A Dura Vida de um Recepcionista da Guilda - Capítulo 05
Alef encarava o rosto retorcido da estátua, como se a enfrentasse em um combate fatal.
— E quem seria essa Latora? — questionou Nia, percorrendo os detalhes da estátua com as mãos.
— Santa Latora foi uma dama do escudo e é considerada a guardiã desse arquipélago.
— Guardiã do arquipélago de Terul? Eu nunca ouvi disso. — respondeu a maga.
Karla e Dafne ajudaram o jovem a se sentar, seu rosto refletindo o tênue brilho azul que emanava da figura.
— É uma lenda local. Eu só ouvi sobre quando era criança.
Enquanto Nia permanecia próximo da estátua, as duas garotas devoravam o restante da marmita de carne da manhã.
O recepcionista hora ou outra roubava umas lascas de carne das duas, que o olhavam com sangue nos olhos.
— A lenda diz que Santa Latora foi uma entre os seis heróis que mataram a noite e trouxeram a luz de volta para o mundo.
A maga balançava a cabeça com ânimo ouvindo o conto do rapaz.
— Sim, eu já ouvi rumores dessa história. Dizem que foi a mais de dois mil anos.
— Exato. Meus ancestrais diziam que Santa Latora escolheu uma das ilhas de Terul para ser seu túmulo. Parece que encontramos.
— Mas como uma estátua de dois mil anos ainda está de pé, no meio de uma floresta assim.
Alef deu de ombros e voltou a petiscar o prato das colegas, que dessa vez o repreenderam dando-lhe um tapa na cabeça de forma simultânea.
— Ai ai caralho, eu tô quase morto aqui, quebrem uma pra mim!
— Estamos de carrebando tem boras, para de ser bolgado! — respondeu Dafne de boca cheia.
— Essa estátua… Uma energia arcana absurda emana dela — interrompeu Nia.
Ficou de pé com dificuldade e caminhou até a figura.
— E imaginar que estava aqui todo esse tempo… Isso significa…
Colocou a mão na sua mochila e procurou o mapa, mas não estava ali. “Merda, será que perdi na hora que enfrentei aquele jaguar?” pensou o recepcionista.
— Quer isso aqui? — questionou Dafne.
A garota tirou do meio dos seios um pedaço de papel perfeitamente enrolado, com marcas de suor nas laterais.
Como se estivesse recebendo uma arma sagrada, Alef segurou o mapa com ambas as mãos e a levou até o nariz.
“Esse cheiro doce com um leve toque pungente, esse calor, então isso é o suor de uma mu-”
Um disco de madeira rapidamente acertou seu rosto, jogando-o no chão. O pedaço de papel rolou para perto da estátua.
— Seu nojento! O que pensa que está fazendo! Eu guardei pra você e… — disse Dafne, ficando vermelha como um pimentão.
— Tá, tá, foi mal, só queria ver se era meu mapa mesmo!
— Sei! Canalha!
A garota mostrou a língua e se virou agilmente, escondendo o rosto. Alef rastejou até o mapa e o abriu ainda deitado. Seu rosto ficou pálido. Tentou falar, mas a voz não saiu.
Se levantou e mancou até sua mochila, puxando sua bussola de um pequeno bolso. “Essa merda quebrou! Estamos perdidos! Essas idiotas não sabem nem seguir a porra de um mapa!”
Começou a coçar a cabeça de forma frenética e lentamente se deitou no chão.
— Ei, vamos dormir. Estamos todos exaustos e aparentemente perdidos. Esse santuário não está no mapa e não tem nenhum rio perto de nós — disse o jovem, descrente.
Dafne colocou a mão sobre as longas orelhas formando uma concha.
— Re-realmente, não estou ouvindo nenhum barulho de água.
— Só desista, acho que nunca fiquei tão decepcionado na minha vida… Preferia ter morrido com aquele jaguar…
— O que disse? — perguntou Dafne.
— Nada, boa noite.
Se virou para evitar a luminosidade da estátua e dos olhares das companheiras. “Eu morri naquela luta? Eu me lembro de sentir meus dedos frios. O que diabos aconteceu?”
– – – – –
— Alef, você é mais burro do que eu imaginei.
Uma voz grossa e potente o acorda do sono profundo. O local era refinado, paredes rústicas fechavam o cômodo, que era adornado por estantes repletas de livros, candelabros, uma pequena mesa de centro e duas luxuosas poltronas.
— Puta merda, essa voz… É você outra vez?
— E quem mais seria para falar com um lixo como você?
— E quem fala com lixo é o que? Lixeiro?
Um silêncio perturbador preencheu a sala, enquanto os dois apenas se olhavam. A figura carmesim se impunha, mesmo estando sentada, com um livro antigo em mãos.
