A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 39
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- Capítulo 39 - “De lá se ergueu Katiucha, na alta margem íngreme”
Do alto do morro de onde os golems avançaram, Nofrezyr alegrava-se com o rosto encantado do príncipe Garuín. A criança estava em cima de um cavalo negro, permitindo que ele visse todo o campo de batalha.
— Elas são enormes! — o garoto exclamou após ver os golems avançarem. De longe, mais pareciam naus de guerra pintadas de azul que criaram pernas.
— Sim, meu jovem, elas são! — respondeu com ânimo. — E as terminamos no tempo certo. O inimigo caiu na nossa ratoeira, assim como planejamos!
O pesado bombardeio das Katiuchas prosseguiu, forçando o I Corpo de Exército colorado a recuar para uma posição de inclinação reversa¹, atrás da crista do morro onde montara suas linhas de batalha.
Enquanto isso, na parte mais externa do seu flanco esquerdo, a tropa de ginetes garuísta colidiu com o Corpo de Cavalaria da República. As duas formações se misturaram em meio ao caos, guerreando com sabres e lanças pela possibilidade de flanquear o inimigo.
— Se forçarmos até a retaguarda inimiga — a cavalo, introduziu-se um outro homem, este com uma voz fina e desengonçada —, poderemos cortar a linha de retirada de Juno!
Levefder parou seu alazão ao lado do de Nofrezyr. Ele balançou seus cabelos loiros e encaracolados com um sorriso bobo, e depois chacoalhou seu uniforme azul, que tinha um tom mais escuro do que seus olhos turquesa.
O gilinês estranhou a alegria estampada no rosto do comandante. Era esquisito assistir seu general sorrir feito um pateta durante o clímax da batalha, como se não houvessem pensamentos dentro de seu crânio.
— Algum problema, general?
— Nenhum, senhor! — respondeu com ânimo. — Só acho que Juno está muito passivo. Ele é meio que uma raposa…
— Só mantenha a pressão. Juno pode ser bom no que faz, mas é humano, ele também comete erros.
— Ah, senhor, Juno não comete erros! — Manteve o semblante feliz que irritava Nofrezyr. — O marechal sabe o que faz.
“Por que você rasga elogios pro sem culotes do Juno?”, Nofrezyr se enojou.
— Mas não se preocupe, senhor, Juno não fazia ideia que tínhamos golems. Eles não tem balas encadeadas para derrubar as pernas das Katiuchas!
O sorriso do comandante manteve-se em seu rosto. Naquele instante, o demagogo gilinês se questionava se escolhera um lunático como general.
— Que seja — disse rispidamente.
***
Enquanto isso, no centro da formação republicana, o clima era tão pesado quanto os golpes sofridos pelos homens de Madro. Do alto do morro, Danilki e Favrilo enfrentavam-se em uma discussão acalorada, ambos estando de frente para Juno, com uma mesa contendo o mapa da fortaleza e pequenas peças de madeira sobre o mesmo separando-os.
Todos portavam lupas para observar o ataque. Eles assistiram uma salva de canhões atirar contra a face metálica do golem, que ricocheteou todos os pelouros sem qualquer dificuldade. Enquanto isso, a infantaria despejava voleio atrás de voleio, a fim de não só vitimar os soldados a pé do inimigo, mas também para criar uma nuvem de fumaça grossa o bastante para permitir seu recuo seguro.
Mesmo que passassem longe de serem parecidos, o ar analítico de Danilki e a cautela de Favrilo os tornavam uma voz uníssona sobre a situação. Os dois generais que acompanhavam o generalíssimo pareciam sentir cada ataque das Katiuchas. Desde o início da carga, viram os dois corpos de exército mais capazes da força republicana em completo caos, cedendo o terreno elevado aos poucos.
— A nossa linha parece uma cobra de tão torta — Favrilo comentou após encarar o mapa. — Começa reta, faz uma curva para a esquerda, depois curva para direita de novo.
— Corremos o risco de estender a frente — continuou Danilki. — Mesmo com reservas, a superioridade numérica só trará mais alvos para os golems… Nossa linha pode romper a qualquer momento.
