A Herdeira do Gelo - Capítulo 26
Kian tinha sido derrotado, e não mais poderia machucar as pessoas agora, principalmente estando em uma cela como aquela.
— O que você quer exatamente com a Yara? O que você quis dizer sobre “alguém ter mandado você para matá-la”? Quem o mandou? — perguntou Christa — Você não parecia estar blefando, estava?
— Ela é a criança da profecia. Odin teme que ela possa se tornar uma ameaça no futuro.
— Odin? Odin te mandou? Criança da profecia? Aquela que trará a paz para o nosso mundo?
Ele soltou um riso diante do olhar completamente estático da cavaleira que o encarava.
— Errado. A que destruirá o nosso mundo. Eu tive uma visão, e nela pude ver o futuro; ela estava lá, ela trará o Ragnarok para o nosso mundo.
— É mentira. Você está mentindo! Não tem como ela ser a garota da profecia, a profecia dizia que uma criança de olhos amarelos era quem afogaria o mundo em destruição!
— Impressionante… então você conhece a profecia? Você é bem inteligente, pelo jeito o que você tem de marra você também tem de inteligência.
Christa se aproximou da grade da cela onde o mesmo se encontrava aprisionado com seus braços e pernas acorrentados. Para um humano normal, escapar daquela cela não seria uma tarefa difícil, mas se tratando do deus do caos, tudo era possível.
— Por que ainda não me matou? — perguntou ele.
— Tenho algumas perguntas para te fazer ainda. Acredite, eu queria muito colocar sua cabeça em uma estaca.
Certificando-se de que ninguém estava ouvindo aquela conversa, Christa dispensou os guardas e puxou uma cadeira para se sentar.
— Eu vou ser a mais direta possível. O que você ofereceu para Jay? Eu vi que estavam conversando sobre algo.
Ela se inclinou ao se direcionar com o mesmo, para que pudesse o ouvir o mais claro possível. Próxima o bastante, aguardou por uma resposta.
— Então é por isso… Eu sabia que você não tinha feito isso por aquelas pessoas. Nós não somos tão diferentes, sabia? — Kian falava com deboche, evitando o contato visual.
— Eu não sou nem um pouco parecida com você, com certeza você ainda não me conhece, e nem vai conhecer.
Kian não sabia se aquilo fora ou não uma ameaça, mas certamente sentiu o peso em suas palavras. Christa não era uma mulher para se brincar.
— Bem, não é o que eu vejo.
— Que tal responder a droga da pergunta? — sua voz veio pausada, cada palavra cheia de ameaça.
— Quer mesmo saber o que estávamos conversando? Tudo bem, eu vou contar, seu amiguinho estava para se unir a mim. Dá pra acreditar?
A resposta não a impressionou; ao olhar pelos seus olhos, ela já esperava por uma resposta parecida, afinal, mesmo que já não fizesse mais parte da ordem dos assassinos, Jay também fez parte do trágico evento que ocasionou a morte de sua família.
Christa abaixou a cabeça em silêncio e depois de alguns segundos falou com frieza na voz:
— Traidor… eu já ouvi o bastante…
E então ela se retirou dos aposentos de Kian, indo até a mansão dos cavaleiros da avalanche, onde Kanan esperava pela sua presença para uma reunião de extrema importância.
— Acho que devo minhas sinceras desculpas a você Yara… me perdoe por ter mentido sobre sua mãe e por termos desconfiado de você. Eu estava errado — disse Kanan enquanto estava sentado na mesa de seu escritório.
Este ainda carregava cicatrizes de sua última batalha; por tão pouco não morreu, se não fosse por Yara, ele nem sequer estaria vivo neste momento. Agora, devido aos muitos danos que sofrera, precisava da ajuda de um apoio para caminhar.
— Eu ainda não acredito que vocês desconfiaram justo dela que se ofereceu para nos ajudar — comentou Lynn, indignada.
— Tudo bem, todo mundo erra de vez em quando, não é?
— Tem razão, você está certa — concordou Kanan, se levantando de sua cadeira com certa dificuldade.
Ele respirou fundo e se preparou para falar. Pela sua cara era de se esperar que coisa boa não era.
— Acontece que tem muito mais coisa acontecendo aqui do que se pode imaginar. Kian foi só a ponta do iceberg.
— Não queríamos envolver você nisso, mas não podíamos mais esconder isso de você por mais tempo, cedo ou tarde você descobriria. É da sua personalidade sempre querer saber mais — interrompeu Christa.
— Acreditamos que de alguma forma Dervahl possa estar envolvido com esse último ataque e que possivelmente ele enviou Kian para fazer o seu trabalho sujo sem que subisse suspeitas — complementou Orlen.
— E quem seria esse Dervahl?
