A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 40
Em um campo verde e iluminado pelo sol, o mercenário ruivo posicionou seu dedo sobre o cão da espingarda. Com cuidado, torceu a peça metálica com a pedra de pederneira para trás, fechando o olho esquerdo assim que o objeto estalou. Segurou sua respiração. Alinhou a mira com o seu alvo e puxou o gatilho.
A explosão dupla cuspiu a bala para fora, empurrando-a contra o pedaço de madeira que saiu voando após ser partido em pedaços.
O sorriso de Tevoul cresceu imediatamente.
— Sessenta passos, três tiros, três acertos. Faz melhor agora!
Tadeu desejou arremessar a arma contra o chão. Apesar de ser melhor que o parceiro em quase tudo, o talento de caçador do mercenário de olhos esmeraldas o invejava.
— Que tipo de bruxaria você faz pra acertar isso sem usar um rifle?
— Sei lá… Acho que um dia me disseram que eu era bom nisso, e eu acreditei. — Após se distrair, deu uma cotovelada de leve no amigo. — Vai lá, soldado, você não era o que tinha três medalhas?
O rapaz franziu a testa com a provocação. Podia aceitar ser derrotado por Tevoul com uma arma, mas deixar o ataque verbal de lado ia de encontro ao seu orgulho.
— Quantas eu tinha acertado com cinquenta passos?
— Uma de três.
— E você?
— Todas.
— Você deu sorte, eu estava me aquecendo. — Ele ergueu o mosquete e o engatilhou.
Como seu amigo de cabelos enferrujados, Tadeu alinhou a arma com o quarto toco de madeira posicionado sobre a pedra. Os outros alvos estavam logo à direita daquele. Se quisesse calar o colega, todos precisariam cair. Ele se concentrou no disparo, segurando a respiração para que seu corpo ficasse estático, evitando que o mover de seu peito causasse um desvio inesperado. Tapou o olho esquerdo e acariciou o metal do gatilho, pronto para o disparo.
O mosquete berrou, a bala cortou o ar e explodiu contra a pedra. O soldado nem teve tempo para lamentos, uma vez que o escárnio de Tevoul impediu que focasse em qualquer outra coisa.
— Se a gente voltar pra casa, compro óculos para te ajudar. — O ruivo imediatamente começou a recarregar a arma. Tadeu passou a prestar atenção ao exterior, procurando algo para justificar o fracasso.
— Está ventando mais do que na sua vez.
Um novo estampido ressoou no campo, acertando em cheio o quarto toco de madeira. Mais uma vez, Tevoul o encarou com a faceta mais carente de humildade ou modéstia que ele vira.
— Eu te odeio.
— Vai ter que entrar na fila, Tadeu, o destino parece me odiar bem mais!
Apesar da fala sorridente e animada, o moço de cabelos marrons escurecidos conhecia quando uma pitada de desabafo escapava das palavras do amigo. Ele o assistiu puxar a vareta do mosquete com um sorriso forçado no rosto, tentando manter a máscara sorridente e brincalhona que conhecia, mesmo que deixasse sua aparente angústia extravasar por acidente.
Tadeu sabia que era algo que eles evitaram discutir até ali. Mesmo que semanas tivessem se passado desde a “condenação”, ele preferiu manter o silêncio sobre sua responsabilidade em lançar o amigo em uma missão involuntária e arriscada.
O ruivo sequer ouvira um pedido de desculpas. Querendo ou não, uma hora precisaria confrontar o assunto se quisesse que a amizade se mantivesse sincera.
— Tevoul? — chamou sem olhá-lo.
O ruivo, que preparava um novo tiro contra o alvo, desviou o olhar para o amigo.
— O que foi, vai apelar para a ajuda?
— Eu só…
— Quão radiante está a manhã, cavalheiros! — gritou a voz com pesado sotaque leifanês. Quando votaram suas cabeças para trás, viram a figura de Levias crescer em sua vista, posicionando-se entre ambos. — Praticando com vossas espingardas? Esplêndido! Perdoem-me a súbita intromissão, contudo desejo introduzir-me como o terceiro competidor na disputa.
Tadeu bufou ao ser interrompido. Conhecia o jeito intrometido e escandaloso do novo membro do grupo, mas nunca imaginou que seria atrapalhado de tal maneira.
— Você pode falar que nem gente se quiser.
Levias iniciou uma sessão de risadas educadas, enlaçando o braço direito nos ombros de Tadeu, usando de uma intimidade que nunca possuiu.
— És mesmo um excelente comediante, Tadeu, arrancaste de mim risadas genuínas. Pensaste em fazer carreira no circo se não fostes um mercenário?