Aflitos, ele fitaram seu comandante em uniforme vermelho, esperando por uma resposta. Porém, tudo que recebeu foi o silêncio. A pose do cônsul ficou inalterada.
— Precisamos reforçar o flanco direito, senhor. — Favrilo tentou chamar sua atenção diretamente. — Se estabilizarmos a frente lá, poderemos cobrir uma evacuação do IV Corpo de Saravi.
Ao ouvir a proposta para abandonar a batalha, Juno virou o rosto para o homem, controlando sua ira. O general do V Corpo notou o desconforto do seu comandante.
— Recuar, general? Isso não é uma opção.
Os dois generais arregalaram os olhos.
— Marechal! — Favrilo exclamou.
— Senhor, precisamos agir agora!
— Já alcançamos o objetivo de recuperar as forças de Saravi, pela honra de Faor, recue antes de uma tragédia!
Dessa vez, ele ergueu sua mão para silenciá-los. Encarou-os com o rosto exprimindo certeza, mesmo que com pouca emoção. Sua intenção era óbvia. Juno pedia calma aos dois, mesmo em meio a cada minuto precioso, quase como se os dissesse para confiar-lhe a próxima ação.
Ele analisou a falta de esperança em seus comandantes desesperados, sem se importar com a tirania do relógio. Ele virou as costas à dupla e apontou seu corpo para o morro central, onde as forças do inimigo mantinham-se imóveis.
— O III e V Corpo ocupam o centro e estão intactos. — Juno os rodeou com calma, pondo-se entre ambos com as mãos para trás e a tranquilidade de um apostador. Ele se inclinou para a mesinha. Mexeu as peças de madeira com certa pressa, talvez para indicar agressividade. — O inimigo está quebrando nosso flanco direito, mas temos a chance de destruir seu centro se usarmos os dois corpos para atacar a elevação. Com esse golpe, poderemos expor ambos os flancos dos garuístas.
O marechal terminou de mover as peças, posicionando as duas unidades no lugar do centro inimigo.
Seus dois acompanhantes se entreolharam, ainda aflitos. De algum modo, Juno possuir um plano não os deixou nenhum pouco menos apreensivos, principalmente por seu risco.
— O inimigo ainda tem golems, senhor. Se eles nos pegarem enquanto atacamos, podemos ser aniquilados.
— Mas nós seremos rápidos, Favrilo. Não notou algo estranho no ataque com as Katiuchas?
O comandante de cabelos longos pôs a mão sob o queixo e forçou a mente para obter uma resposta.
— O que quer dizer com isso?
— São tropas organizadas. — Pôs a mão sobre as peças que representavam o ataque inimigo contra os soldados de Madro. — Desde quando entramos nessa campanha, enfrentamos milicianos e recrutas mal treinados. Não acha estranho como aprenderam a se portar com um golem atrás da própria linha, mesmo com tão pouco treinamento?
Dessa vez, sua mente foi rápida para entender o mistério.
— Os soldados gilineses?
— Correto. As tropas odavitas que nos atacaram, mas o centro inimigo é guardado pelos mesmos soldados desmoralizados que enfrentamos em Tova. — Juno trocou o foco de Favrilo para Danilki. — Faremos uma carga contra o centro antes do nosso flanco direito ruir. Quando isso acontecer, usaremos todos nossos canhões em uma grande bateria contra os golems.
— Por isso pediste para unificar a artilharia do III e do V! — O jovem general de cabelos castanhos soou surpreso.
— Golems possuem boa blindagem frontal, mas a lateral é de madeira. Também são lentos. Vamos apontar nossos canhões antes de apontarem os deles contra nós.
— Mas isso vai depender do I Corpo e da cavalaria — Favrilo não estava convencido. — Se eles não segurarem… Teremos problemas.
Contrastando com seu tom normalmente sério, Juno deixou escapar um sorriso.
— É o general Madro que está com o I Corpo, general. O único com problemas é o inimigo.
