A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 37
Ecoando longe dos espessos muros do baluarte¹ norte, os canhões das tropas do príncipe Garuín disparavam contra a fortaleza. Quase três meses de cerco afligiam os sitiados. Desde então, o IV Corpo de Exército Republicano defendia a muralha de Bulirka como se não houvesse amanhã, talvez porque, se não o fizessem com ferocidade, o dia seguinte de fato deixaria de ser uma certeza.
— Danilkaya! — gritava uma voz rouca e ansiosa. — Danilkaya!
A porta se abriu para o comandante, revelando sua subordinada.
— Aqui, senhor! — A mulher saudou seu superior e se levantou da cadeira.
Estava atrás de uma mesa alaranjada, que ocupava quase toda a largura da sala. Ela vestia um uniforme azul-marinho, com dragonas e alamares dourados de um brigadeiro-general, além de calças brancas e botas negras, criando um contraste elegante. Em aparência, detinha cabelos negros lisos e a pele clara e macia, além de um par de olhos claros.
A sala de Danilkaya era pequena e baixa. A única fonte de luz era uma pequena janela, posicionada à esquerda da porta de pinheiro.
— A 12ª Brigada possui o suficiente para parar o próximo assalto? — o homem perguntou com uma voz suave, mas ainda de autoridade.
— Acredito que sim, senhor — ela respondeu. — Mas acho que precisaremos de pólvora e balas de canhão suficientes para mais quatro horas de combate, por precaução.
A expressão do homem se fechou conforme a general descreveu a situação.
— Maldito seja Nofrezyr!
A praga verbal foi quase simultânea com o tremor, causado por uma bala de canhão que acertou os muros. Ele olhou para o teto, certo que sua reclamação fora, de alguma forma, respondida.
— Nos dois primeiros meses — continuou em um tom sereno — parecia que resistíamos, mas as últimas semanas drenaram nossos estoques. Tens certeza que precisa mesmo dessa munição? Afinal, disseste que é por segurança.
— Não temos como saber completamente a escala do ataque inimigo, senhor, mas o bombardeio de hoje indica que será mais feroz que o da semana passada. Precisamos da pólvora.
A feição do homem se intensificou em trevas. Esperou um resgate por meses, porém seu inimigo parecia determinado a pôr-lhe de joelhos antes que a cavalaria chegasse.
— Perdoe-me, marechal, mas precisamos de todos os canhões disparando — Danilkaya disse em um soar de lamento.
Saravi manteve a face de derrota antecipada, por mais que seu coração lutasse contra a palavra “rendição” com a mesma fúria e coragem de seus soldados. Contudo, sabia que tal bravura seria inútil se todos morressem.
— Os outros baluartes ficarão vulneráveis. Claro, podemos usar mais do nosso estoque, mas isso passaria da cota que eu estipulei.
— Pela cota, quanto tempo temos de munição, marechal?
O marechal tinha o olhar morto, evitando focar sua vista em qualquer coisa, mas, ao ouvir a pergunta da sua subordinada, tomou coragem para olhá-la nos olhos, suspirando profundamente.
— Seis dias.
***
Após a conversa, os dois seguiram com passos lentos pelos corredores da fortaleza, visando chegar no baluarte norte, apelidado carinhosamente pelas tropas de “Abraço do Coveiro”. Danilkaya e seus soldados protegiam o lugar que, de longe, era o mais assediado de toda Bulirka.
Saravi passara da meia idade, com rugas infestando sua face, mesmo que tivesse poucos fios brancos entre seus cabelos volumosos. Seus olhos eram azuis, com um tom quase prateado e brilhante, dignos de rivalizar as mais belas gemas. Era dono de um queixo com contorno firme e viril, o que garantia autoridade não só em patente, mas também em aparência.
Por ser forçado a entrar na fortaleza desde o começo do conflito, vestia o mesmo uniforme do marechalato real leifanês, consistindo de um bicórnio, de bordas douradas e plumas brancas, além da farda branca, com seu forro vermelho sempre amostra na lapela. Calças vermelhas e botas negras completavam a aparência extravagante do militar.
Diversos soldados ocupavam os corredores enquanto caminhavam, alguns feridos, outros famintos. Um deles, menos flagelado, levantou-se quando viu o marechal.
— Permissão para falar, senhor! — Ele o saudou com a mão.
— Concedida, coronel Erinoviki — disse o marechal, interrompendo sua caminhada.
— Os estoques de carne estão baixos de novo, senhor. Os homens da logística já diminuíram as provisões individuais dos soldados, e já há protestos entre eles.