O jovem ficou em dúvida se a questão fora um elogio ou uma piada sarcástica. Preferiu acreditar na primeira, uma vez que a segunda o obrigaria a conviver com o fardo de que fora ele o principal responsável de pôr o loiro na equipe.
— Você sabe atirar, pelo menos?
— De certo que sim! — Em um movimento dramático, sacou a pistola da cintura. — Apesar de leifanês, tenho ancestrais da Cistarra, por isso carrego o formoso sobrenome de “Foultuoe”. A cultura de duelistas lá é focada em duelos com garruchas, então desde cedo me treinaram para tais competições sangrentas.
— Aqui não tem duelos? — duvidou Tevoul. — Pra mim isso era comum em todo o Leste.
— Creio que me expressei mal. Duelos são comuns em Leifas, todavia em um formato deveras distinto do vosso. Aqui se usam mais espadas para este empreendimento violento, principalmente na forma do “Duelo de Destino”.
— “Duelo de Destino?” — Os dois mercenários perguntaram em simultâneo.
— É um tipo bem específico de duelo. O primeiro foi disputado entre Zhilan, o Libertador e Noprakin, um general do Primeiro Império Odavita. Zhilan o venceu e criou o Segundo Reino da Dormávia, mesmo que longe de sua glória sob Erinovi. Desde então, tais tipos de combate são travados por essa nação. — O loiro os encarou, vendo suas faces insatisfeitas. — Sei que não expliquei exatamente o que é um Duelo de Destino, mas a tradição me obriga a manter o segredo. Somente o mestre de um espadachim pode revelar as regras da peleja. Talvez, se um leifanês os ensinar a arte da esgrima, descubram como funcionam.
— É bom a gente arrumar um mesmo, Tadeu é péssimo com espadas, pior até do que atira.
O jovem mercenário detestou as palavras do amigo, mostrando-o uma cara nada amigável. Tevoul notou seu erro e, de imediato, tentou mudar o foco da conversa:
— Mas seja menos “falação” e mais “ação”, sindicalista, ainda temos um alvo para você.
— Claro, permita-me demonstrar minhas habilidades.
O loiro segurou a arma pelo cano e retirou a vareta de madeira. Depois, remexeu o bolso e tomou um pequeno cartucho de papel. Em nome da elegância, preferiu não rasgá-lo com os dentes, rompendo-o com a mão. Pôs uma pequena carga de explosivo na caçoleta da garrucha, e depois o resto despejou no cano, junto da bala esférica.
Com a vareta, empurrou projétil e pólvora no interior da pistola, com todo cuidado para que tudo ficasse apertado.
— Excepcional, cavalheiros! — Guardou o cilindro de madeira de volta na arma. — Vejamos como me sairei.
Ele alinhou a arma com o alvo de madeira. Concentrou-se para evitar vibrações exageradas e, com um olho fechado, puxou o gatilho da garrucha, fazendo a bala acertar a lateral do alvo.
Tensão se iniciou ao ver o objeto girar. Contudo, para o infortúnio de um cavalheiro de tamanha jactância, o alvo manteve-se ereto, recusando a cair. Levias bufou com o fracasso, mas, ainda sim, o disparo foi suficiente para impressionar os dois soldados.
— Foi por pouco! — Tadeu celebrou para levantar o ânimo do sindicalista. — Você treina tiro?
— De certa forma, sim. — Forçou um sorriso. Aos poucos, aceitou que sua performance não foi tão abominável. — O Administrador do Sindicato é um erudito, como viste, o que significa que esportes de tiro são admirados por sua figura. Consegui um magnânimo segundo lugar na disputa mais recente, não que seja de meu agrado vangloriar-me de minhas conquistas.
Confuso, Tadeu olhou para Tevoul, e depois focou no loiro.
— Realmente, um poço de humildade.
— Grato por tua percepção apurada. — Ele pôs a mão na barriga e se curvou.
O mercenário riu da cena. Mesmo que conhecesse a pouco tempo o novo membro da trupe, não pôde deixar de notar a figura que tinha diante de seus olhos. Sentia que o loiro passava um ar de aristocrata novo-rico envolto em múltiplas camadas de seriedade e piada, de tal forma que ninguém poderia dizer se Levias era sincero ou um personagem. E, após analisá-lo mais a fundo em sua mente, Tadeu percebeu que isso ia bem além de sua personalidade.
A própria entrada do sindicalista na trupe, apesar de apoiada por ele, era-lhe estranha. Por mais que admirasse que o moço ficara do lado deles a todo momento, sentia que ninguém em sã consciência se lançaria na aventura na qual foi forçado a participar.
Sua alegria com a excentricidade de Levias se tornou em dúvida em poucos pensamentos.
— Só espero que você ofereça mais que bons tiros pra gente.
O loiro piscou os olhos com força, encarando-o com dúvida.