***
Centenas de mosquetes trovejaram contra as linhas republicanas. As balas voaram contra a formação colorada e atingiram alguns valentes do 14º Regimento, mas a linha se manteve. Era necessário bem mais que um único voleio para deter uma unidade de granadeiros.
Os republicanos apontaram seus mosquetes e revidaram com outro salvo poderoso, levantando a névoa cinzenta da pólvora para devolver o mesmo golpe de chumbo anteriormente sofrido.
Com os dois grupos sem munição, iniciou-se uma disputa por quem carregaria suas armas mais rápido. Soldados de vermelho e de branco com gravatas azuis puxaram suas varetas e começaram a golpear os cartuchos de papel para dentro das armas, na lentidão padrão que suas armas de antecarga² os obrigavam.
Por trás da fumaça translúcida das saraivadas, o gigantesco golem de quatro patas alinhou seu canhão contra os guerreiros de vermelho. Seus chifres expeliram todo o vapor de seu motor interno, anunciando o fim da recarga assim que seu som de órgão cessou.
Com sua espada em mão, Madro foi rápido para dar a ordem:
— Abaixem-se!
A ordem se repetiu entre seu oficialato:
— Soldados, abaixar!
— Para chão!
— A Katiucha vai atirar!
Normalmente, ficar de pé não era um problema, considerando a baixa precisão dos mosquetes em uma distância superior a cem metros. Contudo, contra o canhão de um golem, ficar de pé beirava a loucura.
Madro foi o último a se deitar. À sua esquerda, como de costume, estava o coronel Rasupen, do 14° Regimento.
— Precisamos sair daqui — disse Madro —, o inimigo vai nos matar se continuarmos nos abaixando e recuando!
O imenso canhão do monstro metálico cuspiu fogo, fazendo seu projétil cortar o ar em um som agudo.
Dessa vez, o I Corpo de Exército saiu ileso. Os soldados e oficiais de seus quatro regimentos ergueram seus corpos, armas e bandeiras. Assim que se puseram de pé, seu inimigo disparou um novo voleio de chumbo contra eles, atingindo parte dos soldados que mal haviam se equilibrado.
Os gritos de dor dos novos feridos acompanhou o dos deixados para trás. Uma fila de caídos percorria toda a distância da formação republicana à garuísta, resquícios da retirada gradativa e sangrenta que a tropa se submeteu.
— Tens razão, general! — concordou Rasupen, levantando-se junto do superior. — Precisamos recuar!
A cara do comandante inchou, pintada com vermelho fervente.
— O que disse, Rasupen?! Recuar?!
O coronel ficou espantado com o berro que recebera, mesmo que considerasse àquela altura que já deveria ter se acostumado.
Um pouco mais atrás, em uma distância mais segura, os canhões da artilharia do I Corpo dispararam uma saraivada contra os dois golems, lançando mais de uma dúzia de pelouros contra a máquina de ferro.
Três tiros acertaram o primeiro, todos ricocheteando contra seu bico metálico. O mesmo aconteceu com os outros dois projéteis que acertaram o segundo.
— Ouça, Rasupen, o inimigo conta com a distância — explicou. — Nossos canhões não conseguem derrubar os golems de frente. Também não devemos atirar contra as pernas, seria perda de munição. Então, o que nos resta é atacar a infantaria que guarda a frente das Katiuchas. Se chegarmos perto, eles não poderão nos atacar sem ferir os soldados deles.
O Coronel ouviu com atenção o plano. Fazia sentido. Contudo, notou algo que embrulhou o seu estômago na tática de Madro:
— Senhor… O quão perto?
O general o encarou com uma expressão imponente. Apesar de não ser do seu costume tolerar os questionamentos do subordinado, ele sabia que proporia uma loucura.
— Dê a ordem para içar baionetas.
Admitir lhe doía, mas Rasupen sabia que não tinham outra opção. Com o rosto determinado, sentiu a necessidade de saudar o marechal, pressentindo o perigo de se aproximar.
— Sei que não sou o mais corajoso dos oficiais, senhor, mas darei o meu melhor.
