A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 36
Dois dias se passaram desde a visita ao Administrador acabar de maneira amarga. Desde o confronto, o movimento na recepção tinha diminuído, restando pouquíssimos sindicalistas no espaço. A maioria optou por abandonar o lugar. Era uma medida de segurança, uma vez que desconheciam se haveria retaliação pela escaramuça contra os Executores e Infantes.
O que restou ao grupo foi se preparar para a jornada nesse tempo. Renovaram suas provisões e aproveitaram o descanso para traçar possíveis rotas de viagem, deixando quase tudo pronto na noite do dia dois.
A manhã seguinte à segunda noite era o momento para partir. Marí estava na porta, já pronta e sem paciência. Tadeu, Tevoul e Nico aprontavam suas bagagens no salão, contudo, Fridevi os interrompeu:
— Vocês três! — Apontou aos homens da trupe. — Eu preparei algo especial.
O sindicalista estendeu aos três uma pequena caixa, medindo mais ou menos o mesmo que a palma de sua mão. Parecia-se com uma caixinha de joias. Abriu-a e revelou seu conteúdo: eram pedras redondas, como as que ele deu para Tadeu da outra vez.
— As arranjei nesses dias. — Fridevi entregou a caixa para o mercenário. — Se forem enfrentar aquela mulher, seria bom que ela não pudesse desviar das balas.
— Obrigado por se preocupar, senhor — disse Tadeu enquanto cumprimentava o velho —, por mais que eu ache que ela não vai voltar atrás da gente depois da luta.
— Nunca subestime o ímpeto de alguém, jovem — falou como um avô aconselhando um neto. — Muito menos alguém que trabalhe para o frade Astovi.
O soldado duvidava que a asteni retornaria. Além disso, lembrou-se que as balas de pedra teriam menos utilidade, já que ele mesmo viu como a mulher se adaptou no combate ao desviar o cano da arma em vez do projétil. Contudo, ainda admirou como o velho se importou ao ponto de tentar ajudá-lo.
— Lembrarei dos seus conselhos, Fridevi.
Os três se despediram do anfitrião, bem como de alguns dos membros do Sindicato que ajudaram na luta. Tomaram suas bagagens e se prepararam para partir.
Marí ainda estava na porta. Seu pé esquerdo batia no chão como se martelasse um prego imaginário no solo, um claro sinal de impaciência.
— Já estão todos prontos? — ela perguntou com a cara emburrada.
Cada um ao seu modo, os três assentiram com a cabeça.
— Até que enfim! Vamos, não queremos que a garota “exploda” de novo.
Prepararam-se para cruzar a porta rumo ao desconhecido, porém, descobriram com certa ligeireza que outrem alimentava planos distintos para a trupe.
— Não tão rápido, senhores e senhorita. — uma voz falou alegremente. — Ainda falta um aventureiro em vossa jornada!
Os quatro olharam para as escadas. Viram o homem que os interrompeu descer os degraus com a mesma sutileza de quando o local fora invadido. Vestindo um sobretudo cor de vinho desabotoado e a mesma cartola preta, Levias carregava uma mala em cada mão, como se partisse em uma viagem planejada há muito tempo.
— Pra onde pensa que vai? — Fridevi perguntou.
— Não é óbvio, meu caro? Irei com eles.
A trupe e o velho sindicalista surpreenderam-se com o “autoconvite” do moço loiro. Mesmo que Levias estivesse sorridente, era óbvio que levava a sério sobre ir com o grupo da República, visto que sua bagagem estava claramente pesada.
— Acredito que não se oporão a minha presença em vossa…
— Ninguém te chamou, cabelo de manga chupada.
— Não se preocupe, major, entendo que você é o líder e garanto que obedecerei cada uma das suas ordens.
— E quem vai cuidar do salão comigo, Levias? — Fridevi indagou.
— Mestre Nanias pode enviar alguém para te ajudar, meu caro, mas reconheço com bons olhos como você considera um verdadeiro horror a minha ausência. — Pôs a mão sobre o peito, comovido.
— Não mesmo, feiticeiro — Nico falou com todo desdém possível. — Aceitaria até o velho, mas você? Não tem a menor chance.
— Não seja tão rancoroso, Nico. Aquele incidente ficou no passado, não acha?
— Acho bosta nenhuma, primeiro que eu não te dei intimidade pra me chamar pelo nome, segundo porque não tenho confiança nenhuma em um infeliz que nem você!
