A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 28
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- Capítulo 28 - Luvas escondem bem mais que mãos
A tensão continuou entre os membros do Sindicato e o grupo da Igreja de Kolur, de tal maneira que seria possível ouvir um alfinete cair no chão. Ninguém ousara responder a pergunta de Rudon. Ela manteve-se estática, à espera de que os sindicalistas falassem.
Seus opositores se acanharam do outro lado do espaço. Tadeu, Tevoul, Marí e Fridevi, acompanhados de Nico, que recuara após a chegada da mulher, permaneceram parados, sem saber como reagir à invasão.
— Ela consegue controlar metais? — Tadeu perguntou para Marí.
— Deve ser nativa da Astênia ou de Caen — Fridevi respondeu antes da moça. — Os descendentes de Haftar receberam a Bênção do Morto e Tocável. Eles podem controlar tudo que não venha da vida e possa ser palpado: metais, pedras, água, terra entre outras coisas.
“Isso não significa que todas as nossas armas serão inúteis?!”, o mercenário se espantou.
Toda a missão era uma loucura pelo simples fato de estarem em terreno inimigo, mas se tornaria um problema ainda maior caso a Igreja de Kolur interviesse. A presença de tal Capacitada era uma amostra do que poderia vir.
— Digam onde está a garota. — Rudon mostrou-se sem paciência.
— Quer dizer então que é uma Filha de Kolur mesmo? — Uma voz jovial ecoou do alto.
Todos desviaram a atenção para o topo das escadas, onde os dois homens armados com carabinas estavam. Um terceiro homem surgiu entre ambos. Jovem, tinha estatura mais baixa que o ideal, mechas encaracoladas e a aura de mistério que sempre caminhou ao lado dos cavalheiros genuínos. A ausência de bigode e barba acentuava ainda mais seu queixo avantajado.
O moço passou entre os dois carabineiros com a elegância de alguém consciente da sua estirpe. Vestia uma calça escura, uma jaqueta rubra em um tom vinho e um colete negro por baixo. Uma cartola negra enfeitava sua cabeça, contrastando com seus cabelos loiros e olhos claros, além das luvas brancas que cobriam suas mãos.
O velho Fridevi engoliu seco do outro lado. Ele sabia bem até onde o rapaz chegaria se lhe permitissem.
— Droga… Levias tinha que aparecer! — resmungou.
— Algum problema com ele? — Tadeu perguntou, estranhando a súbita reação.
— Apenas assista.
Ele aproximou-se de Rudon com uma tranquilidade incompreensível para quem estava sob a mira de múltiplas armas.
— Para trás! — um dos guardas ordenou, pondo-se entre o jovem e a mulher de pele negra.
O loiro ignorou o aviso e retirou elegantemente a luva da mão direita. O desdém em seu olhar era claro feito o dia. O desafio fora aceito.
— Seu fedelho! — O soldado levantou a carabina contra o sindicalista.
Porém, antes que pudesse feri-lo, Levias agarrou seu braço com a canhota e lançou a palma de sua mão direita na testa do sujeito, arremessando-o contra a parede e evitando qualquer reação.
O invasor espumou pela boca e se debateu como em uma convulsão. Sua garganta pareceu se afogar com a própria saliva enquanto suas pupilas se esconderam, deixando unicamente o branco em seu olhos.
Os outros guardas pensaram em agir, mas relutaram. Ver um dos seus cair daquela forma os congelou. Só podiam assistir ao espetáculo, perplexos com o que aconteceria a eles se estivessem um pouco mais à frente.
De joelhos, o soldado azarado mostrou um lapso de consciência. Sua mão alcançou o braço direito do moço misterioso, não para atacá-lo, mas para fazer uma súplica. O jovem entendeu seu pedido de socorro e largou a testa.
O sujeito caiu feito um atleta exausto. Com a respiração pesada, aos poucos perdendo a consciência, tossiu a própria saliva como um náufrago após cair na água do mar.