Madro permaneceu calado frente as palavras de Rasupen, que logo partiu para dar as ordens do general. Um sorriso surgiu na cara do comandante careca assim que o oficial deu as costas.
— Eu sei que vai, garoto.
Depois, elevou seu olhar para a outra batalha que ocorria. Na sua direita, o Corpo de Cavalaria de Kurco pelejava com ímpeto contra a força de cavalaria garuísta, em um esforço que aparentava estar travado para ambos.
“Pelo menos não vou ter que me preocupar em formar quadrados”, ele pensou.
A trombeta de guerra de um dos golems tocou outra vez, junto com o poderoso golpe de um de seus pés, anunciando que o segundo golem terminou a recarga. Repetindo o manual, Os soldados se deitaram. O general embainhou seu sabre e repetiu o gesto de seus homens, fazendo questão de ser o último a tomar cobertura.
No chão, cerrou o punho, sem apertá-lo, e beijou o polegar, erguendo-o para os céus em seguida. Uma prece.
“Isso me lembra o Maravi… Um Grão-mestre da Ordem de Erinovi nunca deixaria de orar antes de uma batalha.”
Madro deixou um sorriso escapar ao lembrar do colega que permaneceu leal a princesa Nasti. Mesmo que grandes parceiros no passado, foram feitos inimigos pelo presente.
— Se meu destino for me juntar aos exércitos que seguram o Desalmado nas portas do Submundo, então que seja feita tua vontade — Madro sussurrou.
O disparo ecoou pelos campos, cuspindo o pelouro de pedra contra as linhas republicanas. O impacto fez o chão tremer feito um terremoto. Mais soldados foram rasgados pelo projétil, deixando uma pequena cratera no lugar que se tornou sua cova. Entretanto, seria a última vez. A flâmula republicana ergueu-se outra fez triunfante após a poeira do golpe passar, junto de uma linha imponente de vermelho que se refez após o ataque, evidenciando o quanto a teimosia caracterizava a formação de revolucionários.
Madro se levantou e foi para a frente de seus homens enquanto um novo voleio voava na direção de seus comandados, sem se intimidar com as balas que cortavam o ar próximas à sua cabeça. Como de costume, não parou de gritar comandos com seus oficiais.
— Baionetas! Calar baionetas! — exclamava.
Seus soldados sacaram suas armas das correias, encaixando a peça no cano de suas armas.
Assim que terminaram de fixá-las, os tambores rufaram. A pose dos regimentos se tornou firme e rígida, à semelhança de uma muralha impenetrável, uma imagem que enchia de orgulho o general Madro.
— Hoje, o inimigo se esconde debaixo dos canhões do tirano de Gilina para nos tornar seus escravos como nos tempos de Zhilan! Vamos mostrar pro czar e para os patifes que o servem como os leifaneses são bons vassalos!
A melodia dos tambores mudou, ordenando que os soldados marchassem. Junto de milhares de passos determinados e uma onda infindável de baionetas, as flautas iniciaram uma música que destoava da carnificina que viria, acompanhada pelo trovejar de milhares de passos.
Enquanto o I Corpo avançava, os fuzileiros garuístas apontaram seus mosquetes para a formação. Um voleio cortou o ar, pondo ao chão alguns colorados. A linha se manteve. Junto das flautas, os tambores continuaram a retumbar em ritmo constante, perfeitamente sincronizados com os passos de uma legião escarlate.
Os gravatas azuis recarregaram seus mosquetes com uma perícia que não se viu durante o confronto em Tova, uma disciplina da tropa não deixava dúvidas para o general. Eram as tropas gilinesas.
— Odavitas miseráveis… — Ele riu. — Repitam comigo, soldados: morte ao czar! — Madro desembainhou a espada e puxou o grito de guerra.
Milhares de almas responderam-no:
Morte ao czar!
— Morte ao czar!
Morte ao czar!
— Poluvín é uma cadela!
Cadela! Cadela! Cadela!
Outro salvo rugiu contra as colunas que marchavam contra os golems. Soldados de vermelho caíram, mais do que da outra vez, mas o avanço não se desfez. O I Corpo continuava sua investida.
