A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 46
Escondidos atrás da esquina, expondo apenas suas cabeças, Tadeu, Marí e o pequeno Demevryr observavam a errante e a Filha de Kolur sendo carregadas para uma carroça. A asteni carregava a menor, enquanto o homem loiro com a cicatriz no rosto levava a mais pesada.
Pouco antes de encontrá-los, Tadeu tomou o primeiro pedaço de madeira que encontrou na rua e o fez de porrete. Era fino como um cabo de vassoura, mas longo o bastante para lutar de uma distância segura. A pistola que Nico o deu estava em sua mão dominante. A espada curta continuou em sua cintura, uma vez que faltava-lhe talento em esgrima.
Ao pensar em como agir, também considerando como lutou da última vez, sentia-se pronto para enfrentar a mulher novamente. Entretanto, a total ignorância do que o sujeito loiro era capaz o deixava nervoso.
— Tem alguma noção de onde eles possam levar elas? — Tadeu indagou para Marí.
— Para dois lugares: ou para algum galpão nos subúrbios, ou para o castelo do rio Dan. Como eles estão sós, acho que não vão se expor no meio da bandidagem nas zonas mais afastadas da cidade.
— Então nos resta o castelo. — A situação não lhe pareceu nada favorável. — Invadir um forte não é coisa simples, mesmo os mais antigos.
— Eu sei. — Ela buscou pela criança. — Você já nos ajudou bastante. Pode ir.
Ele assentiu nervosamente com a cabeça e saiu correndo pela rua.
— A gente precisa fazer alguma coisa agora — alertou Tadeu.
— Sem o resto do grupo? Você pode ter enfrentado a asteni uma vez, mas só conseguiu porque ela estava ferida. Também não sabemos qual é Arte do grandão ali.
— Quer dizer que não consegue deixar a gente invisível por conta do outro?
— Não é esse o problema. Ele pode não me ver, mas vai sentir alguém se aproximando. Além disso, a asteni também vai conseguir sentir a sua arma.
“Então não dá pra se aproximar sem ser notado…”, olhou a garrucha em sua mão. Depois, esgueirou-se pela esquina e analisou a dupla outra vez.
— Eu atiro nele e você vai atrás da mulher com uma ilusão. — Sacou a pistola com cautela. — Depois do tiro, ela vai focar em mim, o que vai dar uma abertura para você.
O plano pareceu bom o bastante aos olhos da feiticeira, mas a ansiedade em seu rosto entregou que havia algo que a incomodava.
— Pode funcionar… Você acerta um tiro daqui?
Ele mesurou a distância entre ele e os dois lacaios de Astovi, achando-a maior que o ideal. Em sua mente, desejou que Tevoul estivesse ali.
***
Enquanto a dupla discutia, Rudon e Vasily acabaram o serviço de “limpeza”. As prisioneiras estavam sentadas no interior da carroça, ambas desacordadas, e pouco tinham que resolver para a partida.
O brutamontes de cabelos áureos era o maior causador de contratempos. De cócoras, ele estava próximo a calçada de cimento, olhando fixamente para uma das pedras do pavimento. De alguma forma, o objeto esverdeado de musgo conseguia alegrá-lo, o que deixou a asteni confusa.
— Não tem nada mais na sua vida para fazer do que encarar o chão? — a mulher de pele escura questionou.
Vasily a fitou com seu rosto deformado, mostrando seus dentes em uma expressão desconfortante.
— As plantas menores também são uma forma de vida — respondeu enquanto se levantava. — Desprezadas, ignoradas pelas pessoas que passam, mas vivas, feito eu e você.
— Quer dizer que essas coisas valem tanto quanto uma pessoa? Desde quando? — esboçou um sorriso sarcástico.
— Desde quando os homens fazem o mesmo uns com os outros. — Apesar da fala, pareceu gostar da ideia do desprezo mútuo entre humanos. — Ou acha que não estamos tratando a pirralha da mesma maneira?
A risada do homem primeiro a assustou, depois a deixou aborrecida. Ela sabia perfeitamente que Vasily conhecia o quão desconfortável ela se sentia com aquilo.
— Só o frade pode controlar o experimento — falou como o Mestre a doutrinou. — Só faço isso porque é a única forma de pôr um freio nesse barril de pólvora ambulante. — Fitou a carruagem, focando nos cabelos loiros da criança desacordada.
