A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 34
Após renderem o Executor, Nico e Tevoul correram para acudir Tadeu, que estava sentado no chão com a perna direita sangrando. O ruivo foi o primeiro a chegar, uma vez que o major segurava o prisioneiro.
— Tadeu! Você tá bem?! — Tevoul perguntou enquanto se lançava ao chão.
A face de dor de Tadeu se transformou quando ele franziu a testa e fez um olhar sério para o amigo.
— Eu pareço bem?
O ruivo riu após receber a resposta nada simpática.
— Ah, mas foi você que decidiu correr atrás da mulher. Têm homens que gosta dessas mais loucas que tentam te matar, né? Não tô julgando, longe de…
Por um momento, o rapaz esqueceu as feridas e deu um cascudo com toda sua força no topo da cabeça do colega, que logo fez a cara de dor característica de uma criança travessa.
Olharam-se por um instante, tão sérios que mais pareciam inimigos jurados. Tevoul tentou, mas não manteve o olhar emburrado por muito tempo. As gargalhadas lhe escaparam, acompanhadas em seguidas pelas do colega.
— Fala logo, miserável, você se feriu além do ombro e da coxa?
— Não — Tadeu respondeu ainda risonho. — Mas acho que não vou sair daqui sozinho.
— Tudo bem, eu te levo.
Junto do Executor capturado, O trio voltou para a rua onde estavam os membros do Sindicato. Tadeu ainda estava com a adaga cravada em sua coxa. Por sorte, o golpe tinha acertado o lado interno do membro, o que significava que o mercenário viveria por um tempo bem maior do que se tivesse acertado em cheio.
Após o embate, três mosqueteiros e um besteiro do Sindicato estavam feridos ou mortos, restando apenas dois soldados com Fridevi, Levias e Marí. Logo perceberam o mercenário ferido, que usava seu mosquete para apoiar um braço e Tevoul para levar o outro.
— És realmente maluco — Levias disse com um sorriso inconveniente para a situação.
— Todo soldado tem que ser pelo menos um pouco.
— É, mas você passou da conta hoje, moleque! — Nico exclamou, ainda contente. — Podia ter se fodido feio!
O major parecia mais falador após Tadeu ter se levantado para lutar contra as forças da Igreja de Kolur. Aparentemente, criara alguma afeição pelo mercenário depois do combate.
— Por sorte, não parece fatal — constatou Levias. — Ainda sim, precisarás de cuidados extras. — Ele procurou pelo sindicalista de bigode longo. — Fridevi?
— Não.
Levias se aborreceu com a reação do companheiro, mas conteve sua ira.
— O rapaz mancará por meses se nada fizermos! — falou em um tom irritado, mas ainda argumentativo. — Garanto-te como o Administrador terá compaixão ao saber da maneira que ele se feriu.
Fridevi refletiu sobre o assunto. Quis a todo custo que Levias notasse sua insatisfação e mudasse de ideia, mas o loiro estava irredutível. No fim, com arrependimento prévio vazando do rosto, suspirou e disse:
— Está certo. Mas saiba que estou ficando sem favores com o Administrador.
Tadeu não entendeu bem de quem se tratava a alcunha de “Administrador”, mas era perceptível notar sua importância pelo tom de voz de Fridevi.
“Será o líder deles?”
— Aliás, eu trouxe um “amiguinho” novo pra vocês. — Nico empurrou o Executor pelo colarinho como se fosse um saco de esterco. — Espero que seja útil, ele é dos que fazem você sentir dor.
O loiro se agachou e encarou a face assustada do Capacitado adversário.
— Então vai ser um tanto irônico. — Levias levou a mão ao queixo, talvez para conter a malícia vazante das presas.
O Executor, por sua vez, apavorou-se com o “irônico” do moço.
— Certo, quase todo mundo saiu vivo, mas onde está a garota? — questionou o major.
De repente, Levias, Fridevi e Marí viraram o rosto para longe de Nico, escondendo-lhe seus rostos. Apesar da tentativa dos sindicalistas, o ex-oficial não era idiota. Entendeu na mesma hora o problema.
— Vocês perderam a menina para a Igreja?!
— Não! — Fridevi respondeu, assustado. Ele se recompôs assim que notou o exagero. — Capturamos todos os soldados da Igreja, e os outros vocês capturaram ou mataram, acredito eu. A garota fugiu.
— E não há razão para esse chilique, major, a menina não vai muito longe — falou Marí, mostrando-lhe um pano ensanguentado. — Essa era a venda que colocaram na menina. Dá pra fazer um “truque” com esse sangue que simula a relação de Inoculador e Hospedeiro, o que vai dar pra gente a direção de onde ela está.
— Todo membro do Sindicato sabe inocular, e muitos deles são habilidosos o bastante para fazer uma Pedra Inoculada, não vai ser difícil obter esse apetrecho — completou Fridevi.
— Ainda sim, como uma criança ferida escapa sozinha de meia dúzia de homens adultos?!