— O que insinuas, Tadeu? — Abriu um sorriso e o mostrou a mão coberta pela luva. — Não crês que minhas capacidades no Vivo e Intocável sejam suficientes para a empreitada?
— Não, não é isso que eu quis dizer, só acho um pouco estranho que alguém se voluntarie pra uma luta que não é sua.
Uma gargalhada eloquente deixou o corpo do sindicalista, rindo para esconder suas intenções verdadeiras com a expedição. Pensou que, ao rir, passaria para a dupla descontração no lugar da desconfiança, afinal, um rosto alegre sempre convencia mais que um preocupado.
— Cavalheiros, vós me desmascarastes. Não vim por conta própria.
A confusão nascida no olhar de ambos era o que Levias queria. “Uma meia-verdade não fará mal”, pensou. “Ou será uma meia mentira?”
— Na verdade — continuou —, foi uma ordem do Administrador.
— O que queria que a gente pegasse a menina e desse pro Sindicato? — Tadeu achou a história estranha demais para seu gosto. — Isso só faz sentido se…
— Se desejassem que eu trouxesse a criança para o Sindicato, certo? — O loiro assistiu Tadeu confirmar, embora desconfiado. — Bem, tudo que posso dizer é que mesmo os da “velha guarda” do Sindicato entendem a gravidade da situação. Uma Filha de Kolur, por mais primitiva que seja, pode se tornar uma ameaça tremenda. Como só os monarquistas se demonstraram desesperados o bastantes para apelar a tais métodos, então os dois decidiram que a República é o menor de dois males.
— Sinceramente — Tevoul se intrometeu —, eu ainda não entendi como a pirralha pode ser um problema como vocês falam. A asteni ganhou dela sem muitos problemas.
— Boa observação, companheiro. — Levias apontou o indicador ao mercenário. — Contudo, creio que seja limitada em escopo. Primeiro, considere que ela é uma criança e, segundo, que não temos como saber se todas as Inoculações foram feitas. A menina é um protótipo. Não só seu Inoculador pode introduzir mais sangue de Capacitados em suas veias, como ele aperfeiçoará sua técnica.
Os dois sulistas se entreolharam com uma vaga apreensão. Depois, voltaram os olhos para Levias, cientes do peso de suas palavras.
— A menina só é a primeira — concluiu Tadeu.
Com o rosto sério, o leifanês acenou com a cabeça, confirmando.
— Exato. Muitas mais podem ser produzidas. Como Gilina guarda atrás de sete chaves todos os segredos de suas armas, o frade Astovi só possui um conhecimento vago e teórico do processo de criação de uma Filha de Kolur. A garota é… — O sindicalista relutou em fazer a comparação — o “rato de laboratório” daquele mentecapto.
O loiro usou seu decoro para manter a postura elegante. Mesmo com seus mistérios, sua opinião sobre o frade extravasava além do que era capaz de conter. Ele se voltou aos dois mercenários com o rosto amargo, pedindo a seriedade total dos dois.
“Acho que não precisarei mentir para eles nessa parte.”
— Se o bastardo puser as mãos na menina, não haverão limites para repetir a crueldade de Carasovi durante a Guerra do Intocável. Eu não me importo com a disputa entre a República e a coroa. Mas o Sindicato se importa com o uso das Artes para seu Propósito tanto quanto a Igreja de Kolur, mesmo que a última tenha se mostrado falha em julgá-lo.
— “Os Filhos do Primogênito amaldiçoaram a Terra; e os do Demiurgo a consertarão” — Tevoul citou. — Isso não tem a ver com a criação dos homens? Não sei se isso importa hoje, já que o mundo está consertado.
— Há teólogos que pensam assim, mas não é a regra. Alguns creem que o Propósito dos Homens é eterno, acompanhando-nos até o fim dos tempos. O mundo foi quebrado uma vez, mas não faltaram tentativas para destruí-lo depois.
— Fala do Desalmado? — perguntou Tadeu, duvidando do que Levias sugerira. — Acho que a lenda do passado não seria tão importante hoje. Ninguém nunca ouviu falar de um único cultista há séculos.
O indicador do loiro balançou em negação.
— Pensas pequeno, Tadeu. O problema vai muito além dos adoradores do ramúrio e seu deus fajuto. Meros homens, como eu e você, podem levar a Terra para o sofrimento sem apelar para o sobrenatural. G’natleil, Carasovi e o próprio frade são exemplos disso.
— É bem diferente do que pregam nas Igrejas.
— As Igrejas pensam diferente de nós, e talvez estejam certas em partes do problema que é capacitar todos os homens, mas esse é nosso dever. — O idealismo invadiu sua face, deixando-o com uma aura arrogante. — É a missão do Sindicato. Manter a humanidade próxima de seu propósito original, permitindo que todos tenham acesso ao conhecimento das Bênçãos.
