A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 38
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- Capítulo 38 - “Floresciam macieiras e pereiras, a bruma pairava sobre o rio”
Protegidos pelos grossos parapeitos e seus canhões, Saravi e Danilkaya observavam a aproximação da força inimiga. Era uma tropa de tamanho regimental, marchando em dois batalhões na formação de coluna, portando escadas longas o bastante para servir como uma ponte se posicionadas em um rio.
— Eles vão atacar assim? — Danilkaya perguntou ao marechal, chocada com o aparente desdém pela própria vida de seu opositor.
— São milícia, general, não foram treinados o bastante para executar manobras elaboradas. Essa aglomeração é a única forma de comandá-los.
Ela engoliu seco.
— Isso não vai ser nada bonito.
— Eu sei — admitiu apesar da indiferença na voz. — Também não é problema nosso.
Ele encarou a unidade de artilharia e, com um simples balançar de cabeça, autorizou o ataque. Os canhoneiros correram para suas posições, tomando as ferramentas de recarga e de mira, bem como projéteis sólidos e suas cargas de pólvora. Socaram a carga no fundo de cada boca de fogo na bateria de oito peças, alinhada diretamente ao centro do imenso quadrado de gravatas azuis. O comando veio pouco depois.
— Fogo!
Oito estampidos dilaceraram o ar um atrás do outro. Os pelouros atravessaram o bloco inimigo por múltiplos ângulos, transformando homens em uma névoa avermelhada. Gritos suplicaram a distância, mas socorro algum encontrariam.
Os republicanos assistiram a cena horrorizados. Conseguiam ver perfeitamente onde o canhonaço acertara a formação oposta, parecendo-se com queixo cortado em fatias irregulares.
— Por Faor… — comentou o capitão Rezvyr. — Que tipo de homem insano ordenaria seus soldados a avançar assim?
— Existe algo estranho nesse assalto, capitão — comentou a comandante de longos cabelos castanhos. — Quase não há suporte de artilharia nesse ataque, é quase como se estivessem sem canhões.
Saravi a encarou com o rosto surpreso, imaginando uma possível causa para o fenômeno.
— O que foi, senhor? — ela perguntou ao ver sua reação.
— Nada, Danilkaya, eu só… deixe para lá, não era importante.
Ela deu de ombros, sem dar importância para a esperança renovando-se no superior.
“Será que ele conseguiu?”
Contudo, sua alegria viveu pouco. Seus adversários se aglomeraram em uma formação irregular, retomando a bandeira derrubada em meio ao bombardeio. Aproveitando-se de uma corrida que os deixou no ponto cego dos canhões, ergueram novamente a escada de cerco, aproximando-se perigosamente da muralha.
— Mosquete! — gritou o comandante, revigorado. — Entreguem-me um mosquete!
Múltiplos soldados com uniforme alvirrubro e gravatas vermelhas subiram a escadaria com um caixote de munição e armas, distribuindo-as entre os desarmados no bastião. Saravi, Danilkaya e Rezvyr receberam um mosquete cada. Eles correram aos muros junto de múltiplas esquadras, lançando-se contra os parapeitos da muralha, suas espingardas apontando contra a massa de gravatas azuis no solo que tentava apoiar a escada para o assalto.
— Fogo!
Os mosquetes cuspiram sua carga de fogo e enxofre, produzindo uma torrente de chumbo contra o inimigo. Dezenas de homens tombaram, forçando-os a recuar após um único golpe. Enquanto corriam, não perceberam que estavam ao alcance dos canhões.
A artilharia disparou metralha contra o batalhão garuísta em fuga, rasgando-o sem qualquer misericórdia.
Um sonoro brado de celebração correu por todo o bastião. Os republicanos brandiram suas armas para o alto, caçoando dos derrotados. O “Abraço do Coveiro” sobrevivera outra vez.