— Haaaahaaaaahaaaa… Você tem coragem mesmo, isso é fato, mas continua sendo burro.
— Burro? O que eu fiz?
Com um movimento, fechou o livro que segurava e o colocou por cima da mesinha.
— Eu falo pra você não se matar e em menos de um dia você se mata enfrentando um jaguar negro?
— E o que você ganha me ajudando? Aquele poder era seu, não era? — questionou Alef em um tom exaltado.
O homem vermelho levou a mão no rosto e pressionou as sobrancelhas, enquanto Alef ficava em uma posição de combate.
— Tolo…
— Como é?
— Eu disse que você é um tolo, Alef.
A sala começou a se desfazer, as rochas começaram a tomar um tom vinho e a escorrer, formando lentamente uma poça no pé de ambos.
— O que eu fiz por você, nem um pai faria.
— Você disse que eu morri? Como estou aqui então? Como as garotas me salvaram?
— Perguntas demais, você é sempre um saco assim? — questionou o homem olhando em direção a Alef.
— Me responde!
A sala já não existia mais, se encontravam em um espaço negro infinito, apenas o homem, Alef, a mesinha e uma única poltrona.
— Sim, você morreu e eu lhe trouxe a vida. Pedi para um associado meu deixar um presente no seu corpo.
O homem se levantou e logo em seguida a cadeira também se derreteu, unindo-se a poça singular no chão.
— Bem, não era meu plano original te reviver, mas as garotas usaram a hematita crepuscular mesmo assim.
— Hematita crepuscular? Que porra é essa?
— Olha a boca. É um cristal que formei ao longo de alguns milênios. Você não precisa saber dos detalhes. Enfim, você não vai ter esse luxo duas vezes seguidas.
— O que você fez comigo? E aquele golp-
— Haha, isso deixaremos para outra hora. Agora você está em dívida comigo e adianto, sou um excelente cobrador — respondeu o homem, caminhando em direção do vazio.
– – – – –
Naquele santuário, o sol não era bem-vindo. A única luz dali vinha da estátua, que pulsava um azul celeste de forma gentil.
— Bem… acho que… voltar… cidade.
Acordou com a gentil voz de Dafne, mas não conseguia entender o sentido inteiro do que ela falou.
— Bom dia meninas.
— Bom dia — respondeu Nia de forma monótona.
— Você está bem? Se contorceu muito e xingou bastante também — disse Karla.
— Estou bem sim, só sinto minhas costas ardendo.
— Essa marca deve estar realmente doendo — disse Dafne.
— Marca?
Alef se contorceu e girou o tronco numa tentativa fútil de ver ou tocar nessa tal marca, mas não importava o esforço, ele não conseguiu.
“Ah, que se dane, na cidade eu vejo em um espelho. Não deve ser tão ruim assim.” pensou o recepcionista enquanto começou a arrumar a gibeira.
— Vamos sair daqui, não temos como ver o sol e eu realmente gostaria de chegar em uma cidade logo. Ficar sem meu uniforme na frente de vocês é desconfortante.
Uma risadinha ressoou dentro do santuário. Dafne tentou abafar com as mãos, mas o resultado não foi um dos melhores.
O jovem simplesmente a encarou com um olhar perfurante enquanto batia nas calças para tirar a terra.
— Está todo mundo pronto? Eu concordo com o Alef, realmente quero tomar um banho — disse Karla, mudando a posição da bainha da espada da cintura para as costas. — Acredito que você já consegue andar sozinho, né?
— Uhum. Já estou bem, obrigado.
Nia e Dafne terminavam de arrumar suas mochilas e as esconderam por baixo dos mantos.
Pela mesma trilha que vieram, o grupo saiu. A bússola de Alef estava indo a loucura, então o rapaz simplesmente a colocou no bolso.
“Ah, como eu quero chegar na cidade, voltar a civilização!” pensava enquanto caminhava cabisbaixo entre as colegas.
— Aha… Eu vou no meio de vocês para não me perder de novo — disse — e nem vocês se perderem, suas patetas.
Dafne lhe deu um soco no ombro em retaliação pela coragem do jovem em demonstrar o óbvio.
— Você consegue subir nas árvores para procurar a direção do rio pra gente? — questionou Karla.
A elfa consentiu e se pôs a subir rapidamente em um grande pinheiro que estava próximo deles.
— Olhos de falcão!
“Quem é aquele homem? Por que ele me salvou? O que seria essa hematita crepuscular?” os pensamentos outra vez tomavam conta de sua cabeça, todo dia dezenas de novas questões o atormentavam.
“Eu só queria estar em casa! Mas que caralho! Como fui acabar assim?!”
Trac! Pra! Pá! Trac! Poof!
— Devemos seguir pro sul daqui, não sei como, mas desviamos todo o nosso curso pro oeste.