Tadeu não era a pessoa mais apta a opinar sobre narrativas ideológicas, mas a fala eloquente de Levias o deixou pensativo. Era um ponto bem diferente do que ouvira sobre as Artes. Assim como no Norte, no Sul a Igreja de Goren limitava o uso da Bênção do Morto e Intocável para tarefas religiosas e pequenas forças de Capacitados treinados para combate, similares aos Infantes da sua contraparte nortenha. O Sindicato oferecia uma liberdade que, até então, era-lhe desconhecida.
Já Levias estava satisfeito com o que conseguiu. Ele ficou apreensivo com os questionamentos desconfiados do mercenário de pele olivada, mas soube manter-se sério e, mais importante, desviou a conversa do assunto delicado.
No fim das contas, foi como seu disparo com a pistola: um tiro de raspão que ameaçou o alvo, mas incapaz de destruí-lo.
— Creio que devamos retornar à presença de Nico e Marí — destacou aos mercenários. — Não sei se perceberam, mas o major aparenta ser um de meus desafetos involuntários. Prefiro não ter que ouvir seus gritos por demorar demasiadamente.
Os dois soldados assentiram com um riso tímido. Sem alarde, tomaram suas armas e munição e se retiraram do local da prática, em busca da carroça.
***
Enquanto isso, quilômetros ao leste, Rudon estava sentada no canto de um quarto escuro, abraçada a suas pernas dobradas. A porta fechada e a cortina grossa impediam que qualquer luz adentrasse o recinto.
Mas ela preferia assim. A vergonha de se expor após a derrota só aumentou após seu reencontro com o frade, tanto que sequer cogitou ficar sobre a cama à sua esquerda, que era apenas uma silhueta sem forma em meio ao escuro.
Contudo, seu sofrimento controlado durou pouco. Alguém bateu repetidas vezes do lado de fora, o tom calmo revelando se tratar de uma pessoa diferente da esperada.
Ela se ergueu depressa. Bateu as mãos contra o vestido engelhado e puxou as mangas para baixo, a fim de ocultar sua vergonha. Deu dois tapinhas leves no rosto para desamassar o semblante. Enfeitou o rosto com determinação inexistente e chamou:
— Pode entrar.
Com um rangido prolongado, a porta se abriu, iluminando novamente o cômodo na escuridão. Detrás da entrada, revelou-se um homem alto e corpulento, de cabelo loiro e espetado, portando a espada e o uniforme branco e dourado de um Infante da Igreja de Kolur.
Um sorriso enfeitava seu rosto, o que deixou a asteni desconfortável. Seus olhos azuis e nariz reto revelavam a malícia portado pelos piores pecadores, do tipo impossível de se esconder, mesmo debaixo da túnica de um santo.
— Você deve ser a Rudon — concluiu com uma voz profunda, mas, de certo modo, jovem. Pôs a mão sobre o pomo da espada e a balançou. — Creio que o frade falou sobre mim.
— O Infante que ele pagou, correto? — lembrou-se aos poucos das palavras de Astovi. O sujeito assentiu. — Ele conseguiu a pedra, pelo menos?
Ele pôs a mão dentro do bolso do uniforme. De lá, retirou um objeto circular do tamanho de uma moeda. O buraco em seu centro revelava se tratar de um anel, mesmo que a luz escassa o tornasse uma forma sem cor.
— Toma. — Vasily arremessou a bijuteria para a asteni, que o agarrou habilmente.
Ela observou a joia metálica na sua palma, alisando a Pedra Inoculada. Vestiu-o no dedo e admirou o enfeite com um sorriso. De alguma forma, sentiu que o localizador mágico era uma nova chance do destino, apagando o fracasso anterior.
— Vai ficar olhar essa coisa até o frade voltar com o chicote? — caçoou dela.
Ele a viu franzir a testa. Parecia ainda mais concentrada no anel e em seu material, assumindo uma postura que o preocupou. Ele não entendeu o que a mulher estava fazia a princípio, mas, ao notar seu sabre vibrando, sentiu sua espinha gelar.
A espada do Infante saiu da bainha em direção a sua cabeça, errando por um milagre de seu reflexo. Depois, a arma caiu sobre a mão direita da asteni. Ela marchou até chegar a um passo do homem assustado. Com um sorriso nefasto, encostou delicadamente a ponta da lâmina no peito do Infante. Entregou-lhe a arma sem qualquer medo de retaliação.
— O estrume que sua boca vomita não me interessa.
Ela cruzou o portal do quarto e saiu em passos irritados pelo corredor, o tempo todo sob o olhar de Vasily, que, passado o susto, sorriu outra vez sem qualquer moralidade.