— Acredite no que te faz se sentir bem. — O Infante loiro deu de ombros.
O Infante começou a rumar para a telega, mas parou poucos passos depois. Suas sobrancelhas se ergueram intrigadas, o que o deixou com certa surpresa em seu rosto. Ele olhou para os prédios à sua direita de maneira errática, procurando por algo invisível no meio das janelas.
— Você é maluco. — Rudon deu o diagnóstico.
— Não, não, não… — Mordeu os lábios e sorriu enquanto sua atenção manteve-se nas construções. — Isso é algo que vai te interessar. — Olhou-a de soslaio. — Tem um feiticeiro perto de nós.
A mulher arregalou os olhos, mais por surpresa do que por medo.
— Onde?
— Em algum lugar aqui perto. Pelo que sinto, não é um mestre das Artes, mas passa longe de um amador.
“Sindicalistas?”, ela pensou. Recordou-se do que viveu dias antes, em Gurvralo. A possibilidade a deixou em alerta. Abriu um pouco da bolsa e observou seus equipamentos novos. “Pelo menos, estou mais preparada dessa vez. Mas ainda falta descobrir onde eles estão…”
A do Morto e Tocável e seu novo companheiro buscaram qualquer rastro do desafiante misterioso, provocando um zigue-zague em suas cabeças e pupilas. A mulher, em especial, tinha o maior cuidado na busca, uma vez que aprendera da pior maneira a não subestimar os hereges do Sindicato.
“Tem que estar em algum lugar…”
Em um momento de sorte, encarou a esquina de uma das ruas, onde enxergou uma pistola com o cano apontado em sua direção.
— Merda!
Tocou a placa de chumbo junto do estampido e desviou o projétil para onde seu braço apontou, estourando uma janela de vidro no momento. Tomada pela adrenalina, Rudon retirou um de seus sacos com agulhas e preparou para arremessá-lo, mas, assim que encarou o local do alvo, viu seu caçador desaparecer.
— Ele sumiu. — Vasily constatou com normalidade. — Mas ele não é o feiticeiro. São dois, um que sabe a Bênção, o outro não.
O Infante loiro desembainhou seu sabre curto, sem demonstrar-se abalado pela experiência de quase morte. Como antes, analisou seus arredores. Mostrou suas presas brancas assim que sentiu a aproximação do desafiante.
— Está aqui!
Seu sabre cortou o ar no que parecia vácuo, mas logo a dupla apareceu ao se esquivar do golpe, o rapaz pela direita, a moça pela esquerda.
Rudon correu em busca do colega, posicionando-se para guardar sua retaguarda. Ela olhou os dois inimigos que tomavam posições opostas, lembrando-se vagamente de ambos.
— Miseráveis!
— Conhecidos seus?
— São do Sindicato de Gurvralo! — avisou o outro. — Lutei com esses desgraçados antes!
— Um sulista no Sindicato daqui? Essa é nova. — Sorriu ao pensar na luta. — Pelo menos, vão dar algum trabalho. — Como um cavaleiro involuntário, voltou sua atenção para o mercenário. — O sulista é meu!
Vasily avançou contra Tadeu, que apertou seu porrete para barrar o ataque iminente.
A espada avançou contra sua cabeça, mas ele foi rápido em se esquivar para o lado, lançando um contra-ataque contra as costelas do Infante, que recolheu seu corpo, mas pareceu pouco afetado.
“Parece até que ele não sentiu!”, constatou o soldado.
— Bom golpe. Se fosse uma espada, talvez tivesse feito alguma coisa. — Apontou a ponta da lâmina para a bainha no sobretudo de Tadeu, que se surpreendeu ao ouvir o homem falar em sua língua. — Porque não usa uma arma de verdade?
Tadeu pôs a mão livre no cabo da espada após a provocação. Por algum motivo, sentiu que aquele homem era diferente e quase aceitou o desafio, mas desistiu assim que lembrou da sua falta de técnica com um sabre em mãos.
“Ele só quer ganhar uma vantagem. Não é bom cair no jogo dele.”
Ele apertou o porrete com suas duas mãos e carregou na direção do inimigo, sem pensar em um plano contra o espadachim. No fim das contas, era no improviso que ele excedia.
Do outro lado da rua, Rudon desviava sua atenção entre os diferentes pontos do espaço. Marí estava invisível outra vez. Mesmo que os Capacitados da Visão pudessem se ocultar da visão alheia, um olhar atento poderia notar algumas inconsistências na ilusão.