— 14º Regimento… Alto! Sentido! — Rasupen gritou, interrompendo a marcha.
Seus subordinados repetiram os comandos para as formações menores, até que todos os colorados levassem suas armas para a posição correta.
— Apresentar armas!
Os soldados engatilharam seus mosquetes e os apontaram para o inimigo que ainda faziam a recarrega, agora perto o bastante para mandar metade deles ao inferno. Restava somente um comando.
— Fogo!
***
— O Exército Republicano está avançando! — gritou um mensageiro, com a face apavorada.
Nofrezyr virou a face para o homem com os olhos saltando da cara. Levefder se surpreendeu, mas manteve um sorriso de entusiasmo.
— Onde?! — perguntou o gilinês.
— No flanco esquerdo, senhor!
O queixo do odavita despencou. Até mesmo o general Levefder, antes sorridente e sem seriedade, deixou a luneta escapar de sua palma e cair no chão.
— O quê? — o general perguntou confuso.
Desesperado, o mensageiro desceu do cavalo e apanhou a luneta de Levefder, pondo-a sobre a sua mão, mas seus dedos não seguraram o objeto, deixando-o cair outra vez.
— Segure a droga da luneta, imprestável!
Dessa vez, o general segurou o objeto com força e o apontou para o lugar do ataque.
— O Exército Republicano partiu para uma carga de baioneta contra a linha de escolta dos golems — o mensageiro explicou.
— Se eles conseguirem quebrar o suporte de infantaria, eles poderão explodir as pernas das Katiuchas! — Nofrezyr exclamou.
As mãos do general se abriram pela terceira vez, deixando a luneta despencar.
— Isso é um problema, senhor Nofrezyr!
— Não me diga, paspalho?!
— Digo sim, senhor, estamos em apuros!
— Pare de agir como uma criança lunática e faça alguma coisa, inútil!
— Quanta grosseria…
Antes do fim da discussão dos líderes garuístas, escutaram o rufar dos tambores. Por detrás da música, um coro bradava enquanto seus passos golpeavam o solo, anunciando o início de um novo duelo.
Nofrezyr sentiu um calafrio correr por sua espinha. Ele arrastou a manga do fraque verde que vestia e viu seus pelos saltados. Enquanto os gritos e tambores rugiam, o gilinês sentiu-se vulnerável como nunca antes.
— O que foi isso, general?
Levefder se mostrou sério novamente.
— O avanço não é só no flanco direito, senhor. O centro também está sob ataque. — Ele tomou a luneta da mão do mensageiro e encarou Nofrezyr. — Temo que sejamos a caça agora.
— Caça?
Os canhões reverberam pela planície da fortaleza de Bulirka. Balas de canhão estouraram pelas linhas garuístas, dilacerando corcéis, homens e estandartes sem qualquer distinção. Por trás do bombardeio, a imparável marcha de mais de uma dezena de milhares de homens seguia para a elevação, todos ombro a ombro, mosquetes em mãos, baionetas cortando o ar. A música dos regimentos, tocada em flauta e tambor, parecia menos alegre. Soava como uma ameaça. Era o cortejo fúnebre que acompanhava um ceifador vingativo, mas que Nofrezyr nunca imaginou capaz de o ferir.
“Esse plebeu maldito…”, o gilinês começou a refletir sobre suas ações no passado. “Se bem que a culpa também é minha. Deveria ter acabado com você quando tive a chance em vez de poupá-lo.”
— Porcaria… — Nofrezyr sentiu-se pressionado pela primeira vez em anos. Ele olhou para os golems que marchavam contra os republicanos e desejou salvá-los, mas um rato como ele preferia deixar o orgulho do seu czar morrer do que correr o risco da captura. — Levefder, vamos recuar. Ordene as Katiuchas para bombardear esse morro!
— Certo, senhor!