A expressão de Christa logo tomou um ar mais sério; seus dentes se rangiam de raiva e seus olhos eram mergulhados em tamanho ódio. Ela apertou seus punhos e então falou:
— A porra do rei da cidade da capital…
Foram poucas as vezes que Yara chegou a ouvir falar sobre o tal rei da capital de Valravam, mas pelo que ouvira, boa pessoa ele não era.
Dervahl era um tremendo e cruel ditador, que extorquia os mais pobres e abusava do poder. Aqueles que se opuserem a ele, eram mandados para a guilhotina, sendo subjugados como traidores de seu povo.
— Mas… por qual motivo ele faria isso?
Para um homem com tanto poder como ele, matar alguém não seria um trabalho difícil, então por que mandar alguém para fazer um trabalho que você mesmo pode fazer? Apenas para não sujar as mãos?
— Cerca de duas semanas atrás, antes de você aparecer, antes de Kian aparecer, uma rebelião se iniciou. Nós tínhamos um plano, ou Eris tinha um… — a voz de Kanan se perdeu em um silêncio entristecedor.
Lynn colocou sua mão sob seu ombro a fim de confortá-lo e o mesmo retribuiu com um sorriso fraco.
Queriam falar sobre ele, mas sabiam que se não o esquecessem, nunca poderiam seguir em frente com suas vidas. A melhor forma de lidar com um problema, é não falando sobre ele. O tempo é o melhor remédio para curar uma ferida.
— A pergunta que fica é, como o maldito rei ficou sabendo sobre o nosso plano? E se ele já souber de todo o nosso plano, que chance teremos? Será que ainda temos alguma chance? — perguntou Christa olhando para o restante dos cavaleiros presentes.
Kanan lançou-lhe um olhar sério, e num momento rápido, mas que não escapou de sua percepção, seu olhar recaiu. Como se escondesse algo que não pudesse revelar, no entanto, decidiu manter-se calado.
— Vamos ser positivas Christa, pelo menos temos Yara lutando do nosso lado. Ela é uma de nós agora — disse Lynn, tentando fazer com que seus companheiros não perdessem as esperanças.
— E que vantagem isso nos dá, Lynn? O que isso muda? Ainda acha que temos alguma chance contra esse genocida de merda? Nós já perdemos dois de nós e Jay está desaparecido, nós nem sequer sabemos sobre o seu paradeiro! E talvez ele também esteja morto!
Kanan sentiu algo no seu estômago pesar com aquelas palavras, mas tentou disfarçar o máximo o nervosismo inexplicável.
— Chega disso, Christa! — protestou Orlen.
De repente sentiu uma forte dor de cabeça, acompanhada de sussurros que tão alto reverberavam em sua mente. Ele reconhecia cada uma das vozes que ouvia, e então uma delas falou:
— É sua culpa…
As vozes continuavam, ficando cada vez mais e mais alto; até que fossem a única coisa que pudesse ouvir.
“É tudo minha culpa, é tudo minha culpa, é tudo minha culpa… Jin e Eris morreram por minha culpa…”
— Capitão? O que foi? — Orlen foi ao seu encontro.
— Saiam daqui, agora! Essa é uma ordem! — exclamou Kanan. — Eu preciso de um tempo pra pensar…
Christa hesitou, inflando o peito diante das palavras. Seguir as ordens de seu capitão era uma coisa, mas ser dispensado de forma tão abrupta era inaceitável. Contudo, ela se retirou sem abrir a boca junto de Yara e seus companheiros, deixando-o sozinho naquela sala silenciosa.
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Algumas semanas atrás…
— O que te trás até aqui, cavaleiro? — Ele quis saber.
— Vim para relatar algo, meu rei.
Estava com a cabeça abaixada e de joelhos para o homem, esperando para que o mesmo lhe concedesse permissão para falar; quando então ele dispensou seus guardas da sala e falou:
— Permissão para falar concedida.
— Uma rebelião. Eles não concordam com os métodos utilizados pelo senhor para governar e eu também concordo que seus métodos são um pouco exagerados, porém eu também sei que a violência não é a solução para nossos problemas, sei que podemos resolver isso na conversa. Como o rei Arthur costumava fazer.
Ele se levantou de seu trono e caminhou até um quadro que havia pendurado em uma das paredes, aquele era um retrato do antigo rei de Valravam, Arthur Fritz.
— Grande rei Arthur, ele era um bom homem… uma pena que seu reinado tenha chegado ao fim tão cedo. Talvez ele não merecesse esse mundo… — houve uma pausa em sua fala. — E o que você sugere então?
— Peço para que não os machuque, é tudo o que peço, e eu te conto todo o plano, do início ao fim. Eu posso convencê-los a desistir e mudar de ideia. Eles vão me ouvir. Eu sei que vão. Mas para isso preciso que você mude os seus métodos.
