A Vingança da Meia-Noite - Ato 2
Por um longo e incalculável tempo, tudo que existia em meus sentidos — se assim ainda os podia chamar — eram trevas. A escuridão envolvia minha existência acompanhada de um eterno e perfeito silêncio, a realidade em si, frigida. Sabia, sem precisar pensar, que aquilo era estar morto. O fim de todas as lutas e conflitos humanos, tudo findava neste vazio, ou ao menos era para acabar, não mais vivia, mas não tinha deixado de existir.
Era incapaz de formar pensamentos coerentes, contudo, um instinto que eu só poderia concluir ser espiritual me dizia que, vida e existência não eram exatamente a mesma coisa. Tudo parecia um infindável borrão. Por vezes, sabia de tudo que ocorrera e tinha perfeita claridade mental, no segundo seguinte, sequer lembrava de qual era meu nome enquanto as ausências físicas me confundiam. O silêncio, o escuro e o frio se mostraram uma combinação formidável.
Será que era esse o gélido inferno que tanto se falava nos textos sagrados? Trevas e frio intermináveis eram o destino de todos? Ou seria esta uma punição pessoal por almejar tanto? Nunca havia roubado, matado ou cometido qualquer pecado grave, porque então estava neste lugar senão pela obsessão com o futuro? Meus sonhos não passaram de ganância e isto foi minha perdição?
— Sinceramente garoto, nem morto você consegue parar de pensar um pouco?
Meus músculos, se ainda existissem, tensionariam. Senti-me endurecido feito pedra. Caso ainda estivesse vivo, meu coração estaria disparado e minha garganta travada. Uma voz subitamente se fez ser notada em meio a escuridão silente.
Risonha, suave e com um timbre levemente grave, parecia emitir um sorriso sonoro, seus tons mostrando o quão entretido estava. Tentei falar, apenas para me lembrar no instante seguinte que não era mais capaz. Fato que a voz logo apontou com um leve tom de desdém.
A forma como se comunicava era estranha, soava como uma entidade antiquíssima, com uma linguagem indecifrável engolida pelo tempo ao mesmo passo de que era capaz de compreendê-la perfeitamente.
— Sei que este é um estado novo de existência, criança — comentou, tentando soar paciente — Mas, se sabe que está morto, porque ainda pensa como vivo?
Que diabos esta voz estava querendo dizer? Me questionei, confuso com a dica.
— João, meu caro recém morrido, você já sabe o que fazer. — novamente a voz indicou — Pare de achar que precisa da vida por aqui, este não é seu lugar.
Não preciso de vida? E então, caiu a ficha. Eu estava morto, não precisava mais de um corpo para falar, se algo havia de falar por aqui, este algo seria minha alma. Não precisava falar como se estivesse vivo, porque eu não tinha mais essa restrição, não havia ar que precisasse vibrar para emitir sons, tudo era espírito. E então, disse:
— Onde é que eu estou?
Minha voz ecoou exatamente como se estivesse vivo, porém, ao invés de sair como um sopro de meus pulmões, ressoou por todas as direções, como se estivéssemos dentro dos meus pensamentos.
— Não está errado em pensar isso, mas este lugar não é exclusivamente seu. — A voz riu, entretida.
— Você pode ler minha mente?
— Mentes não são livros para serem lidos, garoto tolo. — a voz soou mais próxima, apesar de eu duvidar que o conceito de distância sequer existisse neste espaço — E mesmo se fossem, não é esse meu poder. Vamos João, faça a pergunta correta, aí poderemos conversar direito.
Vários questionamentos passaram por minha mente nos períodos em que era capaz de raciocinar, porém, toda vez que tentava dar voz a eles, a entidade fazia algum som aleatório, indicando claramente que não era esta a pergunta a ser feita. Ponderei sobre a minha morte, sobre o pós vida, céu, inferno, divindades, tormentos e tantos outros assuntos, mas todos foram rapidamente rejeitados pela voz. Até que finalmente, um traço de pensamento, que em qualquer outra situação seria óbvio, finalmente aflorou em meio a confusão mental.