Mas não sua visão que a ajudou. Tocando a placa de ferro na tábua em sua perna, a asteni sentiu a forma do metal avançando em sua direção, cortando de baixo para cima.
Ela se agachou a tempo, aproveitando para desferir uma rasteira para frente, acertando dois objetos cilíndricos que capotaram pouco acima de seu corpo. Marí caiu após o golpe, mas, após uma cambalhota desengonçada, conseguiu se recompor, dobrando os joelhos a tempo de pular ao lado, para se esquivar da saraivada de agulhas que voou em sua direção.
— Nada mal. — a ruiva comentou enquanto sacava sua outra adaga. — Já pensou na carreira de tropeiro viajante? Com esse coice, acho que você tem futuro para a mula.
— O Sindicato é tolo em tentar tomar a garota — afirmou a medida que puxava sua própria lâmina curta. — Vocês sabem como ninguém o perigo de deixá-la sem o Inoculador. Para os que se dizem protetores do direito das Bênçãos, os Sindicalistas parecem ignorar as consequências.
— Por favor, pra mim, aquele desgraçado do Levias falando complicado o tempo todo já é o suficiente. Vamos ao que interessa.
Rudon assistiu Marí encurtar a distância para ela, forçando-a a preparar o arremesso de sua adaga. Por ser um objeto de forma mais complicada que bolas e cilindros, precisaria de mais concentração para o arremesso perfeito. Esperou que a distância para a feiticeira se encurtasse a ponto de uma reação ser impossível. Lançou o objeto, mas, assim que o viu voar, sentiu a sensação do metal alheio correndo a sua esquerda, longe do alvo central.
“Outra ilusão!”
Ela forçou a mente para alterar o caminho da adaga, que voou para o alto, enquanto os cabelos enferrujados de Marí surgiram ao seu lado, com uma lâmina brilhante avançando contra seu torso.
Rudon desviou a arma antes dela acertar seu corpo, arrancando-a das mãos da feiticeira ruiva. Depois, com um puxão do braço, atraiu a lâmina no alto, na direção da desafiante.
A lâmina atravessou o corpo fantasmagórico de Marí, que surgiu novamente, dessa vez à direita da sua oponente. Ofegando, ela esboçava um sorriso de alguém que escapou por pouco da morte.
Por sua vez, a asteni, com a mente confusa após forçá-la com os golpes audaciosos de adaga, encarou-a com o cenho amassado.
— Você se esconde bem — a arma branca voou de volta pousando em sua destra. —, mas não consegue fazer isso para sempre.
As agulhas voaram para o alto, e depois cortaram o ar para empalar a feiticeira, que conseguiu se esquivar com um salto para o lado. Contudo, assim que pousou, viu a mulher sacar uma nova artimanha, consistindo de duas bolas de metal unidas por um cordão negro.
Rudon arremessou a arma giratória em sua direção, obrigando-a a se agachar para evadir o ataque. Assim que se levantou, viu as bolas acorrentadas voando de volta em sua direção, girando feito o laço de um peão.
Ela se lançou contra o chão para não ser capturada, e assistiu o objeto voar pelo ar, aos poucos retornando sua trajetória para ela.
“Ela quer brincar de gato e rato comigo!”, apertou os dentes com o impasse. “Acho que preciso de um truque também.”
As bolas encadeadas voaram em sua direção pela terceira vez, mas Marí não se esquivou. Em vez disso, fez cinco imagens idênticas a sua imagem correrem de sua posição para os lados, como se tivesse se dividido em meia dúzia de clones.
A asteni arregalou os olhos com o truque, desconhecendo qual era a legítima. Ela forçou sua arma a uma curva sinuosa, acertando uma a uma.
Nenhuma delas era a ruiva verdadeira.
“Para onde você foi?”, olhava de um lado para o outro, buscando alguma pista.
Aos poucos, sentiu a presença de metal em sua retaguarda, aproximando-se depressa. Ela retirou um saco de agulhas e o arremessou ao ar, depois abaixou seu braço, empalando o solo ao seu redor, criando um círculo de setas metálicas perfeitamente redondo a poucos centímetros de seus pés.
Ela assistiu Marí surgir do vento e pousar pouco passos atrás da circunferência de ferrões.
— Belo ataque. — Um sorriso brotou em seu rosto. — Mas você não têm agulhas infinitas.