A trombeta soou para anunciar a retirada. Contudo, ao contrário do esperado, os soldados inexperientes ouviram a ordem e, sob a imagem da carga de infantaria que se aproximava, não tiveram qualquer apreço pela coragem. Largaram suas armas e estandartes e correram na direção oposta. Em poucos segundos, a linha inteira do Exército Garuísta se desmanchou como papel na água, com seus homens se pisoteando enquanto corriam da coluna colorada que sequer os tocou.
O centro ruiu sem que uma única baioneta os alcançasse.
Com cuidado, Nofrezyr agarrou Garuín e galopou para longe do morro atacado, tentando evitar sua captura. Mas não estava só em sua fuga. Soldados corriam e tropeçavam à sua frente, à suas costas e aos seus flancos, apavorados com a possibilidade de enfrentar a formação veterana do generalíssimo leifanês, tornando a retirada do nobre ainda mais complicada.
— Saiam da frente, paspalhos!
— Nofrezyr… — o menino cochichou enquanto o cavalo corria a toda velocidade. — Eu estou com medo…
— Nós vamos escapar, príncipe, não se…
O demagogo arregalou os olhos ao olhar para sua direita, de onde surgiram centenas de cavalos correndo em sua direção. Tentou enxergar as cores em suas bandeiras, deformes devido a poeira e a fumaça da batalha, e logo reconheceu a flor de cinco pétalas em completa descrença.
“A cavalaria dos miseráveis quebrou a nossa? E vieram para cá em vez de ajudar o flanco deles?!”
Sem pestanejar, puxou os cabrestos e apontou para a única direção sem soldados ou cavaleiros. O odavita golpeou o peito do animal e o forçou a trotar com toda a força de seus músculos para a única rota de saída, acompanhado por um punhado de soldados desarmados que corriam sem rumo, tomados pelo medo da morte.
Quando olhou para trás, Nofrezyr assistiu os homens de Kurco atravessarem as massas de soldados em fuga. Os sabres dos ginetes vestidos em amarelo e couraça faziam o sangue esguichar por onde cortavam, ao mesmo tempo que seus cavalos atropelavam os que estavam fora do alcance de suas espadas.
A carnificina prosseguiu sem qualquer alteração. Menos e menos bandeiras garuístas se estendiam ao alto a cada galope de seu cavalo rumo à segurança. Com o peito ardente, admitiu para ele mesmo que seu exército se tornou passado.
***
No flanco direito republicano, o combate corpo a corpo ocorria com a mesma brutalidade do que ocorrera sobre os muros de Bulirka. Madro, em especial, estava em êxtase. Com uma estocada rápida, furou o peito de um gilinês e a arrancou depressa, chutando o seu torso sem o respeito comum em duelos. Em seguida, partiu rumo a outro infeliz que tentou estocá-lo com a baioneta, apenas para que o comandante se esquivasse e depois o golpeasse no pescoço.
Após o tombo do defunto, o sujeito careca olhou para o morro ao centro em um momento. Seus olhos não creram a princípio, mas logo sorriu ao ver o inimigo correndo como formigas sem direção. Mais distante, ao norte, podia ver as linhas dos homens de Saravi atacando as posições restantes dos gravatas azuis.
— Juno quebrou o centro! — gritou Madro. Porém, percebeu as implicações do ataque pouco depois. — Homens! O marechal quer roubar nossa glória!
Os granadeiros do I Corpo lutaram com ânimo revigorado, golpeando ainda mais poderosamente seu inimigo. Mesmo assim, os soldados de Garuín não recuavam. Como odavitas, tinham os golems como seu orgulho, e abandoná-los seria o mesmo que assinar sua desonra.
No meio da peleja, uma corneta soou do lado garuísta. Os golems dobraram suas pernas metálicas envoltas por cordões cor de âmbar no eixo vertical, indicando uma manobra de curva. Lentamente, as duas máquinas de guerra iniciaram a manobra demorada, apontando seus canhões para o morro que outrora ocupavam.
— Merda… — Madro entendeu o que as coisas estavam fazendo. — Eles estão virando para o III e o V Corpo! Preparem os canhões! Vamos acabar com isso assim que eles virarem!