— Quem é você?
— Agora sim garoto! — A voz retumbou por todos os cantos da escuridão — Viu só, não foi tão difícil, não é mesmo?
Um barulho semelhante ao estalar de dedos ecoou feito uma explosão e as trevas subitamente recederam. O cenário sombrio brilhou tão forte que por um instante pensei estar caminhando sobre uma estrela, porém, o efeito luminoso não perdurou. Quando me dei conta, me encontrava diante de uma vasta e luxuosa sala que parecia ter sido projetada para acomodar gigantes.
Quatro grandes pilastras de mármore com linhas douradas sustentavam a estrutura que se assemelhava a uma tenda. O chão, feito da mesma pedra, era decorado com linhas do mesmo metal que separavam o minério em imensas placas sólidas e extensivamente polidas ao ponto de quase reluzirem por si próprias. As paredes eram decoradas com toda sorte de desenhos bordados em ouro no material vermelho, dando a visão que se andava dentro de uma pintura eterna, sem começo ou fim.
No exato centro dos pilares, uma mesa branca de material desconhecido, que se assemelhava ao mesmo tempo com madeira e rocha, existia. Em seus quatro cantos, uma cadeira de composição semelhante a estrutura, sobre si, um aromático e extremamente atrativo banquete de grande variedade disposto em bandejas de algum metal pálido e fino, estranhamente similar a gelo.
Além disso, decorando o banquete, belíssimos copos tão reluzentes que pareciam ser feitos de diamantes preenchidos com um líquido dourado, este também continha um aroma irresistível que, se ainda tivesse um corpo, provavelmente teria disparado em sua direção para tomá-los todos.
De repente, dois fenômenos simultâneos ocorreram. Em cadeiras opostas, trevas tão negras quanto o vazio onde estava anteriormente e uma luz tão forte quanto a que cobrira minha vista segundos antes de surgir a sala se acumularam.
A escuridão emanava frieza e viscosidade, como se alguém tivesse misturado tinta preta com óleo e colocado no polo norte ao passo que a luz, por sua vez, emanava um calor que de primeira vista parecia insuportável, mas que rapidamente se mostrou ser a encarnação do conforto, me deixando tão rapidamente aclimado ao lugar que por vários momentos fiquei em silêncio. Minha atenção apenas voltou quando meu ver captou uma nova ocorrência.
Rapidamente, as trevas começaram a se transformar. Ventos carregados do cheiro de cinzas, fumo e morte adentraram a sala de cantos inexplicáveis, se fundindo com a massa sombria. Tomando então a forma de uma bolha de pura treva, a escuridão começou a se esticar para cinco lados diferentes. Duas pontas para baixo, duas para os lados e uma para cima que logo se converteram no formato genérico de pés, mãos e uma cabeça com olhos, todas sem feições distintas, parecendo um manequim.
Fumaça carregada de fuligem e podridão irrompeu da silhueta antes de formar uma nuvem em volta da figura obscura. Um estalo explosivo soou mais uma vez no ambiente. A bruma cinzenta rapidamente se retraiu e assentou sobre o corpo da figura, dando-lhe feições e vestimentas que formaram uma nova persona, bela e aterrorizadora.
Vestido em um elegante sobretudo preto com linhas verticais e botões cinzentos, calças do mesmo estilo e sapatos negros excepcionalmente encerados, um homem se manifestou numa das cadeiras em oposição ao forte brilho.
Sua pele, a pouca ainda exposta pois até mesmo as mãos eram cobertas por luvas acinzentadas, era pálida, tão branca quanto osso, em alguns pontos se mostrando quebradiça, leves traços de fumo negro escapando pelos vãos demais que revelavam um interior, por falta de palavra melhor, apodrecido. A carne debaixo da pele era preta, mais parecendo um pedaço de carvão do que material orgânico.
Seu rosto, tal como todo seu corpo, era magérrimo, a pálida derme praticamente colada com o esqueleto. Seus olhos eram um tanto afundados, decorados por profundas olheiras em volta das pálpebras ao passo que as orbes gelatinosas eram completamente negras, como se petróleo as compusesse.