A ruiva desapareceu para a mulher de pele negra, dando lugar a outras quatro, que a cercavam em uma distância de poucos passos. O grupo se lançou contra ela, obrigando-a a repetir o mesmo golpe em área para cada uma, criando múltiplos círculos de agulhas para barrar cada ilusão, que desvanecia e surgia em sua volta a todo momento.
Lutar daquela maneira cansava Rudon aos poucos. Em um ataque, sentiu a presença de uma forma de ferro perto de sua direita. Com um movimento do seu braço para cima, fez dezenas de setas serem arrancadas do chão para o alto, cortando quase todo o espaço em sua volta.
Esperou que a ruiva surgisse derrotada, mas nada apareceu em sua visão, senão uma única adaga, ainda quicando no chão após ser arremessada como distração.
— Vasily, cuidado! — alertou o comparsa.
O loiro disputava em força com Tadeu quando ouviu o aviso. Ele pôs a mão contra a parte plana da lâmina e afastou o mercenário, que logo tentou atacá-lo com um golpe diagonal, que foi bloqueado com precisão pela espada, que contra-atacou com um corte na direção do peito do adversário, que saltou para trás antes da ponta do sabre cortar seu tórax.
Vasily escutou pisadas apressadas se aproximando pela sua retaguarda pouco depois. Ele fechou seus olhos e se concentrou na massa que se aproximava, lentamente montando a imagem orgânica em sua mente.
Marí tentou a estocada contra o pescoço do sujeito, mas, para sua surpresa, ele se virou para sua direção na hora do golpe, fazendo a lâmina da adaga deslizar pela da sua espada. O Infante a atacou com um esbarrão do seu corpo largo, golpe forte o bastante para lançá-la contra o chão.
“Ele sentiu eu me aproximar?!”, pensou enquanto via ele abrir os olhos com um sorriso.
— Agora é com você!
— Eu ainda estou aqui, miserável! — Tadeu gritou enquanto brandia seu porrete para o alto.
O mercenário correu para atacá-lo, mas, antes que tomasse impulso para o golpe, viu um novo enxame de Rudon o atacar, forçando-o a recuar para evitar a perfuração. Ela se posicionou entre ele e Vasily, portando a faceta confiante de alguém ciente da vantagem em meio a revanche.
De relance, olhou para os outros dois duelistas, permitindo um breve alívio florescer ao notar que a aliada sumia de desaparecia ao redor do Infante loiro, que bloqueava todo ataque com seu sabre de infantaria.
“Consegui dar tempo pra ela”, concluiu, satisfeito com o meio sucesso. Porém, sabia que sua própria luta era o principal. “Marí não vai conseguir sozinha, aquele homem não é comum. Preciso terminar o meu problema primeiro.”
Enquanto ele fazia sua própria preparação, sua oponente segurava suas duas adagas como para uma facada. Seu foco era imutável e inexpressivo. Ela o encarava com um olhar penetrante, totalmente concentrada para um golpe preciso.
Tadeu se posicionou para a defesa, uma vez que não teria tempo de reagir se encurtasse a distância. Colocou o pedaço de madeira entre ele e a asteni. Tentou aliviar a tensão com uma respiração controlada, mas seu coração palpitante o impediu.
O metal da arma cintilou da mão da mulher em sua direção. Ele pôs o porrete no caminho da lâmina pouco antes de acertá-lo, o que estilhaçou o pedaço de madeira em incontáveis lascas que voaram pelo ar para seu rosto, além de desviar a trajetória da seta de ferro.
Largou o resto do tacape e pôs a mão na espada em seu torso enquanto limpava a cara dos detritos com a mão canhota. Desembainhou a arma restante e se preparou para o novo ataque, que surgiu poucos depois de se recuperar, na forma de um novo vespeiro incontável.
Tadeu tentou evadir com um salto para sua esquerda, mas foi tarde demais. Assim que pousou, sentiu os ferrões atravessarem sua canela.
“Merda!”
Foi tempo suficiente para que Rudon agisse. A asteni redirecionou as bolas encadeadas de volta, enrolando o mercenário em um abraço que selava seu destino. Sem equilíbrio, tentando a todo custo se libertar dos cordões que o prendiam, Tadeu assistiu a feiticeira encurtar a distância, agachando a poucos passos dele.
Ela deixou esboçar sua alegria com o rosto frustrado e enraivecido do oponente. Sua revanche fora um sucesso.