— Tentem de novo amanhã, bastardos! — Saravi gritou enquanto balançava o braço esquerdo do capitão Rezvyr.
— Marechal! — a mulher gritou.
Ele desviou o olhar para a moça, notando que apontava para outra parte do muro. Ele gelou ao ver do que se tratava. Em corrida, carregando uma escada, um outro grupo de gravatas avançava contra o muro, mesmo sob pesado fogo de artilharia. Se escalassem a muralha, a defesa da fortaleza inteira seria comprometida.
— Eu não tenho um dia de paz mesmo! Rezvyr!
Quando o olhou, o capitão viu seu comandante apontar para a escada inimiga que se aproximava da fortificação. Ele assentiu, pronto para ouvir suas ordens.
— Não pode subir ninguém daquela escada!
— Sim, senhor! — O capitão Rezvyr se voltou para seus homens. — Frevnyr! Olias! Venham comigo!
Os cabos do oficial chamaram seus homens aos gritos e partiram para uma nova defesa, junto do capitão e do marechal. Enquanto corriam, o bombardeio inimigo se iniciou. As duas dúzias de guerreiros apressou o passo pelos muros da fortaleza enquanto se agachavam a todo instante, protegendo-se dos pelouros que explodiam ao lado do muro.
Enquanto avançavam, uma salva inimiga foi em sua direção. Três republicanos uivaram ao serem atingidos, reduzindo a pequena força. Sem se importar com as baixas, fizeram como antes, apoiando-se no parapeito sem qualquer noção de organização, apontando cada arma que tinham para o inimigo.
— Tentem subir agora, bastardos! — o marechal exclamou com um sorriso psicótico. — Soldados, fogo!
Os mosquetes trovejaram saraiva contra os atacantes, causando morte e pânico em suas fileiras. Soldados caíram por todos os lados, largando a escada no chão enquanto seus companheiros tentavam remanejar o objeto.
Os republicanos iniciaram a recarga, cientes que nem de longe era o suficiente. Cerca de uma dúzia de homens caiu com a salva, o que era bem menos que o número de invasores, numerados em um batalhão.
“Maldição… Tem mais deles aqui do que temos de balas!”, lamentou o comandante.
Contudo, antes que Saravi pudesse se martirizar, ouviu um rugido rasgar os céus. Uma poderosa trombeta estremeceu o ar, como um trovão ao rasgar os céus, fazendo todos em sua volta se desequilibrarem. Um arrepio correu pela sua espinha de cada um. Olharam de um lado para o outro, para tentar adivinhar de onde viera tal estrondo que mais se parecia com o anúncio da descida de um anjo.
Para o marechal paralisado, foi como se os portões do submundo tivessem se aberto para uma invasão de demônios. Ele havia lido histórias sobre o barulho amedrontador que rugira naquela tarde, mas nunca imaginou que o experienciaria tão cedo.
— Eles… terminaram aquilo? — murmurou, ciente do que viria depois.
Saravi recusou-se a deixar o pavor tomar conta dele. Precisaria manter a calma em seus soldados, além de salvá-los do que viria. Olhou de relance para o punhado de inimigos que tentaram avançar contra os muros, vendo-os recuar depressa.
“Merda, está vindo!”
— Por tudo que for sagrado, abaixem-se! — gritou a todo pulmão.
Junto de seus soldados, o marechal se jogou ao chão.
O impacto chacoalhou toda a fortaleza. O impacto feroz das pedras do muro se desfazendo ecoou por toda Bulirka, erguendo uma gigantesca nuvem de poeira. Destroços do tamanho de móveis choveram do céu em direção aos defensores, que tiveram que assistir seus companheiros sendo esmagados pelos pedaços da muralha.
Saravi olhou para a esquerda e viu um bloco flagelar um de seus soldados, transformando-o em uma névoa avermelhada. Atrás dele, quase vomitou ao ver outro regular gritar na mais agoniante dor, com suas pernas esmagadas por uma pedra tão grande quanto seu torso.