— Não é só tu que sabes fazer truques, asteni — disse o jovem, lentamente se levantando do chão, com a vista fixa na mulher. Arrumou a jaqueta e olhou para o guarda que derrubou com um sorriso. — Durma bem, Dusan. Bela família, por sinal.
— Um Desencorporador — Rudon disse com desgosto. — Você é de um tipo raro.
— Levias, não há necessidade para escalar a situação! — Fridevi se alarmou do outro lado da área.
— Os únicos que escalaram a situação foram os vermes que macularam a paz do recinto. A propriedade está no nome do Administrador da união e, pela lei do Reino de Leifas, temos o direito de definir quem pode entrar, salvo por ordem de uma autoridade da coroa. Como funcionário do Administrador, tenho direito de defender o estabelecimento até que a ordem…
— Pare de fingir que o Sindicato se importa com as leis, são criminosos! — disse um dos homens da Igreja.
— Só depois de tu permitir que eu entre em tua propriedade sem autorização. Se bem que, pelo seu jeito, sua casa deve ser frequentada por vizinhos com… certa frequência.
— Miserável! Eu vou…
Irado, o homem engatilhou sua arma, porém Rudon o impediu de cometer o ato. Levias permitiu-se abrir um sorriso no canto da boca enquanto vestia a luva novamente.
— Parece que ele não perdeu a mania de se exibir — Marí comentou com um sorriso contido para Fridevi, que, por sua vez, estava farto.
— Até melhorou nos últimos tempos, mas parece que regrediu agora.
— O que ele fez com o homem? — perguntou Tevoul.
— É a Desencorporação — o velho explicou. — Uma Arte que consiste em extrair pedaços da memória de outra pessoa, podendo ser útil para desmaiar alguém se usada em exagero. É um pouco raro, mas ainda existem praticantes no Sindicato.
Os dois mercenários arregalaram os olhos em surpresa. Nunca ouviram falar que aquilo era possível, muito menos que o Sindicato, uma instituição secreta e teoricamente pouco avançada, poderia ter tal poder em mãos.
— Apenas diga onde está a menina — Rudon exigiu com a paciência esvairada.
— Menina? — ironizou Levias. — Felizmente, não fazemos ideia. Pode voltar pela mesma porta que entraste.
A asteni permaneceu em silêncio ao vê-lo balançar a mão para enxotá-la do lugar. Apesar de a tensão ter atingido um ápice, a mulher de pele negra sabia que o único obstáculo possível para encontrar a garota era o Sindicato. Se os hereges careciam de pistas e mostravam pouco interesse pela Filha de Kolur, então pouco havia que se preocupar com aquela gente.
— Se estiver mentindo, já sabe que as consequências virão. Mas, se essa for a verdade, quero que se comprometam que não vão nos atrapalhar.
— Quanta ingenuidade… O Sindicato não se dobra à Igreja desde quando ela se tornou um dos capachos de Gilina e não é hoje que será diferente. Se quisermos buscar a Filha de Kolur, não serás tu que nos impedirá.
— Apenas saia! — Fridevi ordenou antes que a mulher protestasse à nova fala de Levias. — Não há nada do que você procura aqui.
Sem motivos para prosseguir naquele lugar, Rudon se retirou do salão junto de seus capangas. Abandonaram o recinto em uma fila, o último deles fechando a porta com a perna direita do desmaiado em sua mão.
Levias foi até a saída para dar um aceno de despedida nada genuíno ao grupo invasor. Fechou a porta outra vez e quebrou a faceta leve.
— São um grupo de quinze, com dois Infantes do Tato disponíveis — explicou o que encontrou na mente do desacordado.
— Eles sempre souberam que o ponto de reunião é aqui, mas nos invadir é novidade.
— Nem me diga, Fridevi, nem me diga — O sindicalista loiro externalizou sua indignação ao retirar a cartola e passar a mão pelos cabelos, lançando-os ao ar em um movimento exagerado. — Eles sabem muito bem que não temos nada com a Filha de Kolur. Vieram aqui apenas para causar atrito.
