A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 49
Cinco balas voaram por cima dos dois homens de tocaia, forçando-os a se agachar para evadi-las. Eles aguardaram por um novo salvo, que findou por não vir. Com isso, aproveitaram a vegetação alta e se arrastaram bosque a dentro, em busca do restante de seu grupo.
Tanto o major quanto Tevoul ficaram encarregados da tarefa de reconhecimento dos arredores do castelo. Quando a trupe chegou ao lugar, Nico desejava atacar o lugar de imediato, porém a carência de informações sobre dos hábitos inimigos tornava a tarefa perigosa demais para um ataque pouco pensado. Desde então, o ruivo e o ex-oficial analisavam cada movimento dos soldados alvirrubros, buscando um padrão que pudesse ser explorado.
— Acho que só que querem nos assustar — disse o sulista de pele clara, arrastando-se para detrás de uma árvore —, mas é estranho que não tenham mandado alguém.
O sujeito de cabelos castanhos tomou a arma pela bandoleira, tirando-a das costas para as mãos. Sentou-se atrás de um tronco largo. Depois, repousou a arma cuidadosamente sobre suas coxas.
— Sinal que não querem confusão, devem pensar que somos bandidos.
— Bem, estamos aqui pra roubar uma coisa deles, então… eles estão errados?
Nico gargalhou controladamente, assentindo com a cabeça.
— Às vezes, você é engraçado de verdade. — Olhou para o céu, sem notar a face emburrada do ruivo.
Quando dedicou suas íris para os astros, ele viu o aparecer das primeiras estrelas, pintadas aos poucos no firmamento. A massa branca que rasgava o firmamento ganhava forma ao mesmo tempo que o sol adormecia, quase como um agrado do universo para o oficial que o admirava.
“Mesmo com tudo o que acontece aqui no chão, elas nunca deixaram de ser belas.”
Memórias do passado correram pela sua consciência. Até mesmo as desgraças foram incapazes de apagar o sorriso que brotou em sua face, satisfeita com o espetáculo. Quem o visse não o reconheceria. Era um encanto infantil e puro, algo pouco esperado da figura rabugenta e imediatista que o major criara.
Ao contrário do oficial, Tevoul continuou a olhar fixamente para os portões. Sua preocupação era densa o bastante para ser sentida pelo companheiro, curioso com o nervosismo que o deixara incapaz de manter as mãos que seguravam a espingarda estáticas.
— A gente consegue, moleque. Não precisa ficar assim.
— Pode até ser, mas…
— Seu amigo é do tipo que tem mais sorte do que carne dentro da cabeça, ele vai ficar bem — Nico o acalmou. Ele relaxou os músculos tensos, escorando por completo na árvore. — Não vou mentir, vocês dois são uma dupla de imbecis, mas que funciona bem, seja lá o motivo. Uma pena que nunca tive um parceiro assim no exército.
— Ninguém mesmo? — Tevoul ficou surpreso. — Porque, quando você fica perto da morte tantas vezes, é difícil não achar alguém pra morrer do lado.
— Não sou do tipo que fala com desconhecidos. Acho que sempre fui mais um cara de família do que do mundo. — Sua mão canhota escapou para a perna, agarrando a bainha da espada. Encarou o objeto branco de ponta dourada com o semblante alegre intacto. — Tá anoitecendo, contou quantas vezes eles fazem a rotação?
O mercenário pôs a mão dentro do bolso da calça e retirou um pedaço de papel e uma pedra de carvão. Pondo o papel sobre uma pedra, riscou a quarta listra.
— Acho que já é o suficiente — ele disse, passando o papel para o colega.
Nico agarrou o papel e o analisou, depois fitou o ruivo.
— Ótimo. Vamos atrás do resto do time.
Os dois abandonaram o posto e se retiraram mata a dentro, sempre cautelosos para se manterem ocultos a cada passo. Alternaram entre as tarefas se mover para trás e cobrir o retrocesso do outro, em uma manobra digna da infantaria ligeira.