Aos poucos, o vento dissipou a poeira, revelando o dano. Logo à frente do comandante, o caminho entre o baluarte sul e o próximo desapareceu. Havia um buraco gigantesco no muro, tão largo que se poderia encaixar uma carroça e tão alto que o muro da fortificação teve sua altura cortada pela metade.
Do lado de dentro, a fortaleza colapsou sobre uma pequena casa, transformada em escombros junto do muro. O marechal só podia desejar que não houvesse ninguém lá.
— Eles estão vindo pela brecha! — gritou Rezvyr.
Acordando do transe do impacto, Saravi voltou a atenção para o inimigo. Mesmo que alguns gravatas azuis tivessem sido mortos pelo disparo, o restante posicionou a escada sobre a brecha e se preparava para o assalto. Ainda havia mais de meia centena de garuístas.
— Bastardos!
Ao olhar para suas duas esquadras, Saravi viu os soldados agachados, tomados pelo medo, enquanto o inimigo começava a escalar o muro. A imagem fez Saravi se questionar se aquilo seria o fim. Mas seu peito dizia o contrário. Tomado pela ira, tomou seu mosquete e atirou contra os garuístas, matando um soldado. Depois, largou a arma e desembainhou seu sabre, brandindo-o sob sua cabeça.
— Covardes! — Naquele instante, esqueceu-se de qualquer desejo por rendição. — Levantem-se e morram como homens na merda da brecha!
Sozinho, Saravi disparou rumo ao buraco que seus inimigos escalavam. Os soldados o assistiram sem saber se era bravura ou insanidade que o moveu.
— Vida longa ao povo Leifanês! Vida longa à República!
Vendo o marechal disposto a morrer, o capitão Rezvyr se irou ao ver os homens de gravatas vermelhas parados.
— Não ouviram o marechal, seus ratos?! De pé! — Cada um retomou suas armas lentamente. — Viva à República!
O coro dos futuros mártires foi inevitável.
— Viva!
As duas esquadras correram para a morte sem olhar para trás. Entoaram gritos de “viva!” a cada passo, sem se incomodar com a morte iminente. Logo alcançaram seu marechal e se atiraram contra o inimigo em combate corpo a corpo, em um último esforço inútil e sangrento.
Republicanos e Garuístas pelejaram sobre o muro colapsado, atracando-se entre golpes de sabre e coronhadas carentes de beleza. Punhos, coronhas, baionetas e espadas rasgavam braços, barrigas e pescoços, fazendo homens dedicaram suas vidas à carnificina, de tal maneira que soldados mais descuidados de ambos os lados se desequilibraram e caíram dos muros, transformando-se em meros casulos de carne após o impacto.
Saravi avançou contra um inimigo com seu sabre, porém seu golpe foi esquivado. Tentou múltiplas estocadas contra o gravata azul descuidado, até que ele se viu na beira do muro. A hesitação foi a oportunidade procurada pelo marechal. Seu sabre avançou na horizontal, cortando a garganta do jovem adversário.
O rapaz se desequilibrou aos poucos, com a mão na garganta, tentando parar o sangramento enquanto se desesperava perante a morte inevitável. Tentou pelejar contra o destino, mas era tarde. Suas forças cessaram, e ele caiu.
O comandante balançou com a brutalidade do próprio golpe e, ao olhar seus arredores, viu a mesma cena se repetir entre seus subordinados.
“Que massacre…”
Logo desviou a mente da chacina. Precisava manter o foco na batalha, mesmo que ela já estivesse perdida.
— Vamos homens! — Ergueu a espada outra vez. — Sem…
Antes que terminasse a frase, ouviu a corneta ressoou. Junto de seus soldados, voltou sua atenção para as colinas, esperando um novo disparo, mesmo que estivesse incrédulo que aquilo fosse possível.
“Eles não atirariam contra os próprios homens…”, pensou. “Atirariam?”