— Ela foi embora mesmo? — Tevoul perguntou para Fridevi, atraindo a atenção de Levias por acidente.
O Desencorporador confundiu-se com o estranho, notando que falava a língua de Selamica. De alguma forma, a presença do mercenário ruivo e do seu colega moreno o desconcertou mais que a entrada forçada da trupe de Rudon.
— Quem é esse sulista? — perguntou Levias.
— Tevoul Darville de Tourses, da doce nação de Mautinir!
O moço buscou o velho Fridevi por respostas.
— Não olhe para mim, foi a senhorita Marí que os trouxe aqui e, pelo pouco que eu soube, sabem mais sobre a garota do que nós.
A ruiva caiu sob o olhar de Levias, que, por um momento, quebrou seu tom descontraído. Ele desejava seriedade no assunto. Ela percebeu a exigência e se ajeitou na cadeira, tomando o copo de vidro vazio e o enchendo outra vez.
Ela explicou a sina em que ela e os três estavam, bem como a missão entregue pelo Conselho Republicano. Fridevi e Levias ouviram com atenção cada palavra, se espantando com a história e o quão longe o frade Astovi havia chegado com a guerra.
— Isso que você falou tem potencial para ser a maior ameaça à Leifas em anos. — Fridevi não poupou exageros para a situação. — O czar Carasovi I de Gilina usou as Filhas de Kolur durante a Guerra do Intocável como armas, uma só podia vencer brigadas inteiras!
— Como Tevoul e Tadeu disseram — explicou enquanto tomava a quinta dose da noite —, o provável Inoculador foi ferido, então eles estão tão cegos quanto nós.
— A menina foi ferida em algum momento? —Levias perguntou aos mercenários.
— Não, mesmo que ela tenha ferido e até matado alguns dos nossos, ninguém na Noligre mataria uma criança — explicou Tadeu, logo notando o erro em sua fala. — Exceto por um bastardo.
— Ela não matou ninguém — Fridevi alertou. — Filhas de Kolur são controladas pelo Inoculador com quem possuem uma conexão. São como um boneco de ventríloquo, ficam inconscientes durante todo o processo. Agora, se forem forçadas a um estresse maior do que podem suportar sem o Inoculador por perto, elas podem perder o controle de seus poderes e uma tragédia pode acontecer.
— Se ela não se feriu, as coisas ficarão complicadas. Poderíamos fazer uma Pedra Inoculada para rastreá-la — lamentou Levias.
— Aquela mulher — Tadeu apontou a face para o loiro — também pode ser um problema pra gente. Tem algum jeito de anular os poderes dela?
— Creio que não, cavalheiro. A Bênção é algo natural dos homens desde seu surgimento no Avorastra, entregue pelo próprio Faor. Creio que não queiras ofender um deus na situação que estás.
“Porcaria… Se ela controla metais, o que garante que ela não arranque as balas dos mosquetes antes da gente atirar?”
— Por sorte — Levias se preparou para ressuscitar a esperança do moço —, temos algumas armas de madeira guardadas para uma ocasião análoga a essa. Ela também não parece ser uma grande Capacitada, então creio que controle apenas os metais. Pedras, água, areia e coisa do gênero serão capazes de pará-la.
— A gente poderia fazer balas com pedras, então — o mercenário comentou enquanto olhava para seu colega ruivo, que assentiu. — Só precisamos de algumas que caibam nas armas.
Naquele instante, Fridevi ergueu suas sobrancelhas. Ele levou as mãos ao queixo, conflitado, mas logo balançou a cabeça de um lado para o outro e afastou a hesitação, focando na necessidade do momento.
“É por um bem maior. Espero que me perdoe, Pyotr.”
— Eu acho que tenho algo assim para você, jovem. — Ele se ergueu. — Venha comigo.
O mercenário se levantou com vigor. Fridevi tomou a liderança e seguiu rumo a escadaria com certa pressa, forçando o jovem a apressar o passo para acompanhá-lo rumo ao segundo andar.