— Sozinha, não — Tadeu estava incerto, mas sentiu que sabia a resposta. — Acho que ela fugiu com alguém.
Com a exceção de Tevoul, todos do grupo olharam-no com dúvida estampada em seus rostos.
— Como assim “com alguém?”
***
Ferida, Rudon correu pelas ruas de Gurvralo como uma vítima de um furto. Mesmo que ainda temesse uma possível perseguição dos sindicalistas, manteve-se determinada em encontrar a carruagem que usou para chegar ali, onde esperaria por reforços.
Ela se preparara exclusivamente para lutar contra a Filha de Kolur. Nunca imaginou que lutaria contra os membros do Sindicato, que, provavelmente, estavam apossados da garota.
Após correr metros e metros pelas veredas dos guetos, finalmente encontrou a carruagem da Igreja que a trouxe para o inferno. Exausta, foi até o veículo com o passo mais sereno, parecendo-se com um aventureiro que passou dias no deserto ao encontrar um cantil.
Rudon abriu a porta da carruagem com a intenção de pular no banco acolchoado. Mas, ao abrir a porta, uma lâmina avançou em sua direção, parando a centímetros da sua garganta.
Viu Igri, ainda ferida, sentada no banco mais afastado, com um sorriso um tanto debochado. Mas o que mais lhe chamou a atenção foi sua companhia.
— Não sabe bater, feiticeira? — perguntou Luci. — Eu e minha colega estávamos tendo uma conversa frutífera sobre… a situação política local. Você é um tanto descuidada, não acha?
— Sua…
A asteni tentou pular em direção de Igri, mas a forasteira conseguiu agarrá-la pelo pescoço antes que pudesse tocá-la, empurrando-a contra o banco oposto.
Rudon tapou os olhos assim que o baque a fez sentir cada ferida da luta anterior. Quando os abriu, viu o par de olhos negros implorar pelo seu sangue.
— Encosta um dedo nela que eu te mato — disse com uma frieza que nem os piores assassinos replicariam.
— Ela que vai te matar — respondeu com dificuldade. Luci afrouxou a mão para que ela pudesse falar direito. — Ela é uma Filha de Kolur, uma hora ela vai “estourar” de novo e você vai ser a primeira a morrer.
— Excelente, sempre quis saber se minha amiga tinha família! Sabe me dizer onde encontro o Sr. Kolur?
— Me solta, sua idiota.
Luci percebeu que ela era inofensiva naquele estado, mas preferiu desobedecer ao comando.
— Só se você me disser onde estão as coisas de valor. Já dei uma procurada, mas só achei umas moedas. Achei um tanto sem graça.
— Debaixo do banco do cocheiro tem alguns cálices e cordões de sacerdotes, pegue e me deixe ir!
Luci acenou com a cabeça para Igri, que saiu da carruagem e foi em direção ao local apontado pela cativa. Bisbilhotou por quase um minuto, até que, com um sorriso, fitou a companheira pelo vidrinho entre o assento e o interior da carruagem.
— Achei!
— Não venha mais atrás dela — Luci ordenou a Rudon.
A forasteira lançou a asteni para dentro e fechou a porta com toda sua força. Enquanto isso, Igri desceu do banco com uma caixa pouco maior que uma melancia, indo em busca de Luci com pressa. Sem perder tempo, as duas subiram na mula e partiram de lá a todo galope.
Enquanto isso, sua oponente manteve-se imóvel sobre o banco. Quase sem forças, conseguiu sentar-se, ainda conturbada. Sentiu vontade de se entregar as lágrimas, mas nenhuma saiu de seus olhos. Rudon estava derrotada.
“Acabou… Maldita sulista! Malditos sindicalistas!”
Socou o banco em pura frustração. Contudo, em um olhar desesperançoso, seus olhos encontram algo que mudou seu semblante. No canto do banco, quase imperceptível em meio ao escuro, viu uma mancha de sangue maculando o estofado.
“Então… ainda tenho uma chance?”
Uma leve esperança reacendeu seu coração, junto de um sorriso revanchista.
***
— Então, vocês querem um anel ou um cordão? — perguntou um homem calvo, de rosto arredondado e um bigode espesso. Seus olhos puxados e pele amarelada denunciavam que não era um nativo.
— Acredito que um cordão será melhor — opinou Fridevi.
O grupo estava novamente no salão do Sindicato, que contava com rostos novos desde sua chegada. Eram alguma espécie de reforço para a segurança. A trupe mantinha-se à espera do “transporte” que Fridevi dissera que viria para que pudessem tratar o ferido, porém, mesmo após quase uma hora, nada havia aparecido.
Cada um deles aguardava ao seu modo. O major estava encostado em uma coluna, com a mesma cara amigável e convidativa de sempre. Tadeu vestia apenas um calção enquanto era tratado por alguns membros do Sindicato, que colocaram uma mistura de ervas em seu ombro. Tevoul, por sua vez, tentava se distrair na companhia de Marí, mas viu que foi um erro assim que ela voltou a tomar doses após doses de bebida.