Pelas estepes, o trompete tocou outra vez. Não era o inimigo. O tremor se iniciou, balançando o chão como em um terremoto crescente. O som tomou forma aos poucos. Pareciam-se com pisadas em corrida, criando uma melodia tão aterrorizante quanto divina, pronta para tornar o festival da morte ainda mais brutal.
Tanto republicanos quanto garuístas desviaram a atenção para as planícies, de onde surgiram os anjos prateados. Centenas de cavalos emergiram em formação pelo plano de frente à muralha, cortando gravatas azuis com as lâminas os sabres de seus ginetes de amarelo e atropelando o restante debaixo de seus pesados pés.
Os alazões de guerra anunciaram o novo desafiante com uma gloriosa carga. No meio deles, erguia-se a flâmula escarlate da rosa amarela.
— Faor enviou seus anjos! — Rezvyr exclamou. — O marechal Gratzy está aqui!
Saravi descreu em seus olhos. Na frente das duas linhas de um esquadrão, o marechal espremeu os olhos para enxergar o cavaleiro extravagante que orquestrava a carga: ninguém menos que o tenente-general Survin Kurco.
Vendo-se aos poucos cercados pelo inimigo, os garuístas que tentavam escalar o muro correram em desordem. Os que estavam em cima do muro tentavam fugir por onde vieram, mas acabaram presos entre a carga e as baionetas dos defensores de Bulirka.
No solo, o general Kurco ditava manobras para seus cavaleiros a todo momento. Também não perdeu a chance de sujar a espada. Ele golpeava soldados com seu sabre conforme os atropelava, carecendo de piedade ou remorso, duas características inúteis a uma alma de couraceiro.
Foi como uma avalanche de carne; os couraceiros republicanos moeram os garuístas conforme lançavam terror em suas linhas, crescendo a desordem nas fileiras adversárias, que se separaram em grupos pequenos e vulneráveis. Fora da formação quadrada, a infantaria não era páreo para os guerreiros montados em corcéis.
— Não deixem nenhum voltar para as trincheiras! — Ordenou o general vingativo. Um sonoro brado de guerra se sucedeu entre seus cavaleiros.
Satisfeito com a resposta e a matança, Kurco fitou o alto dos muros de Bulirka, com a intenção de ver seus defensores. Contudo, mesmo que aliviado ao ver os soldados de branco com gravatas vermelhas expulsando os invasores do alto da fortaleza, o imenso buraco na fortaleza o deixou perplexo.
“Que tipo de bombardeio foi esse? Nem trinta canhões devem fazer aquilo…”, questionou-se.
***
— Gostando do que vê, marechal? — perguntou Purleki, o hussardo guarda-costas de Juno.
— Não há nada de belo em uma batalha. — O marechal recolheu sua luneta. — Mas admito que isso é me agrada mais do que perder Bulirka.
— Qual será o próximo passo?
— O inimigo está em uma posição ruim. Eles podem tentar nos atacar, mas correrão o risco de serem contra-atacados por Saravi. Vai ser preciso manter uma força na reserva, fazendo uma formação em “L” para ter que lidar com ambos.
— Então, vamos atacar, Juno!
Purleki e Juno viram Madro surgir por detrás de ambos, posicionando-se entre eles. Apesar de mais baixo que ambos, a intromissão do general o tornava um incômodo muito maior do que tinha direito.
— Esperaremos Kurco voltar. O I Corpo deverá o flanco direito, enquanto o V ficará na esquerda. O III será a reserva.
— Você é mais cauteloso do que sua fama te faz, Juno.
— Tenho meus motivos, general. — Olhou para o morro do outro lado do campo de batalha, repleto de garuístas em formação. Havia certa aglomeração no flanco esquerdo adversário. — Levefder não parecia ser grande coisa, mas conseguiu nos atrasar por mais tempo que prevíamos. Subestimar o inimigo é o primeiro passo para a derrota.