Foram necessários minutos de caminhada para que achassem o resto da trupe. Levias estava sentado em uma pedra, com as pernas enlaçadas, vestido com seu sobretudo negro, como em todos os dias. Marí, por sua vez, estava de pé, com os braços cruzados. Vestia sua saia negra e sua longa camisa branca de botões, sem seu pelerine e chapéu. Estava impaciente.
— E aí, o que conseguiram?
— Foram quatro rotações de quando chegamos lá até começar a escurecer? — Nico emendou a pergunta da feiticeira com outra.
O sindicalista checou seu relógio de bolso. Com uma matemática simples, subtraiu a hora da chegada de ambos pela da partida e dividiu pelo número de trocas de guarda.
— A cada vinte minutos, creio eu.
— É até que rápido. — A voz da feiticeira soou amassada. — Alguma noção de quantos soldados têm lá?
— Algo entre dez e quinze soldados — disse Tevoul. — A maioria trabalha com algum tipo de manutenção na ponte sobre o rio.
— Algum plano, major? — ela perguntou.
Nico levou a mão a boca, pensativo. Seu plano era usar Marí para criar uma ilusão e entrar no castelo durante a troca de turno dos guardas, mas a tática era problemática. Seriam vinte minutos para entrar no covil alvirrubro, identificar onde estava a masmorra, rezar para que não notassem a movimentação suspeita e fugir. Um terço de hora era uma quantia pífia para tanto.
— Por quanto tempo você consegue usar magia pra esconder a gente, sem parar? — perguntou à feiticeira.
— Meu máximo foi quinze minutos, mas isso só com uma pessoa.
— Porcaria… Isso não vai dar certo.
Ele começou a andar de um lado para o outro, incapaz de aquietar-se. O resto da trupe também carecia de esperança, mesmo que evitasse demonstrar de maneira tão externa.
— Não há necessidade para que todos nós fiquemos invisíveis aos olhos do inimigo, major. Há uma maneira alternativa.
A sobrancelha direita do ex-oficial levantou ao sindicalista. Ele detestava o rapaz, mas, em um momento como aquele, aceitaria um pacto com o Enganador se fosse preciso.
— Desembucha.
— Temos três homens adultos aqui, dois leifaneses inclusos. Se tomarmos os uniformes dos guardas da entrada, o senhor, Tevoul e eu poderemos entrar sem que desconfiem. Só será necessário que a senhorita Marí se oculte.
A testa de Nico franziu, quase o fazendo socar uma árvore. Era duro de admitir, mas o plano de seu arqui-inimigo era melhor que o seu.
— Desgraçado… — Sua raiva deu lugar a um sorriso.
— Ainda tem um problema — alertou Tevoul. — Precisamos dar um jeito em quatro guardas pra conseguirmos os uniformes. Acho que eles vão perceber bem antes da próxima rotação que alguns deles sumiram.
— É uma aposta — disse Levias. — Também posso usar o que eu sei para encontrá-la mais rápido.
— Então vai ser como o loirinho disse. — O major encarou os muros do castelo. — Vamos entrar assim que eles trocarem de guarda.
***
Na escuridão dos corredores cobertos de musgo da masmorra, Tadeu continuava a ser orientado pelo seu refém, mesmo que a desconfiança se mantivesse em seu interior. Ele era sábio o bastante para suspeitar de uma trapaça, então manteve a guarda alta.
Mesmo assim, o cabo Tsonyr lhe parecia inofensivo. O sujeito de bigode largo e seus trinta anos continuava amedrontado pelo sabre que lhe tocava as costas, tanto que mal podia manter o olhar adiante, tendo que sempre verificar se a lâmina na retaguarda continuava lá.
Sempre que ele se voltava para trás, o mercenário sentia vontade de rir. Feri-lo estava fora de seus planos, o que tornava a precaução do alvirrubro cômica.