O cabelo em sua cabeça, suas sobrancelhas e sua barba bem mantida eram todos tão negros quanto o vácuo do espaço. Descansando as mãos sobre uma de suas coxas que estava cruzada sobre a outra, o ser olhou brevemente em minha direção. Seus olhos abissais pareciam ser capazes de ver através do mais mísero dos impulsos neurais que um dia chegara a ter.
Se quando morremos somos capazes de ver um filme da vida, este homem certamente podia enxergar o filme de todo o universo. Com esta tão breve contemplação da minha existência, tinha a impressão de estar me desfazendo rapidamente e a qualquer momento nem mesmo a morte iria me ter em suas mãos. Se ele continuasse a direcionar sua atenção a mim por mais algum tempo, eu seria totalmente apagado. Contudo, antes que isso pudesse realmente acontecer, um leve sorriso, sinistro e confiante, brotou em suas feições antes que virasse seus olhos para o amontoado de luz que agora tomava forma.
Feixes luminosos adentravam o espaço de todos os cantos, atravessando matéria para se fundir com a silhueta reluzente. Tal como o homem formado de trevas e fumaça, outro elemento compunha a figura luminosa. Nuvens radiando todo tipo de cor começaram a se formar no espaço antes de rapidamente dispararem na direção do manequim brilhante, se fundindo.
Como se a luz estivesse sendo dividida por um prisma, raios coloridos em tons de arco-íris dispararam por toda a estrutura. Um deles acertou de raspão na confusa forma que agora me encontrava e instantaneamente me senti restaurado, os efeitos do olhar destrutivo do homem de trevas sendo revertidos, trazendo um agradável calor e um aroma floral que trazia múltiplos cheiros familiares e tantos outros que desconhecia, como se todas as flores tivessem sido condensadas em um único espécime.
As luzes se retraíram e o manequim começou a ganhar feições e vestimenta. Seus olhos, ainda cerrados, mostravam cílios e sobrancelhas, tal como seu cabelo, em tons verdes e castanhos. Em seu corpo, cuja derme era morena com um luzir esverdeado, um vestido branco, com padrões de raízes, escamas, penas e pelos se misturavam e se destacavam, alternando entre si de tempos em tempos, coloridas por luzes arco-íris.
Sua pele, diferente do homem, estava em perfeito estado, irradiando uma visível saúde que meus olhos jamais viram e que programa de computador nenhum era capaz de emular. Ouvi um inspirar e, no segundo seguinte, a mulher sorriu. Confesso que naquele momento, toda e qualquer preocupação que tinha desvaneceu feito névoa diante do vento.
Uma beleza maior e alegria mais intensa do que a expressa no simples gesto não existia, tinha certeza disso. O minúsculo movimento demonstrou tudo que a vida apresentava de bom, todas as sensações que construíam a felicidade. Se qualquer ser pudesse viver o que senti, provavelmente não iria fazer nada por toda sua existência, pois o que vi me passava a certeza de que nada era um problema. Fome, dor, guerra, doença e até mesmo a morte eram irrelevantes naquele momento.
A figura luminosa por fim abriu as pálpebras. Mesmo olhando apenas um fragmento da orbe pois sua atenção não estava virada para mim, notei que era distintamente dourada. Aliás, dizer que apenas eram douradas não fazia justiça a real grandeza daqueles olhos. Tão reluzentes quanto as estrelas do céu e ainda mais impressionantes que isso, a mulher parecia ter dois sóis atrás das finas camadas de pele.
Por um breve momento, as duas figuras se encararam em silêncio. Logo, porém, acenaram com as cabeças, um provável gesto de respeito e reconhecimento.
— Meu querido… — A mulher abriu sua boca e começou a falar, sua voz era como um sussurro da brisa e o canto dos pássaros, incomparavelmente melódica — Quantas vezes terei de lhe dizer que ambição não equivale a destruição?