— Por Faor, será que não há uma notícia boa? — Saravi clamou aos céus, mesmo sabendo que a resposta dificilmente viria. — Ainda temos cavalos?
— Trezentos e sessenta e sete, senhor.
— Diga ao açougueiro que dois quintos são para as tropas, vai ser o bastante.
O homem fez algumas contas na cabeça e nos dedos, espantando-se quando chegou à conclusão:
— Isso só é suficiente para seis di…
— E ninguém precisa saber, coronel.
Erinoviki se calou, e seu rosto se invadiu de melancolia com a descoberta. Enquanto isso, Saravi e Danilkaya saíram de sua presença, retomando sua caminhada pelos corredores.
Assim como o marechal, seus soldados também vestiam os antigos uniformes alvirrubros reais de Leifas. A única diferença era o lenço vermelho que vestiam ao redor do pescoço, que servia para mostrar sua aliança a uma causa distinta à monárquica, similar ao que faziam os gravatas azuis.
Após a longa marcha, ambos subiram as escadarias para o famigerado baluarte norte. Ao chegar no topo, os raios de sol atingiram a vista dos dois, que, por um momento, cerraram os olhos para se acostumarem à tirania da luz do exterior.
Duas companhias de infantaria e os canhoneiros das bocas de fogo guardavam os muros do espaço, todos sob o comando da brigadeira Danilkaya. Ao ver a chegada de ambos, um homem, vestido como um capitão, saudou-os com um sorriso.
— Boa tarde, senhor — falou ao marechal. — Boa tarde, senhora — cumprimentou sua superior.
— Como está a situação, capitão Rezvyr? — ela o questionou.
— O inimigo bombardeia o bastião¹ como nunca antes, senhora. Acho que não restam dúvidas que é o preparativo de assalto.
— Quantos metros as trincheiras inimigas avançaram desde a semana passada?
O oficial olhou de relance para trás e chamou ambos os superiores. O capitão tomou uma luneta de um dos soldados no baluarte e entregou para a sua brigadeira, que, sem demora, apontou as lentes para a fortificação inimiga.
— O inimigo não se moveu muito, senhora. Os mesmos dois regimentos ocupam o morro — apontou para a elevação — enquanto parecem fazer algum tipo de rotação. As ²circunvalações se aproximaram desde a semana passada cerca de vinte metros. Também notamos uma melhora nas ²contravalações.
— Trezentos, duzentos e setenta, e agora duzentos e cinquenta. Vinte e cinco metros por semana, menos de quatro por dia. Não é tão ruim assim.
Rezvyr pareceu lamentar o otimismo da superior.
— Infelizmente, senhora, o problema não é esse. Olhe para a vila de Bratiallya.
Ela apontou a luneta para o vilarejo em questão, tentando entender o que o capitão queria dizer. Procurou por alguns instantes pelo que seria de tão problemático no povoado, até que finalmente o encontrou.
Os olhos da general se arregalaram com a imagem. Por um momento, a mulher, que trabalhava diariamente com a morte, pareceu ter visto o próprio inferno do outro lado da luneta.
— O que houve, general? — À sua direita, Saravi estranhou a reação de Danilkaya.
Ela passou a luneta para o marechal, que a apontou para a vila o mais rápido que pôde.
— É perto da capela — sussurrou Danilkaya.
Ao olhar para o vilarejo, Saravi viu dezenas de homens. Trabalhavam no que pareciam ser duas naus feitas de madeira e ferro, com operários montados em escadas e cordas por todos os lados da estrutura, içando cabos grossos como punhos humanos, que seguravam colunas de ferro. À frente das construções, enormes máscaras de ferro, parecidas com elmos bascinet³, grandes o bastante para que gigantes os usassem. Em sua boca, abaixo do bico, estava um canhão com uma boca tão larga quanto as rodas de uma carroça.
Após ver o monstro em montagem, o marechal mordeu os lábios e rosnou feito um cão.
— De alguma forma — explicou Revzyr —, o bastardo do Nofrezyr conseguiu convencer Poluvín a trazer essas coisas.
— Marechal — Danilkaya deixou sua ansiedade vazar —, se eles montarem os golems antes de Juno chegar, será o fim, precisamos forçar uma batalha campal.
— Batalha campal? — Saravi recolheu a luneta, descrente com a sugestão. — Temos dez mil homens no forte, e só oito mil prontos para lutar. O inimigo deve ter mais de vinte, seríamos massacrados!
Saravi entregou a luneta para Rezvyr, que prontamente voltou a inspecionar o vilarejo.