O velho comandante se fez de surdo. Alisou a careca e vestiu seu chapéu bicórnio, retirando-se da presença sem esconder o aborrecimento. Subiu em seu cavalo e partiu. Se fosse qualquer outro em vez do general Madro, Juno e Pulerki levariam a atitude como uma ofensa.
Poucos minutos se passaram até a chegada do general Kurco, retornado após a carga que livrou os muros da fortaleza aliada. Com um sorriso, trotou até Juno e seu guarda-costas, saudando o superior assim que o mesmo o notou.
Juno retribuiu a gentileza. O ataque foi executado à perfeição. Ainda mais impressionante era o que Kurco trazia em uma mão: um estandarte regimental — segundo o texto na bandeira, do 4º Regimento de Infantaria.
— Chegamos na hora certa, marechal. — Ainda do alto do seu cavalo castanho, Kurco estendeu o prêmio para Juno, que recebeu com um sorriso. — Darilo Frenatsir, do 93º Esquadrão. Ele que capturou o estandarte.
— Quando a batalha acabar, farei questão de parabenizá-lo pessoalmente. — Juno entregou a bandeira a Purleki. — Como está a fortaleza?
— Os garuístas estavam assaltando o muro entre o baluarte norte e o leste por uma brecha. Chegamos na hora certa.
— Foi por pouco. — O marechal deixou o nervosismo escapar. — Mais um pouco e Bulirka estaria condenada.
— Sim… mas isso não foi o mais curioso.
Juno ergueu uma sobrancelha. Kurco relutou em dizer o que viu, mas o dever falou mais alto.
— A brecha é enorme, cabe um prédio no buraco.
— Uma grande bateria, talvez?
— Eu pensei nisso, mas não faria sentido. Teriam marcas de pancadas por todo o muro se fosse isso, mas só tinha um único impacto. É como se um único golpe tivesse acertado.
— “Um único golpe”, general? — Mesmo de longe, Purleki ouviu a história. — Seria do canhão de um golem?
— Golem? — Juno se mostrou cético. — Os czares amam aquelas coisas, Poluvín não iria expôr uma de suas Ekaterinas dessa forma.
— Desculpe-me, marechal, mas não foi um 12 libras qualquer que fez aquele estrago. Eu sei o que vi.
Por mais que descresse na teoria do golem, Juno não era estúpido. Mesmo que baixa, a possibilidade existia, principalmente após o testemunho do comandante da cavalaria.
— Purleki, diga a Favrilo que eu ordenei que os canhões do III Corpo de Exército sejam integrados à artilharia do corpo de Danilki. Os mais pesados, é bom salientar.
— Farei isso, senhor.
Purleki saudou o marechal e partiu em corrida. Subiu em seu cavalo e, após um gesto de despedida aos dois, galopou em busca do general.
— E quanto a mim, generalíssimo?
— Você e seus homens cobrirão o flanco direito de Madro. Se tal poder de fogo estiver por aqui, vai ser muito perigoso formar quadrados.
— Sim, senhor!
Assim como Purleki, Kurco saudou Juno e partiu, deixando o superior completamente só.
Enquanto assistia o general cavaleiro indo em direção aos seus homens, Juno não pode deixar de se preocupar com a dúvida plantada por seu ajudante de ordens.
“Golem… Se isso for verdade… Não temos balas encadeadas pra acertar as pernas, vou precisar de todos os canhões disparando.”
Do outro lado do campo, Juno assistiu os soldados de Bulirka saírem do conforto dos muros. Ao que parecia, Saravi entraria na batalha campal.
“Muito bem, Saravi”, pensou o marechal. “Entendeste a situação muito bem.”
— Rasupen! Rasupen!
— Estou aqui, senhor! — o coronel do 14º respondeu gaguejando.
Madro cavalgou até o homem até que seus cavalos se alinhassem.