— Então vamos — disse Nia, apontando para a direção informada.
Alef tirou seu mapa da bolsa e se pôs a anotar algumas coisas na folha.
— O que você tá escrevendo? — questionou Dafne.
O garoto deu um salto para trás, como uma criança que fora pega fazendo algo errado.
— Que susto Dafne, caralho. Estou anotando a nossa provável localização e também do santuário. Posso passar isso para um cartógrafo por uma fortuna.
— Vai vender a localização do santuário? Não é meio desrespeitoso?
— O povo dessas ilhas cultua Santa Latora há gerações. Tenho certeza que gostariam de fazer umas visitas e trazer oferendas.
A garota abanou as orelhas e colocou um dedo no queixo de modo pensativo.
— Ou talvez teremos que voltar aqui no futuro. Nunca se sabe…
— Haha, pois é…
“Eu que não quero voltar nessa desgraça de floresta com vocês mas nem fodendo.”
Dafne se apressou e alcançou Nia, que seguia logo adiante.
— Ah, que fome… — murmurou Karla.
— Chegando no rio, vamos ver se não achamos algo para comer, ainda temos uma boa caminhada para chegarmos ao porto de Kalum — respondeu Alef.
— Vo-você ouviu isso? Que vergonha!
A amazona virou o rosto e colocou ambas as mãos sobre a face, tentando esconder o rosto rubro.
— Vocês dois! Andem logo! O rio está logo à frente! — exclamou Dafne, balançando o braço.
— Tá! — responderam em uníssono Alef e Karla.
– – – – –
— Vento gentil que acaricia meus cabelos e que destrói as mais poderosas fortalezas, ouça meu chamado e obedeça meu comando! Lança de Silfo!
Conjurando tais palavras, o vento se retorceu e se concentrou na ponta do cajado, sendo disparado como uma flecha em direção as águas.
Splash!
— Oh! Você pegou um grandão Nia! Acho que com isso ficaremos bem até o fim da tarde, menos a Karla.
— Ela vai ter que se contentar, eu não tenho mais energia para outro feitiço.
— E eu também estou quase sem flechas — disse a garota correndo os dedos dentro da aljava.
Um pouco mais distante dali, Alef fazia uma atadura decente nas mãos de Karla.
— Isso deve segurar bem — disse o recepcionista.
— Nossa! Bem melhor que o serviço da Nia! Agradeço o coração dela, mas nada supera o trabalho de um profissional!
— Haha, somos treinados em primeiros socorros, então isso é o mínimo que posso fazer.
“Eu nem imagino o que elas passaram para me carregar até aqui. Para as mãos dela estarem tão feridas, deve ter batalhado muito enquanto eu estava apagado.”
— Não se sinta mal.
— Ahn?
— Você não fez nada de errado. Te ajudamos porque faz parte do nosso grupo agora, um grupo sempre se ajuda, certo?
Karla lhe abriu um grande sorriso e mostrou as novas ataduras. Alef respondeu com um sorriso de canto de boca e um aceno da cabeça.
Rapidamente se virou e começou a montar uma fogueira, enquanto Dafne e Nia traziam consigo dois peixes de tamanho considerável.
— Isso deve dar para o nosso café e almoço. A fogueira está pronta?
— Quase! Só preciso juntar isso e…
Tá! Tá! Tá! Tá!
— Fogo!
— Eu vou limpar as tripas! Já volto!
Karla se levantou em um pulo, agarrou os peixes e se seguiu rumo ao rio, retornando em seguida com os peixes perfeitamente limpos.
— Eu ainda não me acostumei com essa sua habilidade, Karla — disse Alef.
— Haha, isso aqui não é nada! Agora, vamos espetar essas belezinhas e assar! Carne de peixe fica pronta rapidinha!
— Vamos comer! — exclamou Dafne.
— Comer! — disse Nia, também empolgada com a refeição.
Após o término da refeição, o grupo apagou e fogo e voltaram a seguir o curso do rio. A mata começava a ficar menos densa, significando a saída para o porto.
— Eu pessoal! Tem uma colina ali! Vamos correr! — disse Dafne, extasiada por finalmente alcançarem o final da longa jornada.
Os três consentiram com a cabeça e correram em direção a um grande abismo que havia logo na saída da floresta, revelando uma paisagem incrível.
Um pequeno trecho de terra seguia em direção a uma pequena cidade com diversas embarcações aportadas.
O sol reinava por cima daquele infinito azul que banhava a pequena ponta de terra, onde um farol emitia uma luz que mal podia ser vista.
Finalmente fora daquela escuridão, o grupo pôs a se mover rumo a cidade. Com o sol iluminando o seu futuro o próximo ponto da jornada os aguardava, o reino de Ulvos.