— A criança era ambiciosa demais para seu próprio bem, não iria durar muito se não aprendesse uma lição. — O homem respondeu, sua voz levemente cantada e zombeteira, uma tinge de grave decorando a tonalidade.
— Em qual cenário é aceitável punir alguém por algo que não fez, meu querido?
As feições da mulher endureceram, por um momento, acreditei estar olhando para uma estátua de pedra. Os olhos negros do homem se arregalaram e suas mãos se ergueram na altura dos ombros.
— Em nenhum cenário meu amor, nenhum mesmo! — Ele soltou um risinho nervoso, sua voz baixando ao ponto de se tornar quase um sussurro — Mas o destino dele ia atrapalhar meu serviço.
— Morte! — A mulher subitamente esbravejou — Ele ia contribuir grandemente para descoberta da cura para pelo menos três das anomalias! Além de salvar milhares de vidas com suas próprias mãos! Seu destino era ser um dos maiores campeões da minha causa! — ela então ergueu uma de suas mãos em direção ao homem, apontando seu dedo indicador para ele — E mais uma vez, você interferiu com os meus campeões!
— Mas Vida! Se ele as curasse, a mortalidade baixaria demais e o planeta ficaria ainda mais desequilibrado com o hiper consumo dos recursos e… — O homem tentou argumentar, apenas para ser prontamente interrompido.
— Nada de mas, Morte! — A mulher retrucou — Sei bem que você não quer que isso aconteça, pois a extinção da humanidade só lhe traria uma carga imensa de trabalho para reaproveitar o material.
— E também porque o vácuo é bem entediante e a humanidade faz umas coisas bem interessante, afinal, sem entretenimento, até mesmo a morte pode morrer de tédio, né João? — O homem murmurou baixinho, seu olho esquerdo olhando por um instante na minha direção, dando uma piscadela antes de retornar sua atenção total para a mulher.
— De toda a forma — O homem continuou a falar — Independente da minha carga de trabalho, a extinção de todo o planeta também não lhe faria favor algum, ou quer me dizer que não se importa nem um pouco com todo o trabalho que teve para tornar a estrutura molecular do DNA adaptável ao stress externo para que a vida pudesse surgir neste planeta?
A mulher ficou em silêncio, cruzando seus braços, se negando a responder. Seus olhos reluzentes então se viraram na minha direção, pena claramente escrita em suas feições. Não sabia o porque disso exatamente, mas a tristeza da existência luminosa me deixava profundamente amargurado e entristecido.
— Peço seu perdão, minha criança… — ela disse lentamente — Sua vida era para ter sido tão mais longa, suas mãos trariam tanto bem para o mundo e todos os seus sonhos… — ela fez uma pausa, um sorriso surgindo novamente no canto de sua boca — Aqueles que eu mesma inspirei em seu sono, iriam se realizar. A esperança que lhe dei foi tomada pelas mãos de um dos seus, destruindo o belo caminhar que ainda havias de trilhar.
Em qualquer outra situação, eu me sentiria injustiçado, enfurecido além dos limites. Do jeito que falavam, eu parecia apenas uma peça, manipulada no tabuleiro pelas mãos insensíveis destes dois. Quando foi que minha vida se tornou tão barata!? Porém, ao ver o remorso que emanava da mulher, não conseguia sentir-me assim, era como tentar ficar irritado ao ver a própria mãe chorando, era impossível para mim.
— Nunca, pequeno, jamais fora barata. — a mulher respondeu pacientemente, uma sensação de ternura varrendo minha existência — Toda vida tem um potencial e valor incalculáveis até o momento em que a morte lhes leva, da mais breve á mais duradoura — Sua voz subitamente esfriou, o rosto novamente endurecendo enquanto sua atenção voltara para o homem — Além do que, não foi nossa ação direta que lhe causou o falecimento precoce, não é, meu querido?
— Claro que não, meu amor. — Ele respondeu, dessa vez com mais confiança, um largo sorriso de quem conseguiu chegar exatamente aonde queria surgindo em sua face, aumentando ainda mais o partir de sua derme óssea — O responsável por isso foi um dos seus garoto, um humano, um bem covarde e patético se me permite dizer.