— Preciso que forme o 14º em coluna. O 39º já está pronto e será nosso flanco esquerdo, então dobre sua atenção com a direita, entendido?
— Sim, senhor! — Lembrou-se que faltava cobertura móvel nos flancos. — Só acho que devemos esperar o general Kurco.
— Ele já está vindo. Podemos aproveitar a chance para nos adiantarmos. Por hora, apenas…
A trombeta de guerra bradou com poder, fazendo o ar e a terra vibrarem. O cavalo de Madro se agitou, quase derrubando o general, que usou de sua brutalidade para controlar o animal.
— Mas que tipo de coisa fez esse barulho? — perguntou com os olhos arregalados.
Outro estrondo retumbou pelos campos, em um grandioso impacto que chacoalhou a terra como em um terremoto. Outro impacto igual socou o solo, fazendo a terra vibrar novamente. Era como se um deus tivesse pousado sobre o campo de batalha.
Madro já tinha superado o susto e estava irritado com o som. Ele se preparou para amaldiçoar céus e terra, mas não ousou ao ver o coronel Rasupen parado, apontando para o nordeste, com as mãos trêmulas. Olhou para a direção que o oficial apontava. Seus olhos não puderam crer.
Ainda martelando o chão com suas quatro pernas metálicas, o monstro artificial marchava em sua direção, protegido por uma linha de fusileiros à sua frente. Era gigantesco. Pintado de azul, tão alto quanto as torres de uma igreja, sua forma lembrava a de um urso, principalmente por suas grossas patas mecânicas que amassavam o solo que atravessava, além de sua silhueta que engrossava ao se aproximar da traseira.
Humanidade alguma habitava em sua face. Era uma máscara ferro negra, tão vertical quanto o costado de uma nau de guerra, com dois chifres que subiam como os tubos de um órgão gótico. Abaixo de seu bico, uma abertura guardava sua arma cruel: um canhão de vinte e cinco polegadas de diâmetro, tão grande que não poderia ser recarregado por mãos humanas, exigindo toda a potência do motor a vapor que fumegava pelas três chaminés ao longo de suas costas.
Mesmo o bravo general Madro acovardou-se perante a máquina de guerra, conhecida como o “Orgulho da Odávia”. O assovio de trombeta que escapava de seus chifres era mais que mera intimidação; era o escape do vapor de água do motor, que gritava enquanto estava recarregando a boca de fogo. Enquanto o som cortava o céu, estavam seguros. O perigo verdadeiro vinha quando ele cessava sua música.
O monstro metálico disparou sua arma principal, erguendo um estampido que reverbou por todo o campo de batalha. Os republicanos sentiram o impacto de um terremoto com o choque da bala contra o solo, levantando poeira e terra pelo ar no lugar onde estava uma linha de soldados republicanos.
Gritos agonizantes bradaram dos colorados feridos. Aflito, Madro procurou por algum sobrevivente na unidade, esperando a névoa se dissipar. Quando ela baixou, viu uma cratera tão profunda quanto um homem adulto. Nenhum único corpo estava intacto.
O chão tremeu pela segunda vez, pela direita. Outro projétil voou do céu para o chão, destroçando os guerreiros que tiveram o azar de entrar no caminho da besta inumana.
Todos encararam o morro em frente às forças do I Corpo de Exército, a tempo de assistir o levantar da segunda máquina de guerra. Madro fechou os olhos e chacoalhou a cabeça para sair do transe imposto pelo medo. Tinha que agir rápido para manter seus homens vivos. Puxou as rédeas do cavalo e o golpeou com os pés, fazendo-o empinar antes de partir em direção às suas linhas.
— Soldados! Bater em retirada! Bater em retirada! — Mesmo com um nó na garganta, tomou coragem para gritar o nome profano do carrasco. — É uma Katiucha!
Assim que fechou a boca, o general escutou a trombeta agoniante soar novamente.