A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 25
Os músicos tentavam tocar uma antiga melodia leifanesa em seus acordeões e balalaicas¹, por mais que a falta de talento fosse risível. Também não era como se a clientela do local se importasse.
Aqueles bêbados mal podiam dar atenção a suas vidas, quanto mais para música ruim. As tavernas dos subúrbios de Gurvralo eram assim: quando chegava a noite, homens e mulheres iam a esses lugares para se esquecerem do trabalho, das responsabilidades e da própria existência. Tais estabelecimentos nunca ficavam vazios, mesmo no meio da semana, tanto que Luci tinha que se espremer entre a leva para chegar no balcão.
Ela segurava a mão de Igri com força para ter certeza que não a perderia no meio dos boêmios. A garota, por sua vez, estava perturbada com tanta gente. Detestava lugares movimentados.
Ainda sim, achava melhor do que ficar sozinha. Mesmo que sem querer, ela se lembrou de como odiava a solidão. Recordou-se da escuridão daquele lugar, do ruído que os ratos faziam. Das pedras frias, da cela escura. Das batidas violentas contra a porta de metal no meio da noite, que a assustavam quando ela estava quase dormindo.
A garota tremeu com a lembrança. As lágrimas escorreram pelo seu rosto enquanto ela se prostrava. O pesadelo passou, mas parecia nunca a deixar em paz.
— Igri, tudo bem? — Luci perguntou.
A menina espasmou e caiu de joelhos, levando suas mãos à boca para conter um grito.
— Desculpa! — Igri sussurrou como se tivesse cometido um pecado.
— Ei, calma. — Luci pôs-se de cócoras. Ela começou a afagar as mechas loiras da nova companheira, na esperança de tranquilizá-la. Pareceu funcionar. — Tudo bem. Seja lá o que aqueles homens queriam com você, eles não estão mais aqui.
A menina loira olhou para a face da sua parceira. A moça mostrou um sorriso enquanto sua voz mansa a acalmou, seus olhos oferecendo um conforto que a garota não sentia há anos. Por um momento, notou-se aqueles olhos azuis com o brilho renovado.
— Melhor agora, baixinha?
A pequena acenou com a cabeça em afirmação, formando um sorriso tímido em sua boca.
— Vamos — tomou a menina pela mão —, tenho que falar com um senhor.
Luci tentou outra vez atravessar a massa de bebuns, forçada a desviar de braços, pernas e cerveja jogada ao alto, tudo isso enquanto tentava suportar o zumbido demoníaco que alguém ousou chamar de música.
Por mais que escondesse, ela não fazia a menor ideia do que fazer com Igri. Conhecia que a garota tinha algo que atraía os republicanos e a Igreja, por mais que não soubesse o quê. O perigo de tanta gente importante interessada em sua nova parceira era o suficiente para que temesse o futuro.
Pensou na chance dela ser filha de um nobre, mas descartou a possibilidade ao lembrar que ela havia chamado o sujeito em Carasovralo de “mestre”. Era sabido que nobres não possuíam mestres além deles próprios. Ela fitou a companheira e procurou algum vestígio de aristocracia, mas Igri parecia ser apenas mais uma órfã perdida nesse mundo. O mistério estava além do seu entendimento.
Mas Luci tinha que achar uma solução. Jogá-la para a adoção foi sua primeira ideia, porém preferia que a menina ficasse longe de lugares tão infames. Pensou em perguntá-la se tinha pais ou qualquer parentela próxima, mas o medo que a garota ficasse mais perturbada do que já estava a impediu. No fim, optou por ficar com ela até achar uma solução para o problema.
A forasteira parou no balcão. Para seu alívio, o lugar era menos movimentado que o resto da taverna, além de ser quase imune ao rangido que os músicos tocavam. Com Igri entre seus braços, olhou ao seu redor, mas falhou em encontrar quem procurava.
— Turkosa! Turkosa! Vem aqui, velho arrombado! — Luci gritou com a compostura de uma donzela.
Um sujeito mal-encarado surgiu entre os balconistas, empurrando quem se atrevesse a cruzar-lhe o caminho. Era careca, de meia idade e sem pescoço. Aparentava ser mais largo que alto. Aproximou-se da moça com o andado de um pato manco, cada passo tão desequilibrado que faziam-no parecer na iminência de uma queda. Carregou um copo de líquido transparente em sua mão esquerda para o balcão, fazendo questão de bater o objeto com toda sua força para espirrar bebida pelo alto.
Igri assustou-se e se escondeu atrás de Luci, que não moveu uma pálpebra com o espetáculo do velho. Ela já tinha visto aquele teatrinho muitas vezes para se intimidar.
— O que você quer, sulista? — Turkosa falou com uma voz grave e rouca. Em um momento, desviou o olhar para a pequena, espantando-se. — Tu pariu?!
— Não, achei ela sendo seguida por uns soldados, mas isso não interessa.
— Eh, não é nem a pior história que tu já me contou. Fala logo.
— Me arruma um serviço, tô precisando de dinheiro.
O velho revirou os olhos para o alto. Àquela altura, já era rotina.
— Todo mês isso?!
— Todo mês eu preciso de dinheiro.
— E eu também, por isso eu trabalho! Já tentou?
Luci cruzou os braços e franziu a testa para Turkosa, por mais que a esse ponto ela soubesse que o velho sempre tinha um “serviço”. O sujeito esperou a moça desistir, mas ele já havia disputado tal jogo antes. Havia perdido todas as vezes.
— Tá bom. — Inclinou-se para a estrangeira, escondendo a boca com a mão. — Umas carruagens da Igreja chegaram na cidade domingo passado, coisa de gente importante mesmo. Vieram sem escolta do Exército Real, mesmo a cidade sendo tão perto da linha de frente. Acho que não querem chamar atenção.