Após um longo tempo escutando a discussão e vendo que o assunto se tratava exclusivamente de mim, criei coragem e comecei a falar.
— Mas mesmo indiretamente, você é culpado sim!
— Ora, pequeno João, — o homem riu —, eu não te matei.
— Você é a Morte, não é? Então você é responsável por isso! — Apontei um dedo para a figura luminosa — Até a Vida falou que você interferiu!
— E ela está certa — O homem concordou com um aceno da cabeça — Mas ao mesmo tempo, ela também interveio, alimentando-o fragmentos do futuro enquanto dormia para guiar seu caminho. — Ele então cruzou seus braços e sorriu — E se minha querida mexe com um destino, obviamente também possuo a autoridade para o mesmo.
— Mas você não fez nada de bom com esse poder! Eu fui morto na merda de um banheiro! Morri literalmente na merda!
— Ainda tem muita coisa que você não sabe garoto — o homem gargalhou — Mas isso não importa, já não é mais problema seu, você está morto. Agora, você é um problema meu.
— O que vai acontecer comigo?
— É para descobrir isso que você foi trazido até nós. — O homem respondeu — Como eu interrompi seu destino, obviamente que isso terá consequências para mim, afinal, a intervenção da Vida foi apenas um empurrãozinho enquanto a minha foi mais… Te jogar de um penhasco.
— Filho da…!
— ÊÊÊÊ — O homem subitamente levantou um dedo, virando levemente o rosto e revelando dentes brancos e ressecados — Você tá bravo?
— Amor, pare de brincar com o garoto e diga logo as opções! — A mulher interrompeu, visivelmente irritada.
— Opções?
— Okay, okay, desculpe minha querida — O homem sorriu, virando então sua atenção totalmente para mim — Por ter seu destino encerrado tão abruptamente, uma compensação adequada deve ser dada, por isso, tenho aqui algumas opções para você.
Muitas perguntas flutuavam em meus pensamentos, porém, sabia que devia prestar a atenção, pois era algo muito sério. Não sabia o que exatamente ainda poderia receber estando morto, mas vindo da própria morte, tinha de ser algo importante.
— Bom, garoto — o homem elogiou, me lembrando que ele era capaz de ouvir meus pensamentos —, as opções são as seguintes: 1) Você escolhe como será seu pós vida no mundo espiritual ou 2) Realizo três de seus pedidos no mundo terreno e você então será julgado pelo seus méritos em vida, sendo atribuído o pós vida que merecer, e claro, 3) Dou-lhe mais uma chance de viver, reencarnando sua alma para que, se o destino lhe favorecer — pois não interferiremos nessa segunda rodada —, você tenha uma vida melhor.
Todas as opções eram fortemente atrativas, não tinha como negar. Viver o pós vida a maneira que quisesse era um excelente descanso, e obter três pedidos poderia favorecer minha família que ficou para trás, sem contar que não tinha muito que me preocupar com o julgamento, tinha confiança de que vivera um bom caminho. Já a terceira opção soava muito interessante, uma nova vida vinha com grandes possibilidades que poderiam me levar a fazer e experienciar muita coisa.
Porém, a opção para mim era clara. Lutara tanto para tirar minha família da pobreza, não lhes deixaria relegados àquele destino agora que tinha a chance de incondicionalmente ajudar. Informei minha decisão. O homem bateu palmas e gargalhou, pelo jeito, seu plano, fosse qual fosse, dera muito certo.
— Excelente escolha João, excelente escolha pequeno humano! — ele então abriu sua mão e a fumaça que formava sua luva expandiu antes de se tornar um pergaminho, na sua outra mão, gotas de sua vestimenta sombria coagularam antes de se tornar uma pena que parecia ter acabado de ser resgatada de um barril de petróleo.
— Vamos, quais são seus desejos? — ele questionou, pronto para anotar.