— Você está no exército a quanto tempo? — perguntou o sulista.
— Dois meses! — respondeu, atropelando as sílabas.
— E já é um cabo? — O homem assentiu o mais rápido que pôde. — Que beleza o seu Exército Real…
Por onde andava, Tadeu sentia a fraqueza do seu principal adversário. Desde Jorodar, sua primeira batalha, até sua curta escaramuça na cela, ele sentiu o quão fragilizada era a força contrarrevolucionária. Mesmo que alguns tivessem se mostrado oponentes capazes, como os de Gurvralo que lutaram contra Igri com o auxílio de Rudon, a vasta maioria se desmanchava com poucas balas ou socos trocados.
“Não é a toa que eles apelaram pra um ritual assim”, concluiu. “Comparado ao Exército Republicano, eles só são melhores que gangues de rua…”
O contraste com a força republicana, a qual serviu, era notável. Toda estrutura do exército colorado fora refeita dos oficiais rasos aos generais, contendo ênfase em germinar talentos em suas fileiras, para que viessem a se tornar militares de alta patente, caso suas habilidades demonstrassem o merecimento.
De início, o mercenário considerara o método usado pelos republicanos para ascender ao poder nefasto, mas passou a entendê-los conforme sua jornada se afundava em miséria. A revolução era um grito de revolta à injustiça. Milhares de homens ergueram suas armas para dar um basta ao sistema que os oprimiu, recusando obter a reconquista do seu livre-arbítrio roubado através de palavras, mas sim pelas vias de ferro, pólvora e sangue.
Um meio violento, mas eficaz. Tadeu ousou pensar que, até certo ponto, era um esforço belo.
“Pelo menos, os republicanos se revoltaram pra ter o controle total das suas próprias vidas, não pra roubar o alheio”, concluiu.
Porém, enquanto processava seus problemas, o sulista escutou um cochichar ecoar por um dos corredores adjacentes. Seu coração deu uma pontada de ansiedade, mas soube se acalmar.
“Merda, devem ser outros guardas. Se eles encontrarem os dois soldados presos, estou ferrado…”
Ele tapou a mão ao redor boca do refém depressa, pondo sua mão antes que pudesse pensar em denunciá-lo. Aproximou o rosto da orelha dele para um recado quieto:
— Consegue entender alguma coisa do que eles falam? — O homem negou. — Certo, fica calado que nada acontece com você.
O jovem equilibrou sua respiração, evitando que o susto o impactasse. Junto de seu prisioneiro, despontou para a esquina com o corredor que guardava o inimigo oculto, tomando cuidado para que cada passo sobre o lodo esverdeado do solo fosse delicado como o choque de uma pena sobre a água.
Ao chegar na borda da parede, espreitou o suficiente para que um olho identificasse o convidado indesejado.
“Merda!”, pensou assim que o reconheceu. “É o desgraçado de antes!”
O loiro musculoso, portando suas vestes de cores branca e dourada, conversava com um soldado de farda branca e vermelha. A ausência de tensão revelava que estavam alheios à tentativa de fuga, bem como sabiam que ele os observava de perto.
Ainda tapando a boca do guarda capturado com força, Tadeu retornou para a cobertura da esquina. Ele encarou seriamente o refém.
— A gente vai dar meia-volta. Precisamos achar um novo caminho.
Ao contrário da expressão que vira do sujeito até então, o sulista foi tratado com indiferença. O alvirrubro estava estático. Ele sequer lhe respondeu com o medo constante de antes, parecendo mais seguro que antes.
— Eu falei com você, não me entendeu? — Mais uma vez, o homem foi indiferente, recusando-lhe uma resposta com a cabeça. — É melhor que…
Tadeu sentiu seu indicador ser prensado por algo afiado, dando-lhe uma pontada que ergueu sua guarda. O cabo o desferiu uma ombrada após a mordida e se desvencilhou do aperto do mercenário, disparando em busca dos companheiros do outro lado da masmorra tomada pelo verde.