— Ficar para enfrentar os canhões daquela coisa será muito pior, marechal — Danilkaya replicou. — Mesmo que apenas alguns escapem, será melhor que a rendição.
— Se tiver que escolher entre a vida dos meus homens e “que apenas alguns escapem”, prefiro a primeira. Lutaremos até Juno aparecer e, se ele não vier, aceitaremos a rendição. Não vou cavar a cova dos meus soldados por uma vã esperança de que alguns se encontrem com Juno.
Mesmo com os protestos da subordinada, Saravi estava irredutível. Àquela altura, a prioridade do militar se transformava na vida dos seus soldados. O desejo de resistência até a última gota de sangue acabava, assim como a pólvora, a comida, o sangue e a esperança em Bulirka.
“Juno, Juno”, pensou o marechal sitiado. “Onde você foi parar?”
***
— Já estão montando as Ekaterinas? — perguntou uma voz infantil e animada.
— Já, pequeno príncipe — respondeu um homem, em seus cinquenta, com delicadeza. — Mas são apenas Katiuchas. O nosso amigo, o rei de Gilina, não quis mandar os seus gigantes, talvez porque seu futuro sucessor tem só oito anos! Ainda és muito pequenino.
Dono de um par olhos castanhos, cabelo volumoso, rosto oval e cabelos negros encaracolados, o sujeito falava com a simplicidade e a alegria de uma mãe ao ver seu filho descobrir o mundo.
— Sabe, Nofrezyr — disse a criança, que estava montada sobre um cavalo marrom —, depois que acabarmos isso, quando serei rei de Leifas e Gilina?
O homem riu com a impaciência do seu pequeno. Quem os visse, pensaria até que eram pai e filho. Já os que conheciam a negligência do monarca decapitado com sua prole, teria certeza.
— Calma, pequeno Garuín, calma. Tudo ao norte do Tarra e ao leste do Ekimura será seu, mas tudo ao seu tempo. Primeiro, precisamos eliminar os ratinhos dessa cidade. Depois, as ratazanas que mataram seu pai.
— Então — disse com melancolia e ódio ao lembrar do pai morto —, arme a maior ratoeira que puder para mim, Nofrezyr.
— A maior que eu conseguir, príncipe.
Poucos momentos após o fim da interação entre os dois, um homem a cavalo chegou ao encontro de ambos, vestindo um uniforme totalmente branco de soldado com o lenço azul-celeste no pescoço.
— Senhor Nofrezyr! Senhor Nofrezyr! — o jovem gritou angustiado enquanto descia do cavalo.
— Fale, homem, por que o desespero?
Correu até os dois. Parecia ter percorrido o caminho a pé de tão exausto.
— Uma carta, senhor — disse ofegante ao passar o bastão de papel. — Uma carta do general Levefder.
Prenunciando a desgraça, Nofrezyr franziu a testa. Ele abriu o envelope com certa pressa, lendo cada palavra o mais rápido que podia.
A carta era um pedido de socorro. Levefder informou a perda de outra unidade de seu exército, que diminuía a cada passo para trás desde a batalha em Tova. Segundo o comandante, restavam apenas 4.300 homens da força de 12.000 que foi lançada para retardar a força colorada.
No momento que te escrevo essa carta, estou a quatro dias de marcha de Bulirka, acredito que Juno está a cinco. Major General Erinovi Levefder, 19 de Abril, ano 3178 do Pai dos Homens.
Nofrezyr tremeu de ódio ao terminar a mensagem. “Bastardo! Pelo visto, perder a sua alma e sua falsa nobreza não foram suficientes para entender o seu lugar, Juno?”
Com uma ira de um regimento que perdera seu estandarte, o gilinês rasgou a carta em pedaços, transformando-a em uma bola de papel sem valor, lançando-a contra o chão. Já era 22 de Abril. Levefder chegaria no dia seguinte. Dois dias depois, seria o turno da vingança que tanto temia.
— Algum problema, Nofrezyr?
O gilinês retomou a compostura ao ouvir o príncipe. Ele olhou para o infante, forçando um sorriso torto.
— Nenhum, jovem príncipe — o homem respondeu em uma voz tão doce que pendia ao amargo. — Muito pelo contrário: um dos ratinhos está marchando diretamente para nossa ratoeira.
Um sorriso animado se abriu na boca do príncipe Garuín.
***
Bulirka estava a menos de trinta quilômetros do grosso do Exército Republicano. O aumento de escaramuças entre esquadrões de hussardos garuístas e a brigada de infantaria leve republicana era o indício da proximidade do inimigo.
