A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 26
O grupo chegou às ruas de Gurvralo pela noite. Naquele horário, o luar era a única coisa que iluminava os paralelepípedos do calçamento, uma vez que os poucos lampiões e lanternas da rua foram quebrados por algum arruaceiro há muito tempo atrás.
O primeiro passo para a caçada era conseguir informações com locais. Como feiticeiros do Vivo e Intocável podiam sentir a presença um do outro, Marí foi a primeira a constatar que a menina estava de fato na cidade, por mais que o resto da trupe duvidasse.
O major Nico, que havia se tornado o cocheiro do grupo, parou a carroça no lugar que a feiticeira ruiva indicara minutos antes. Era um imóvel pintado em um tom pastel de amarelo, provavelmente dessa cor devido a anos de sol e chuva. Parecia uma pensão abandonada, com a madeira dos portais e das janelas desgastada, o reboco derrubado revelando tijolos tortos e de tamanhos diferentes, encaixados sem o capricho necessário para chamar aquilo de parede. Era uma verdadeira ofensa à alvenaria.
Tadeu, Tevoul e Marí desceram da carroça e pararam na porta do lugar, Nico se mantinha afastado. Os mercenários espiaram pelas janelas, mas nada foi encontrado.
— É aqui mesmo? — Tadeu perguntou para a moça.
— Não deixe a fachada te enganar. Da última vez que eu vim aqui, estava tão miserável quanto agora.
Ela caminhou até a porta e a golpeou com três toques rápidos. Esperou pela resposta, que veio na forma de três batidas na mesma intensidade que as suas.
— Constan de Danuvralo, Mestre Adonias, 3159! — ela exclamou.
Duas vozes cochicharam do outro lado da parede, logo transformando-se em passos apressados.
— Algum tipo de código do Sindicato?
— Mais ou menos — respondeu. — É um protocolo de entrada para ter certeza que ninguém inconveniente entre sem autorização.
O mercenário só tinha ouvido boatos sobre o Sindicato até aquele momento, sem fazer qualquer ideia de como operavam. No Sul, como a Igreja de Goren era mais tolerante com ensinadores independentes, problemas com membros da sociedade ilegal eram raros. Mas as coisas eram diferentes no Norte. A Igreja de Kolur era rígida com os sindicalistas, muitas vezes ao ponto de apontarem armas um ao outro. Relatos de terrorismo, sequestros e assassinatos eram só parte do que ele ouvira sobre tal grupo quando as coisas esquentavam.
O trio esperou por uma resposta do interior, mas ela demorou mais que o previsto. Enquanto aguardavam, notaram o major Nico se aproximar em uma posição retraída, em uma tentativa forçada de colaboração.
— Aqui é uma sede do Sindicato, não é? — ele murmurou.
— “Salão de encontro” é mais apropriado. É aqui que pessoas de outras regiões podem falar com representantes locais. A união local fica em outro ponto da cidade, bem longe desse.
A porta se abriu assim que a feiticeira de olhos coloridos se calou, lançando a luz dos lampiões internos para a rua escura. Revelou-se um homem alto, de idade um pouco avançada, vestido de um casaco preto e uma cartola comprida, além de um bigode estranhamente longo que descia até o queixo.
Ele carregava um livro espesso debaixo do braço canhoto, abrindo-o com precisão ao meio. Olhou três vezes para Marí e para o objeto feito um inspetor.
— “Que a morte faz tocaia, não há porque mentir…”
— “Triunfo algum alcançarão.”
— “As rosas crescem roxas em Somir…”
— “Onde a Quarta Terra fica a sete palmos do chão”.
O sujeito na porta fechou o livro com a mão direita, pondo-o sob o braço outra vez.
— Bom vê-la de volta, senhorita Marí, especialmente depois da notícia de sua prisão. — Ele se inclinou e percebeu o restante da trupe. — Quem são os cavalheiros que a acompanham?
— Três… amigos, vamos chamar assim.
O homem ergueu uma sobrancelha, mas preferiu evitar protestos.
— Entrem, por favor.
Marí se introduziu sem muita cerimônia. Contudo, ao pôr os pés no interior do lugar, percebeu que estava sem acompanhantes. Quando olhou para trás, viu os outros recearem. Ela fez questão de esboçar seu aborrecimento e acenou com a mão para que entrassem, forçando o trio a ceder à sua vontade.
Ao contrário do que indicava o exterior, o ponto de encontro do Sindicato tinha seu luxo, parecendo-se com uma pensão requintada do lado de dentro. De frente para a porta, haviam escadas para o andar de cima, seus corrimões de madeira com desenhos entalhados. À direita, um balcão com homens e mulheres bem-vestidos cobria a largura de um salão repleto de mesas e cadeiras, lembrando um restaurante com ar aristocrático. Alguns lugares estavam ocupados por famílias e casais, enquanto outros pareciam dar espaço a sócios de algum negócio.