Com um tom irritadiço, narrei meus desejos:
— Primeiro, quero que dê à minha família uma imensa fortuna e inteligência para administrar esse dinheiro. Segundo, Quero que eles possam viver com paz, saúde e felicidade, não ficando presos á minha morte, até os cem anos. Terceiro, Quero que mate aquele desgraçado que me matou!
— Considerando o quão grande era para ser seu destino, isso é bem fácil de realizar — O homem terminou de anotar e, num estalar de seus dedos, o papel se desfez — Os dois primeiros já estão feitos, porém, o terceiro… Não acha mais interessante você mesmo fazer isso?
— Ahn? Do que está falando? Eu morri, não tem volta.
Um estranho e desconfortante silêncio se instaurou no ambiente. Algo estava errado, porque não me respondiam? Os mortos não podem voltar a vida, não é? Se bem que me ofereceram ir para o além e reencarnar, então talvez ressureição não seja tão impossível.
— A questão, meu caro recém morrido, é que o pós vida é meu domínio, bem como a reencarnação — O homem explicou, sua voz outrora sarrista, agora se tornando mais séria — Porém, a ressureição é algo que não deve existir.
— Mas… Ressureição é reverter a morte, isso é trabalho seu, não?
— Em tese, sim, mas dar vida é território da minha querida Vida — ele respondeu, olhando para a mulher reluzente.
A mulher, por sua vez, descruzou os braços e olhou para mim com suas estrelas oculares, enchendo-me de energia.
— E encaminhar almas, bem como decompor o corpo, é trabalho do Morte — Ela explicou, grande ternura em sua voz — Contudo, um cadáver que já perdeu sua alma, não pode recuperá-la pois sua composição se altera quando ela ascende ao pós vida, por isso não oferecemos que voltasse a vida. Há duas leis que nem mesmo nós podemos violar: 1) Tudo que vive eventualmente deve morrer. 2) Tudo que morre não pode voltar a vida.
— E é justamente por isso que você não voltará a vida para realizar sua justiça — O homem continuou — Você voltara como morto, e com nossos poderes seu corpo caminhará durante um tempo limitado.
— Não faz sentido! — retruquei — Mesmo eu voltando como um zumbi, porque apenas por um tempo limitado?
— Porque a alma apenas pode ser armazenada onde há vida que a sustente, criança — A mulher respondeu — Um cadáver já deixou de ter vida e nem mesmo eu posso conferir vida a algo que o Morte já tocou.
Um tanto frustrado, sabendo que não podia voltar atrás com meus pedidos, aceitei a chance da forma que pude.
— Quanto tempo eu terei?
— Uma hora, é o máximo de tempo que sua alma suportará estar ligada a um cadáver sem ser destruída, acabando este tempo, você retornará imediatamente — O homem respondeu, sua voz retornando ao ritmo mais cantado e risonho.
— Mas e se eu não conseguir?
— Aí é problema seu, meu caro recém morrido — O homem gargalhou — Você só terá uma chance de se vingar.
— Mas eu só vou ter uma hora! — Eu protestei — Não tem como eu achar ele nesse tempo, sequer sei onde ele mora!
— Não se preocupe criança — A mulher subitamente soltou uma risada surpreendentemente agradável — Toda vida está sob minha vigília. Sei exatamente onde se encontra seu alvo, lhe darei o poder de encontrá-lo e força não lhe faltará nos membros para destruí-lo.
O homem estendeu sua mão em minha direção. Flutuei até o topo da mesa, parando exatamente no meio das duas entidades. Vida então estendeu sua mão aberta em minha direção, imitando o Morte. Um forte brilho multicolorido irrompeu de sua palma, ao mesmo tempo, da mão de luva cinzenta, fumo negro e oleoso emanou. Em sincronia, os poderes dispararam em minha direção e tudo se tornou escuro. Instante antes de perder a consciência, pude ouvir:
— Até mais, João — O homem gargalhou, acenando com a mão com um largo sorriso esbranquiçado no rosto — Espero que quando nos vermos novamente, tenha notícias interessantes.
— Desejo-lhe boa sorte, criança — A mulher igualmente saldou com um aceno — Tenho certeza de que terá sucesso em seu objetivo.