— Socorro! — ele gritou enquanto corria em busca dos colegas.
Recuperando-se do ataque, o jovem sacou a pistola, sabendo muito bem que o pior era inevitável. Correu em busca do prisioneiro fujão, acompanhando de perto sua jornada em direção ao loiro que lhe aprisionara.
Quando chegou ao corredor, ele viu Vasily e seu companheiro encararem o alvirrubro que clamara por socorro com surpresa. Quando o viram, ficaram ainda mais espantados.
O alvirrubro tentou sacar a arma em seu ombro, mas, antes que pudesse, Tadeu apontou sua pistola para ele e puxou o gatilho.
A nuvem de fumaça ascendeu com o duplo estampido, ecoados poderosamente pelo espaço comprimido da cadeia subterrânea, acompanhado do som de um corpo tombado.
A fumaça se dissipou, revelando o soldado leifanês caído, além do Infante e do cabo com os rostos espantados.
— Por Faor, esse homem tentou me matar! — o cabo Tsonyr gritou, mas falhou em conseguir a atenção do loiro, que estava com os olhos fixos no mercenário fujão que vestia a farda branca e vermelha dos seus guardas.
— Por que ele está do lado de fora?! — furioso, o loiro perguntou sem encará-lo.
— Ele se fingiu de engasgado! Eu e meus rapazes corremos para socorrê-lo, mas ele conseguiu nos enganar!
Vasily esboçou uma expressão de surpresa genuína.
— Quer dizer que aquele sulista — apontou para o jovem do outro lado do corredor — conseguiu enganar os três e ainda te fez de refém?
O cabo confirmou. O loiro olhou para o chão, onde o corpo do soldado que lhe fazia companhia jazia caído, frio como o lodo úmido que percorria a prisão.
— Tenho que admitir, sulista, você é mais teimoso do que eu pensava. — Um sorriso apareceu em seu rosto.
— Graças a Faor eu te encontrei! — o homem agradeceu. — Por favor, acabe com…
A lâmina do Infante rasgou da bainha para o pescoço do alvirrubro, decapitando-o. Seu corpo inerte se chocou contra o chão em um baque seco. Ao contrário de seu sorriso habitual, Vasily mostrou a testa enrugada após assassinar seu parceiro, como se tivera visto o maior pecado de todos.
Ao ver isso, Tadeu teve um breve choque. Nada parecia capaz de explicar o motivo de um ataque cruel como aquele.
— É assim que os que nascem com poder o usam? Matando os próprios aliados?
— Engano seu, sulista. — Com a mão, retirou o excesso de sangue da lâmina. Seus olhos pareciam se acalmar ao ver o metal reluzir. — Esse bastardo mostra o que acontece quando se dá poder para malditos sem sangue para isso. — Seus olhos claros voaram contra o mercenário, como se fosse a primeira estocada do duelo prestes a começar. — São fracos. Precisam implorar para que eu os salve. Diante da morte, preferem se render ao inimigo do que morrer com a honra intacta.
Ele pôs uma perna frente a outra, flexionando os joelhos. Ergueu a lâmina na horizontal até ficar da altura da cabeça, apontando o sabre para o mercenário do lado oposto.
— É isso que a República defende. Que o mundo seja maculado por covardes como esse em todas as esferas. Gente que não merece ser dona nem de si mesma.
Mesmo sem conhecimento na arte da esgrima, Tadeu fez o seu melhor para tentar imitar uma pose de combate. Uma chama contida queimava do seu ventre ao seu rosto.
— Talvez um mundo de covardes seja melhor do que um mundo feito pela bravura que você acredita.
Vasily fechou os olhos e deu uma curta risada. Quando os abriu, estavam mais brilhantes e perfurantes do que nunca.
— He… Então que sobreviva o melhor dos mundos.
Os joelhos do brutamontes dobraram, impulsionando-o para a carga em direção ao seu inimigo.