Um papel de parede esverdeado cobria todas as laterais do prédio, além de diversos quadros de figuras históricas e criaturas mitológicas. Alguns eram reconhecíveis: Um tinha o Haviritilt, a lendária águia costurada pelos elfos durante a Era da Apostasia; Em outro, estava o Imperador Erinovi a cavalo, cravando sua lança contra o Cuestavrilt, o monstro que era como um búfalo com cauda de escorpião; Já o quadro da parede perpendicular ao balcão mostrava o toque do herói ancestral Farintora na árvore do lago Avorastra.
Lanternas a óleo nas colunas verdes iluminavam o espaço em um tom amarelado. Sua luz refletia no chão de madeira, claramente limpo ainda naquele dia. O aroma amadeirado era o toque final de cuidado para tornar aquele espaço o ambiente perfeito para se ensinar magia ilegalmente.
Os quatro se sentaram em uma das mesas ao centro, atendidos por uma bela senhorita que segurava uma bandeja oval de madeira.
— Os senhores desejam algo? — ela perguntou.
— O que vocês vão querer? — Marí perguntou quase como se fosse a anfitriã.
— Uma cerveja já dá pro gasto — Tadeu parecia mais interessado em apreciar o ambiente. — E você, Tevoul?
— Por mim, o mesmo.
— Não sejam tímidos… — A moça debochou do grupo. — Minha família tem uma boa reserva no Sindicato, eu posso pagar o que vocês quiserem.
— Só não queremos incomodar — o ruivo explicou.
— Vocês têm um péssimo gosto. Kukuchka — Marí falou para a garçonete —, uma garrafa de vinho, por favor. — A atendente assentiu e anotou o pedido. — E você, major, já tem algo em mente?
Ele balançou o braço direito, mostrando seu desinteresse. Manteve-se olhando para a janela pintada de preto como se fosse possível ver o exterior.
— Acho que isso é um não…
— Mais alguma coisa? — perguntou a atendente.
— Por agora não, Kukuchka, pode ir.
A garçonete acenou com a cabeça e se retirou para buscar o vinho de Marí.
— Esse lugar é mais agradável do que parece — Tadeu falou ainda encantado com os quadros —, o interior é muito mais bem cuidado que o exterior.
— O Sindicato não pode ficar se exibindo. A Igreja de Kolur ainda persegue os membros da união, por mais que a era de montar piras e nos queimar tenha passado. Mas o interior não está à vista, então podemos ter um pouco de luxo.
— Ainda é estranho que um grupo ilegal tenha tanto cuidado por um lugar assim.
— Prisões não fariam sentido se criminosos livres já tivessem que viver em uma masmorra.
Kukuchka trouxe a garrafa de vinho e quatro copos de vidro, pondo um recipiente na frente de cada um. Depois, posicionou a garrafa ao centro da mesa.
— Você ainda não explicou porque nos trouxe aqui — o major de cabelo castanho falou em um tom provocador.
— Se existe uma filha de Kolur na cidade, então múltiplos Capacitados sentirão seu poder. Precisamos de outros dois Capacitados para sentir a sua presença com exatidão.
— Isso se ela estiver aqui, não é?
Marí encheu o pequeno copo com um líquido transparente que não parecia em nada com vinho. Vodca.
— Ah, major, eu acho que ela está sim. — Deu dois goles na bebida e retornou o copo para a mesa, logo em seguida pegou a garrafa e preparou outra dose. — Não é uma sensação muito forte, mas é quase como se o poder da Bênção tivesse dobrado desde que andei por estas bandas. A menos que o Sindicato tenha ficado duas vezes maior, ela está aqui.
— Onde? — Nico perguntou atropelando as letras.
— Eu já disse que não consigo dizer o local exato. Prestar atenção não custa nada, oficial.
Nico franziu a testa com a provocação e voltou ao desinteresse de antes. Os outros três começaram a questionar se Nico ajudaria em algum momento ou se seria só um peso morto na missão.
Depois de passar algum tempo no andar superior do prédio, o velho de bigode comprido que os recebera desceu as escadas e caminhou até o grupo, ainda com o livro grosso debaixo do braço. Ele tomou uma cadeira de uma mesa vizinha e se sentou entre Tevoul e Marí, com todo o decoro e etiqueta que sua aparência indicavam.
— Suponho que não vieste aqui se embebedar com seus… “amigos”, senhorita Marí.
— De forma alguma — respondeu mantendo seu tom relaxado. Terminou outro copo sem demonstrar qualquer embriaguez. — Preciso de ajuda com uma “visita ilustre” que pode estar nessa cidade.
— Se buscas o bispo Luvran, ele já está bem longe daqui. Aliás, quase não deu as caras. Acho que ele não passou duas horas sequer aqui antes de viajar para Revragova.
— Fridevi, Fridevi, não procuro Luvran. — Encheu a terceira dose. — Na verdade, é uma presença mais… Capacitada, se é que me entende.