O homem que falava com Fridevi tinha uma mala retangular de couro com apetrechos de joalheria, incluindo pedras, bases para anéis, cordões, brincos e pulseiras. Apesar do aparato de criação para belas joias, as pedras que o homem carregava eram de pouco valor, nada diferentes das pedrinhas que se encontram nas margens de rios.
O senhor calvo tirou um alicate e um cordão e começou a preparar a bijuteria. Ele pôs uma pequena pedra com um tom alaranjado no centro da mesa que trabalhava. Depois, envolveu-a na venda ensanguentada.
— Um copo com água, por favor. De preferência, feito de vidro.
Fridevi não tardou e seguiu a risca o conselho. Após receber o receptáculo, o joalheiro tirou um frasco minúsculo que mais parecia um tubo de ensaio da maleta, despejando seu conteúdo verde no copo, que se tornou verde. Em seguida, mergulhou a pedra envolta com o pano manchado de sangue.
Pegou outro tubinho da sua mala, dessa vez de cor alaranjada, e despejou com cuidado uma única gota. Ao colidir com a água, a gota provocou uma fagulha de luz que ascendeu o líquido do copo e se apagou como uma vela assoprada.
Ao finalizar o procedimento, a água estava tão cristalina quanto antes e o pano tinha nenhum resquício de sangue.
— Está feito — o homem falou com um sorriso no rosto.
— Obrigado, Oalhi. — Fridevi cumprimentou o homem, que recolheu seu material de trabalho com pressa.
O anfitrião foi em direção a mesa onde Tadeu era tratado, chamando os outros da comitiva da República pelo caminho. Mesmo sem convite, Levias se dirigiu ao grupo como se fosse um dos membros da missão.
Ao ver todos reunidos, Fridevi falou, mostrando-os o objeto recém-fabricado:
— Isso é uma Pedra Inoculada. Há duzentos anos, os mérios descobriram um método para criar uma Inoculação constante num objeto, consistindo em criar uma fina membrana ao redor de uma pedra para conter o sangue Inoculado. Basicamente, o sangue envolve a pedra, que, por sua vez, é envolvida por essa membrana criada por alguns líquidos específicos nos quais…
Tevoul chegava a bocejar. De Levias a Nico, ninguém estava interessado na explicação academicista de Fridevi, que mais parecia um professor do que qualquer outra coisa.
— É parecido com a Inoculação em cordões élficos que os gilinenses fazem nos golems, porém, em vez de Matéria Virgem…
— Essa é a porcaria que aponta pra onde a menina tá? — Nico perguntou.
— Creio que sim, major.
— “Ótimo que sim”, velho. Poderia ter dito antes! — ele arrancou o cordão das mãos do homem com toda sua delicadeza e etiqueta, quase fazendo-o perder o decoro.
— Para onde vamos agora? — Tadeu perguntou enquanto Nico vestia o cordão.
O ex-oficial equipou-se com apetrecho, mas sentiu nada diferente. Ele pegou o cordão e começou a girá-lo feito uma funda, o que fez Fridevi gastar ainda mais sua paciência.
— Isso só funciona em contato com a pele, major — Fridevi explicou com a voz levemente irritada. — É isso que vocês ganham por não ouvir uma explicação!
Nico ignorou o comentário do homem e vestiu o cordão por dentro do seu casaco marrom. Ao encostar com a pele, nada ocorreu, assim como da outra vez. Ele rodou lentamente em seu próprio eixo. Ao se virar em direção as escadas, sentiu uma leve sensação em seu peito, similar a angústia de alguém pressentindo o perigo. Nico completou a volta, percebendo que a ansiedade parava assim que ele apontava o torso para uma direção diferente das escadas.
— Acho que funcionou dessa vez. Parece que a gente vai ir pro sul, talvez pra Danuvralo.
— Então só temos que esperar tratarem a minha perna com esse tal de “Administrador” e partimos.
Levias e Fridevi soltaram risadas tímidas com a fala de Tadeu, virando os rostos para trás. O mercenário estranhou a ação, procurando uma explicação em Marí. A feiticeira também estava com um sorriso malicioso no rosto, que lentamente evoluiu para uma risada estranha.
— Lamento informar, mas vocês não vão para Danuvralo hoje — disse Fridevi.
— Como as…
Antes que pudesse entender o que ocorria, o jovem viu um saco tapar sua vista.
— Ei, o que é isso!?
Mesmo cego, Tadeu sentiu quatro pessoas agarrando seu corpo enquanto tentava se libertar. Cordas contornaram seu torso e braços em múltiplas voltas. Em seguida, também prenderam suas pernas. Todo seu movimento foi cortado sem que pudesse ao menos ver o rosto dos que o prenderam.
— Que merda vocês tão fazendo agora?! — escutou a voz de Nico, possivelmente também capturado.
Do outro lado, ouviu sons incompreensíveis de alguém amordaçado.
— Desculpem-me, amigos — Marí ironizou. — Digamos que isso seja para prevenir pessoas que… viram demais.