Mesmo na iminência da batalha, Juno mostrava pouca urgência. Vestindo seu uniforme vermelho, sentava-se no chão, com as costas apoiadas em uma árvore, portando um livreto na mão.
À sua direita, sem que notasse, Kurco observava-o. Um sorriso surgiu no general da cavalaria ao notar como Juno parecia uma donzela em seu banho de sol, dedicando seu tempo livre à leitura de algum romance.
Ele temia iniciar qualquer assunto após múltiplas evasões e reprimendas do marechal, algumas mais ríspidas do que o decoro militar permitia.
“Vamos lá, Kurco, você é da cavalaria. Nunca falta coragem para um filho da mãe da cavalaria.”
Deu um passo a frente, decidido a reiniciar o debate.
— Faz tempo que você não lê nada, Juno — disse sem o decoro de um subordinado.
O comandante republicano o olhou de soslaio, interrompendo a leitura.
— Fui negligente com os estudos por muito tempo, preciso me atualizar.
O general tomou a liberdade de se aproximar mais um pouco. Fizeram amizade na academia militar, mas, desde o estouro da guerra, a dupla deixou de ser próxima como antes. Parecia uma boa oportunidade para retomar o costume da conversa diária e, obviamente, os assuntos inacabados.
— Posso saber o que está lendo, generalíssimo?
— As campanhas de Razor de Seletin e de Rukodor de Rititin, guerras de reunificação da Astênia. Tudo documentado por Odiel Barol, donatário da colônia de Lovaburvo.
— Ah, já conheci esse Barol. — Kurco se apoiou em uma árvore de frente para Juno. — Sujeito bastante profissional, mas monarquista demais pro meu gosto. Até hoje a cidade é leal à coroa. Mas pouco me importa os políticos que moram nas colônias da Astênia ou do Novo Mundo. Poderia falar um pouco dos dois generais?
— Claro. Bem… Rukodor é um grande taticista. Também é excelente em logística e manobra. Já Razor é mais pobre nessas qualidades, mas é um líder nato, do tipo que faz um exército de dez mil valer por um de cem. — Fechou o livro e encarou Kurco. — Uma rivalidade não só de dois homens, como de duas ideias.
— Vejo que você se empolgou com a leitura.
— Apesar de ainda usarem piques e terem um sistema de artilharia defasado, os astenis fazem jus à bravura que lhes é atribuída. Os exércitos de Razor lutavam por horas contra inimigos mais poderosos sem quebrar. É fascinante.
Kurco viu Juno sorrir de maneira genuína, algo que era cada vez mais raro. Por um instante, temeu apagar a emoção, lançando água em uma faísca rara. Retomar o assunto de antes novamente se tornou um desafio.
Contudo, jamais preveria que Juno fosse o responsável por quebrar o silêncio.
— Se quiser falar algo para mim, não como marechal, mas como amigo, tens a permissão.
“Finalmente resolveu falar, desgraçado?”
— Muito bom que você decidiu se abrir, amigo. — Ele assistiu o cônsul guerreiro virar a cabeça, arrependido. — Primeiro, foi imprudente fazer essa campanha. Poderíamos ter quebrado Nasti! Ela que é a herdeira legítima, Garuín não é levado a sério por ninguém além do bastardo e do czar.
— Eu sei, mas atacar Nasti estenderia a nossa frente, ficaríamos vulneráveis a um ataque dos gravatas azuis. Os alvirrubros estão culminados e ficarão por um bom tempo, então nos expôr atacando o sul é mais seguro que atacando o leste.
Kurco ficou abismado com a resposta pragmática. Desde o princípio da campanha, suspeitava que Juno colocara suas prioridades pessoais acima da vitória republicana na guerra. Descobrir que o plano foi de todo racional o envergonhou.
— Além disso… tem o bastardo do Nofrezyr.
“Lógico que teria, não é, Gratzy?”
— Ainda pensa no infeliz. Quem vê pensaria que sua paixão é o velho, não Ividrina.
— Ele está impune, Kurco. Só terei paz dentro de mim quando a justiça for servida.
— Bem, se você pensa assim, quem sou eu pra mudar sua opinião, não é? — Kurco se permitiu lançar palavras mais ásperas que o normal. — Mas sabes que foi arriscado. A revolta em Carasovralo é a prova disso.
— Eu teria que sair de lá de qualquer jeito. O inimigo não se derrotaria sozinho se eu ficasse para sempre na capital.
O general o olhou com desaprovação, mesmo sabendo que o ofendido ficara alheio ao gesto negativo. Para Kurco, Juno perdera boa parte de seu senso crítico. O marechal parecia acreditar que todas as suas ações estavam certas, mesmo que as consequências aparecessem a todo instante.