— Sabe dizer se tem alguma “carga”?
— Não faço a mínima ideia, mas é quase certeza que tem coisa ali.
Um dos funcionários de Turkosa passou pelos dois com uma bandeja, brevemente interrompendo a conversa. O velho e a errante assistiram o homem cruzá-los, esperando até que ele estivesse longe o bastante.
— Ótimo, pode me passar o endereço?
— Eles estão hospedados na catedral do centro, de vez em quando dão as caras por essas bandas. Um dos meus garotos disse que viu eles parados aqui perto, num sobrado abandonado, perto da bodega do Survin.
— Aquele com a placa do alfaiate?
— Não, o da placa do boticário.
— Certo. Obrigada pelo recado e pelo “serviço”.
— A quinta — Turkosa exigiu.
— Tá bem, a quinta é sua. Vamos, Igri.
As duas se retiraram da taverna com a mesma dificuldade da entrada, obrigadas a costurar outra vez pelos bêbados e pela música duvidosa até chegar nas ruas de Gurvralo.
No lado de fora, Luci correu apressada até sua mula. Porém, antes que se preparasse para partir, percebeu a falta da sua acompanhante.
— Igri? — perguntou, olhando para trás.
Ainda na metade do caminho entre a taverna e a mula, a garota estacionou, com a cara emburrada e sua testa franzida. Luci se aproximou da menina com sua preocupação estampada na face.
— O que foi?
— Você vai roubar a carruagem.
Luci quase caiu para trás ao ter seu plano descoberto.
— Não, você deve ter entendido errado, eu…
— E ainda vai dar uma parte para aquele homem.
Ela permaneceu assombrada com o talento auditivo da parceira. Pensou em arranjar outra desculpa para enganá-la, mas logo percebeu que seria inútil. Ela relaxou os músculos e respirou fundo. Como da outra vez, ela se agachou em frente a garotinha e explicou:
— Olha, Igri, se tem uma coisa que me ensinaram é que nem sempre vamos ter o que queremos. O mundo é uma eterna competição e não é o mais forte, o mais inteligente ou o mais rico que vence, mas o que está disposto a lutar. Meu pai um dia me falou isso e, desde então, eu entendo que as vezes temos que fazer coisas ruins para chegar nas boas. Entendeu?
Igri ficou mais surpresa com o fato de Luci possuir um pai do que com a justificativa do roubo.
— Isso não é certo.
— Se você não quiser vir, eu não vou te obrigar. Mas eu preciso do dinheiro pra mim e… pra você também.
A pequena relutou, mas cedeu. No fim das contas, ela era uma criança perdida que, por sorte, encontrou alguém tão sem destino quanto e que a protegeu desde então.
Antes de partirem para o local indicado para Turkosa, Luci foi até uma das bolsas da sua mula e retirou um facão e uma pistola velha. Pôs ambos na cintura, com um cuidado especial para esconder a garrucha debaixo do colete marrom. Ela ajudou Igri a montar-se sobre a cela do animal, enquanto ela seguiu pelo chão, levando o equino pelas rédeas.
As ruas dos guetos de Gurvralo eram inóspitas e escuras, por mais que um ou outro lampião dentro de um imóvel desse um pouco de luz para as pedras do calçamento. À vezes se escutava um rato nas vielas, em outras se ouvia um grito longínquo, quando não dois gato brigando nos telhados.
Luci estava acostumada com esse tipo de lugar. Sempre terminava em um gueto desse tipo desde quando havia decidido que sua vida seria vagar pelo Leste, fosse na Tautânia, fosse em Selamica. Eram como a sua casa, por mais que ela desejasse que seu lar fedesse menos a urina e tivesse menos lixo ao redor.
— Pare — ordenou Igri, chamando a atenção da colega.
— O que foi?
Luci se espantou ao ver que o olho esquerdo da menina estava vermelho como um rubi, movendo-se em zigue-zague. Era como se ela procurasse desesperadamente por algo. Ou por alguém.
— O que o seu olho tem?
— Eles são quatro. Ali!
Igri apontou para uma das vielas, fazendo Luci sacar sua pistola. Ela viu duas silhuetas se esgueirando da escuridão, como onças preparando seu bote.
O cano da arma cuspiu fumaça e chumbo, o estampido ecoou nas ruas desertas. Ao fundo, um grito masculino sucumbia nas trevas.
— Sua vadia! — exclamou um deles.
Múltiplas figuras correram para cercar a dupla e a mula, empunhando punhais e machetes. Ao todo, quatro homens ainda estavam de pé, vestidos de trapos velhos e tricórnios² amassados em suas cabeças.
Luci desembainhou seu facão, tentando apontá-lo para cada um dos salteadores. Não demorou para descobrir que tinha menos lâminas do que inimigos.
Um dos sujeitos se aproximou, ainda agachado. Parecia ser um pouco velho, ou talvez tivesse ficado daquela maneira por ficar muito tempo sob o sol. Ela o encarou nos olhos, recebendo de volta um olhar pesado e rancoroso.
— Maldita… nós só queríamos a mula! — disse o bandido. — Mas, agora que nosso amigo está no chão, alguém vai ter que pagar pelo sangue dele.
Luci sentiu sua espinha congelar. Arrochou o punho de sua arma, possivelmente pela última vez.
Notas do Autor
¹Balalaica: instrumento triangular de três cordas tradicional da Rússia. Acredita-se que seu nome significava algo como “blablablá”, “fofoca”, ou “conversa fiada”, o que indicava que sua música era praticada sem muita formalidade.
²Tricórnio: chapéu de três pontas comum no século XVIII, comumente associado com piratas. Aos poucos caiu no desuso para os civis, enquanto converteu-se no bicórnio em meios militares.