Tadeu, Marí e Tevoul assistiram o embate sem qualquer esperança. Ao contrário do oficial, ninguém da trupe tinha uma rixa pessoal com o Capacitado. Eles o aceitariam sem pensar, ainda mais depois dele ter arriscado a própria vida no combate contra a asteni.
Poder ler a mente de qualquer pessoa que encontrassem seria um trunfo difícil de ignorar. Contudo, se Nico decidisse por eles, tal vantagem seria lançada no lixo.
Marí atacou as costelas de Tadeu com uma cotovelada nada simpática, fazendo o mercenário se contorcer. Ele a encarou confuso com a agressão desmotivada.
— O que foi isso, agora?!
— Fala baixo. — Ela pôs o indicador entre os dedos. À frente de ambos, Nico inventava apelidos cada vez mais estranhos para o loiro. — Convence o major a levar o Levias, ele pode ser útil.
O jovem ergueu uma sobrancelha.
— E por que você acha que ele vai me ouvir?
— Eu sou do Sindicato, então ele não vai confiar em mim. E o outro… — Olhou de relance para Tevoul. — Acho que não preciso explicar.
— Eu tô ouvindo, sabia?
— Só sobrou você, Tadeu.
O jovem assentiu, mesmo que quisesse evitar um conflito prematuro com Nico. Desde que pôs os olhos no homem, notou que o sujeito de cabelos castanhos era ranzinza por natureza, talvez fruto de uma iminente crise dos trinta anos. Irritá-lo naquele instante, quando estava se enturmando, poderia ser um erro amargo.
— Estás jogando uma baita chance no lixo, major — Levias argumentou. — Sabes do que posso fazer, então…
— “Então” nada, narigudo. Você não vem e…
— Nico — Tadeu se intrometeu —, não desperdice a chance. Ele lutou conosco contra a Igreja de Kolur e nós estamos carentes de gente com magia.
O homem ficou calado, sem mostrar qualquer reação além de olhá-lo com desdém.
“Merda, que cara cabeça-dura…”, pensou ao ver o sujeito ignorar seu conselho.
— Somos só quatro, major, quem em sã consciência aceitaria vir nesse tipo de missão? É a única chance que temos pra aumentar a equipe.
— Tadeu está certo, major — Marí completou enquanto se aproximava. — Levias pode ser um tanto… extravagante, mas, no fim, vai ser útil. Ele pode tirar informações da mente das pessoas que não se consegue nem por tortura.
— E quem me garante que ele não vai aprontar depois? Vocês do…
— Oras, major, que tipo de mal um reles descendente de Kolur e servo de Faor como eu poderia fazer?
— Sei lá, talvez passar a mão na minha testa e roubar minhas memórias sem minha autorização?
“Será que você não sabe pensar em ninguém além de você, major?”, a paciência de Tadeu esgotou-se rápido.
— O grupo não é só seu, Nico. — A voz do mercenário saiu áspera. — Você pode até ser o mais experiente, mas não vamos deixar que aja feito um tirano.
— Se quiser — Marí decidiu provocá-lo —, você fica por aqui, e o Levias vem conosco. Na volta a gente te pega, o que acha?
Após ver seus companheiros protestarem, Nico pestanejou. Ele queria negar o homem, contudo, ficou claro que os membros do grupo pensavam diferente. Tentou pensar em um contra-argumento, mas nada surgiu em sua mente.
Ele suspirou ao ver que teria que tomar uma decisão difícil.
— Eu vou me arrepender, mas eu vou aceitar só porque eu sei que você é um bastardo útil.
— Agradeço o elogio, oficial.
Ao ouvir o tom irônico na voz de Levias, Nico ficou levemente emburrado.
— Bem, resolvemos o problema. — Tadeu tratou de encerrar o assunto antes do inevitável protesto do ex-oficial. — Já estamos com tudo pronto?
Cada um de seus companheiros ergueu suas malas e sacos com provisões. O mercenário fez o mesmo e pôs o seu pacote sobre o ombro, preparando-se para a partida. Contudo, quando deu os primeiros passos, percebeu a inércia de Levias.
— Você não vinha?
— Só quero conversar um pouco com Fridevi. Se possível, óbvio.
— Tudo bem, a gente espera.
— Agradecido. — Ele se curvou em reverência.
Assim que a trupe saiu do salão, o loiro foi em busca do anfitrião, que se mostrava preocupado.
— E então? Quer mesmo ir?
— Tenho escolha? — Gargalhou com da própria desgraça. — É o único jeito, Fridevi.