O segundo golem atrasou a manobra. Sua face ainda estava meio apontada para Madro, meio apontada para Juno. Enquanto virava, uma bala de canhão voou contra sua parede lateral pintada de azul, acertando-lhe em cheio seu motor.
O ar comprimido vazou do seu topo e, em seguida, uma imensa explosão de pólvora ecoou pela planície, levantando uma nuvem cinzenta de vapor e salitre ao céu enquanto as pernas da Katiucha perdiam o equilíbrio. O monstro de metal em chamas tombou para a esquerda, produzindo um som ensurdecedor ao chocar-se contra o chão. O poderoso golem, outrora imponente, tornou-se sucata.
Todo o I Corpo de Exército gritou em êxtase assim que a máquina de guerra gilinesa cedeu ao solo. Madro, em particular, estava incrédulo com a cena que se desenvolvera diante de seus olhos.
— Juno… — Ele deixou seus risos escaparem aos poucos. — Seu bastardo magnífico…
Enquanto os soldados celebravam, a Katiucha restante soou por seus chifres após se direcionar contra os soldados de Danilki e Favrilo. Sem demorar, o golem disparou contra o morro, erguendo uma enorme nuvem de poeira após o impacto de seu projétil.
— Rasupen, os canhões! A lateral do golem está exposta!
Mesmo distante, a poeira do morro ao norte se dissipou. Dezenas de luzes amarelas piscaram da elevação como estrelas errantes voando sobre a terra, rumando contra o monstro de metal e madeira.
Primeiro, veio o poderoso eco dos canhões. Depois, a tempestade de chumbo sobre o golem sobrevivente. As balas de canhão ricochetearam sobre a face metálica como pedregulhos arremessados contra uma parede de tijolos. Após isso, as munições de obuses³ explodiram sobre a máquina de quatro patas, lançando estilhaços de metal por cima de sua blindagem.
Ainda sim, ela resistiu.
— Fogo! — gritou um dos oficiais artilheiros da República.
Um novo voleio bradou das bocas de fogo do I Corpo de Exército. Pelouros cravaram contra a lateral de madeira do golem, abrindo dezenas de furos em seu corpo condenado e lançando lascas de madeira contra os maquinistas no seu interior.
A explosão da pólvora fez o ar vibrar. Por reflexo, os soldados puseram seus braços em frente os olhos assim que o clarão acendeu o céu em fogo e saraiva, como se um segundo sol tivesse aparecido sob o firmamento. A luz foi breve, e a imagem gloriosa abençoou as pupilas dos homens de Madro.
Com a lateral escorrendo fumaça negra e pingando sangue de seu âmago, sem forças em suas pernas metálicas, o destino do golem fora selado. O tempo pareceu passar devagar a medida que a máquina tombava. Depois daquele dia, o rugir de seu canhão cessaria. Suas poderosas pisadas deixariam de provocar calafrios nas espinhas dos homens, bem como o soar em seus chifres.
O campo se cobriu de poeira após o impacto que estremeceu a terra. Assim como sua irmã, o segundo monstro de ferro foi ao chão.
Notas do Autor
¹Inclinação Reversa: tática na qual, em vez de ocupar o topo de um morro, uma formação opta por ocupar a parte de trás do mesmo, ocultando sua força da visão do inimigo. O exemplo clássico é a batalha de Waterloo, quando os britânicos do duque de Wellington recuaram da elevação e enganaram o marechal napoleônico Michel Ney a uma carga de cavalaria. Ao subir o topo do monte, Ney encarou os casacas vermelhas formados em quadrados, o que é considerado um dos fatores para a derrota de Napoleão naquele dia (eu particularmente discordo).
²Arma de antecarga: armas cuja munição é depositada no cano da arma. Praticamente todas as armas dessa era seguiam essa configuração, desde os canhões às garruchas. Hoje, a maioria das armas de fogo são de retrocarga, ou seja, a munição é posta diretamente na sua culatra.
³Obus/obuseiro: tipo de artilharia especial, caracterizada pelo disparo de pelouros do tipo shrapnel (munição de estilhaços). São mais curtos que os canhões tradicionais, além de dispararem em ângulos superiores a 45º.