— Pelo menos, Rovibar soube controlar a situação na capital.
Juno assentiu e voltou a ler seu livro, na vã esperança de Kurco ir embora. Mas o general de couraça não sairia tão facilmente. O assunto teria que ser resolvido ainda naquele instante, e o marechal soube de imediato que precisaria gastar argumentos até satisfazer o subordinado.
Ele suspirou. A explicação seria a mais franca possível.
— Survin, você sabe por que eu me juntei à República?
— Devem ter sido vários motivos. Oportunidade, ideais, justiça pessoal…
— Entrei porque acredito que nenhum homem, só porque nasceu em berço de ouro, detenha o direito de mudar o destino de alguém. — Juno fechou o livro e fitou Kurco com o furor controlado no olhar. — Não nasci camponês. Meu pai é um homem rico. Fora a nobreza, nada me faltou. Quando eu finalmente poria as mãos na única coisa que eu não tinha, outro homem, por causa da sua própria ganância, me tirou quem eu amava.
— Perdoe-me, Juno, mas terei que ser sincero: isso é patético. O exílio do conde e de Ividrina ainda dói tanto em você? — O comandante ginete perdeu toda sua paciência com o amigo. — O que os odavitas diriam de ti? “Vejam! O grande marechal Gratzy, nunca derrotado, ainda chora pela perda de uma mulher!” — Gesticulou de maneira exagerada.
O comandante republicano não tomou por ofensa. Ele mesmo tinha ciência do quão sua ideologia parecia estúpida e rancorosa de fora. Porém, conhecia seu coração. Seus motivos iam bem além de um título nobiliárquico perdido e um amor quebrado.
— Não é isso, Kurco, nem de longe. O problema é que isso que me fizeram é a regra. Quantos não tiveram suas vidas roubadas por conta de guerras que não eram suas? Quantos artistas, cientistas e inventores não tiveram que abandonar tudo porque outros temiam o progresso? Isso acontece a todo instante, e ninguém ajuda os traídos.
— Isso sempre aconteceu, Juno. Esse é o nosso mundo!
— Esse é o mundo que os déspotas querem que você acredite ser o nosso, Survin, um que só há espaço para o seu jogo de poder. A tirania é um incêndio que queima tudo ao seu redor, sem se importar com o que vira cinza, e ainda tenta fazê-lo crer que isso é o natural.
O general cavaleiro desviou o olhar para baixo. Ele sabia que a analogia a um incêndio era mais que uma metáfora.
— Luto para que homens com vontade de escrever seu destino o possam fazer. — Seus olhos vagaram pelos morros distantes. Viu um pequeno ponto negro em meio ao verde, reconhecendo o lugar onde milhares de vidas lutavam há meses para manter a chama revolucionária viva. — O destino de ninguém deve ser escrito por outro.
Mesmo sem saber o que Juno fazia, Kurco também encarou os muros de Bulirka. Para ele, seu amigo e superior era um hipócrita. Ele ordenava seus soldados para lutarem em batalhas cruéis, fazendo muitos deles aleijados, quando não cadáveres.
— Você é culpado pelo mesmo pecado, Juno.
Aquilo o acertou em cheio. No fundo, apesar de suuas convicções, admitia que Kurco tinha razão. Em um raro momento de religiosidade, lembrou-se do que pregava a Igreja de Kolur a cerca do fim dos tempos: segundo as escrituras, para alcançar a redenção, os pecadores abandonavam seu livre-arbítrio e se juntavam às legiões dos justos que seguravam a horda do Desalmado nos portões do Submundo, por toda a eternidade. Uma batalha constante, de dia e de noite, sob o comando do próprio Erinovi, o Grande.
Ele riu ao notar a ironia.
— Até que Faor tem senso de humor.
Notas do Autor
¹Baluarte/bastião: parte do muro de uma fortaleza que é mais exterior que o resto da muralha. Servia para criar “killing zones”, onde o inimigo era bombardeado por fogo de canhão por três lados distintos. São os “raios” de um forte estrela.
²Circunvalação/contravalação: redes de trincheiras feitas por exércitos que cercavam um inimigo. A circunvalação é a interna, dedicada a manter os sitiados dentro do castelo. Já a contravalação é o oposto, servindo para evitar que uma força externa possa assediar o exército agressor. A batalha de Alésia é um excelente exemplo de como isso funciona (também é uma das melhores batalhas do Império Romano, Júlio César mandou bem demais).
³Bascinet: estilo de capacete da idade média. Refiro-me a variante com um bico, conhecida como “houndskull”.