo, iniciando o processo de transferência. Eu iniciei essa jornada sozinho, mas agora, tenho amigos para me ajudar. Todos temos nossos objetivos nessa missão, e vamos cumprir juntos. Pois acima de tudo, esse poder não pode estar nas mãos de um homem como Vagner Von Herbert.
A cor do espelho aos poucos ia se alterando, se tornando um escarlate reluzente. As propriedades do fogo iam sendo absorvidas, Petry usava toda a sua energia para forçar o máximo de poder possível no seu último golpe.
— Hora de acabar com isso! — bradou, cerrando os dentes. Os olhos refletiam o escarlate da sua última chance — AGORA!
O raio de luz quente implodiu do espelho, criando um magnífico efeito: cacos de vidro se espalharam por todas as direções possíveis, o impacto do raio de luz no oponente foi tão intenso, que logo todo o tronco, a copa e os galhos se encontravam incinerados.
Na calada da noite, o Demônio do Vale se debatia e soltava um guincho desesperado. Petry, cansado pela energia que gastou, se ajoelhou na grama suja. Contemplou os cacos do espelho, o qual jazia fragmentado para sempre.