Marí levou o copo lentamente até a boca, seu mindinho e nariz levantado, bebendo com a delicadeza de uma dama.
— Então é realmente uma Filha de Kolur, não é? — O velho perguntou com os olhos arregalados.
Marí cuspiu a bebida na mesa, dessa vez com a delicadeza de um cavalo.
— Como você sabe disso?!
Os outros frequentadores viraram a atenção para a moça após o berro. Ela percebeu os olhares que atraiu, o que deixou suas bochechas levemente coradas.
— Não se fala em outra coisa no Sindicato — Fridevi tentou disfarçar a situação alisando seu bigode. — A força da Bênção é extraordinária, há relatos de gente que nunca estudou as Artes sentindo a presença desse ser. É quase como se o próprio Kolur tivesse descido da Primeira Terra.
— Mas o que te dá tanta certeza que é uma a Filha de Kolur? — Tadeu perguntou. — Não pode ser um outro feiticeiro poderoso, ou algo assim?
— “Capacitado”, sulista, use a palavra certa — o homem corrigiu rispidamente.
O jovem se embaraçou, sem entender a razão da reprimenda.
— O que eu…
— Não fale “feiticeiro” — explicou Marí. — No início ninguém se importava com essa palavra, mas, quando os inquisidores começaram a perseguir quem praticasse as Artes sem autorização da Igreja de Kolur, começaram a separar eles, os — abriu aspas com os dedos — “Infantes”, de nós, os — repetiu o gesto — “feiticeiros”. Desde então nós falamos “Capacitados”. Eu não me importo com essa besteira, mas o senhor aqui é mais cabeça dura com essas coisas.
— Eu não sabia.
— Tudo bem, rapaz, ninguém tem a obrigação de saber tudo. Respondendo tua pergunta: nós duvidamos a princípio, mas não conseguimos uma explicação mais plausível. Juntamos os relatos escritos de um mestre antigo, da época da guerra do Intocável, e a descrição do que ele sentiu ao chegar próximo da Filha Dalkina encaixa com perfeição na de nossos Capacitados.
— Já sabem onde ela está? — Nico se intrometeu com a mesma pergunta de antes.
— Presumimos que nos guetos dos imigrantes sulistas.
Nico se levantou com pressa, afastando a cadeira onde sentou sem o mínimo de cuidado, derrubando seu chapéu no processo. Ele pegou o tricórnio do chão e foi em direção a porta com pisadas violentas.
— Para onde você vai? — Tevoul perguntou.
— Para os guetos pra acabar com isso logo. Ou vocês querem ficar aqui até a garota sair da cidade?!
— Um pouco de calma não faz mal, oficial — Marí pediu com a face irritada. — Ainda preciso de outros dois Capacitados para encontrá-la. Essa pressa não vai ajudar.
— Pois então que consiga logo! — Nico elevou o tom. — Não vim aqui para ficar bebendo com estranhos enquanto a garota tá debaixo do nosso nariz!
Ele vestiu o chapéu com rispidez, dando as costas para o grupo e se voltou para a saída.
Contudo, quando o oficial estendeu a mão para tocar na maçaneta, a porta se abriu com violência. Ele recuou dois passos enquanto assistiu a mulher encapuzada em uma túnica verde invadir o salão em passos apressados.
Atrás dela, quatro homens vestidos de uniformes brancos com bordas e detalhes dourados, todos armados com sabres e espingardas. O símbolo da Mão com o Olho estava no peito de cada um.
Dois homens correram do andar superior para as escadas com carabinas em mãos. No chão, os atendentes e as garçonetes se armaram com pistolas, facas e porretes. Os chefes saíram com espingardas de dentro da cozinha, criando uma linha como um legítimo batalhão de infantaria.
As pessoas nas mesas do Salão se assustaram, dando início a gritaria e uma corrida desenfreada para os fundos do estabelecimento.
A mulher tirou o capuz, revelando sua pele negra, cabelos ondulados e nariz largo. Havia demorado, mas a capanga de Astovi encontrou onde os ratos do Sindicato se escondiam.
— Afastem-se, lacaios da Igreja! — gritou um dos sindicalistas com carabinas na escada. — Um único passo e atiramos!
A invasora tocou o segundo metal da placa de madeira que carregava na perna esquerda. Ela estendeu com vigor o outro braço na direção dos dois homens e arrancou os cães das espingardas, que caíram sobre os degraus em um som agudo, acompanhado por um silêncio agoniante.
A dupla de atiradores se assombraram ao ver que suas armas ficaram inúteis. Ela prosseguiu, tocando a quinta placa de metal e movendo o braço em um puxão que trouxe algo das carabinas para sua mão esquerda. Fez questão de mostrar os objetos aos sindicalistas, arremessando-os em sua direção. Duas balas de chumbo.
Um sorriso no rosto surgiu no rosto de Rudon quando viu o pavor em seus inimigos.
— Ainda vão apontar essas coisas pra mim ou preferem fingir que vai adiantar de algo?