— O problema vai ser quando você der um jeito na menina… Eles não vão aceitar bem.
— Prefiro pensar nisso depois, imaginar-me dando cabo de uma criança já é desgastante o bastante.
O velho pôs uma de suas mão sobre o ombro do parceiro. Sua face exprimia seu nervosismo.
— Que a sorte vá com você, Levias.
— Minha causa é justa, Fridevi, tenho certeza que ela me acompanhará.
Com calma, o rapaz tomou sua bagagem e saiu do salão, dirigindo-se à carroça coberta da trupe. Com a ajuda de Tevoul, escalou o veículo e se acomodou no espaço. De longe, Fridevi e outros sindicalistas se despediram do grupo, que retribuiu a saudação do velho.
Nico tomou as rédeas do cavalo, balançando-as para pôr o animal em movimento. Sem pressa, o quinteto rumou às estradas do interior de Leifas, para um destino tão perigoso quanto incerto.
***
Duas garotas, uma morena e outra loira, galopavam por horas pela estrada. O caminho era muito bem construído, com todo o calçamento feito em pedras e com as margens da estrada aparadas, de tal modo que o mato não invadia o espaço.
Por mais impressionante que fosse, aquelas estradas eram milenares: foram construídas pelo imperador Erinovi Magno, do ancestral Império do Tarra. Como a maioria das pessoas que atravessavam aquelas vias, Igri e Luci desconheciam os mais de três mil anos de história sob os seus pés.
A estrangeira se voltou para trás. Sua colega estava com o ombro enfaixado por conta do ferimento, mas se recuperava rápido, nem mesmo havia reclamado de dor nos últimos dias. A errante sorriu ao vê-la cantarolar uma música.
— Igri? — Luci perguntou com a voz curiosa.
A menina, que estava montada na parte detrás da mula, se inclinou pela direita da moça, tentando ver o seu rosto.
— Que foi?
— Nessa loucura toda eu nunca te perguntei… Quantos anos você tem?
Igri desviou o olhar, tornando-o profundo e questionador. Aparentava ter entrado em uma discussão filosófica sobre a própria existência.
“Precisa pensar tanto pra dizer a idade?”, Luci se perguntou ao ver a garota contar os dedos.
— Onze!
— Quê?!
Ela se espantou com a revelação. Igri, por sua vez, apenas dobrou a cabeça para o lado, perguntando-se se tinha falado algo errado.
— Não é por nada… só pensei que você era mais nova.
A pequena continuou confusa, mas sorriu timidamente para mostrar que aceitava a resposta.
Por mais que Igri tivesse o tamanho certo para sua idade, a verdade é que a sulista não esperava que ela tivesse mais que oito anos, visto seu vocabulário simples e tímido. Parecia incapaz de formular duas frases seguidas, sempre se restringindo a falar só quando fosse muito necessário, sempre da forma mais curta e direta possível.
Em sua timidez, nem parecia “aquela coisa” que Luci viu. Quando a jovem percebeu que Igri tentou se intrometer na luta com os ladrões, pensou que a menina, sempre retraída e aparentemente indefesa, não seria poupada pelos marginais. Mas, ao contrário de tudo que poderia imaginar, viu-a com uma fúria desconhecida para si.
Quando o aracnídeo surgiu, Luci tremeu. Sua companhia tinha se tornado um horror indescritível e impiedoso, do qual ela se afastaria sem pensar duas vezes. Contudo, isso seria se não tivesse se apegado antes.
Desde então, sentiu que tinha uma dívida com a garota mágica, e por isso foi atrás dela quando Sindicalistas e Executores lutavam.
Apesar de tudo, a sina estava longe do fim, e Luci sabia bem disso.
“Tem gente poderosa atrás dela. Vai ser melhor se eu tentar não aparecer muito e não expor ela por aí”, concluiu. “Mas… Como eu vou fazer isso? Uma criança leifanesa com uma estrangeira vai ser sempre suspeito.”
A mente de Luci trabalhava a todo vapor para solucionar o problema. Ela tinha que achar uma solução. De preferência, rápido.
— Ainda vai demorar muito pra chegar? — a menina murmurou, interrompendo os pensamentos da forasteira.
— O que é isso? Você fala como se tivesse indo a pé! Estamos na metade do caminho ainda.
— Minhas costas estão doendo!
— Não se preocupe, você acostuma com o tempo!
Igri emburrou a cara com a falta de empatia, mas nada podia fazer. No fim das contas, ela só tinha a Luci, e Luci só tinha a ela.