Dervahl se aproximou de Kanan e tão próximo ele colocou sua mão sob seus ombros, e então falou:
— Saiba que você fez certo em me relatar. É bom saber que posso contar com você, cavaleiro. Eu prometo que não vou machucar seus amigos, você tem a minha palavra.
O homem estendeu sua mão para o mesmo e esperou; Kanan ainda um pouco desconfiado da sua palavra perguntou:
— Mas e enquanto a outra parte do acordo? A parte em que você para de ser um filha da puta e se torna um rei que preste?
— Nada que uma boa conversa não resolva, é claro. Vejamos o que posso fazer enquanto a isso — respondeu, parecendo não o levar a sério.
— Eu venho até aqui para dedurar meus companheiros e é isso o que você me fala? Um simples “Vamos ver“? É bom que você cumpra a sua parte do acordo…
— Sou um homem de palavra, Kanan.
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De volta ao presente…
Do lado de fora, a neve caía do céu azul cinzento, branca e fria…
Uma leve brisa acariciava sua face, fazendo seus longos e castanhos cabelos voarem com o vento. Sentadas em frente à escadaria da mansão dos cavaleiros da avalanche, se encontravam Yara e Lynn, enquanto tinham uma conversa sobre o futuro.
— Então você mudou de ideia? Tem certeza que quer ficar pra ajudar na reconstrução da cidade? — perguntou Lynn, distante. — Vai demorar semanas até que a cidade volte a ser o que era antes, e se você for mesmo ficar aqui vai ter que arrumar um trabalho.
Seus olhos azuis pareciam fitar com a tristeza, talvez soubesse que não mais veria sua amiga depois que as coisas voltassem a ser como eram antes. Saber disso a deixava preocupada e a enchia de tristeza.
Nesse dia em especial, não havia estrelas nos céus, somente uma enorme esfera branca que brilhava solitariamente. Ela pensava consigo mesma se a lua naquele momento não se sentia como ela.
— Na verdade eu só queria poder passar mais um tempo com a minha amiga — respondeu Yara com um sorriso.
— Você será sempre bem-vinda aqui, sabe disso, não sabe? Agora você é uma de nós, é parte da família também. Não é como se nós não fossemos nos ver depois disso — falava enquanto sorria, embora isso não fosse o que desejava naquele instante.
Yara não queria ir embora, não queria deixar sua amiga, não queria deixar aquele lugar; porém era o seu dever encontrar sua mãe, e ela prometeu para si mesma que daria o seu sangue se preciso para isso.
— Nós ainda vamos nos ver depois disso, não vamos? Eu não quero que você vá embora… — dizia Lynn com tristeza na voz.
Notando a aparente falta de ânimo na voz da amiga, Yara sentiu uma pontada de tristeza apertar o seu peito. Então, tomando uma expressão cabisbaixa, ela falou:
— Eu não posso ficar aqui, Lynn… Minha mãe está me esperando lá fora, em algum lugar, e eu tenho que encontrá-la.
Ela observava os pássaros ao longe no horizonte além das grandes muralhas que as cercavam, imaginando no que sua mãe deveria estar pensando nesse momento. Será que ela está feliz? Será que ela deve estar pensando em sua filha? Eram muitas as perguntas.
— Eu vou com você. Eu me decidi. Nós vamos encontrá-la juntas! Amigas se ajudam, lembra?
— Você tá mesmo falando sério? Você deixaria todas as pessoas que ama só pra partir em uma jornada comigo?
Aquela era uma ideia maluca, mas ela não parecia estar brincando.
Com suas mãos quentes e delicadas, ela segurou o rosto da garota e o aproximou para perto do seu, ficando tão próximas a ponto de sentirem o calor uma da outra. Os olhos castanhos de Yara a encaravam confusos.
— Yara, eu te amo. Mais do que como uma amiga. Eu estaria disposta a fazer qualquer coisa só para estar ao seu lado. Quero estar ao seu lado independente do que vier, é isso o que eu quero.
A surpresa logo surgiu no rosto da garota, porém não da forma como Lynn esperava, ao invés de receber um sorriso como resposta, olhos envoltos em lágrimas. Aquelas não eram lágrimas de alegria, eram lágrimas de frustração.
— É… eu não… — Ela começou a falar, tomando uma postura evasiva e afastando-a com as mãos. — Me desculpa…
Sem qualquer explicação, ela deu as costas e saiu correndo para dentro da mansão sem olhar para trás, deixando Lynn sozinha.
Yara não conseguia compreender o que era o amor, um sentimento complicado que quanto mais tentasse o entender, menos o entenderia
Para ela o amor era como um infinito mar de rosas espinhosas, que quando tentasse mergulhar sobre elas, não só as machucaria como também se machucaria, ou como sua avó diria “O amor é uma maldição”.