A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 24
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- Capítulo 24 - "Ninguém pode servir a dois senhores"
Quatro homens carregavam Astovi em uma maca com a pressa característica exigida do ferimento. À sua frente, dois doutores abriram caminho pelos corredores, empurrando qualquer um que os barrasse.
O grupo chegou em uma pequena sala médica, onde duas pessoas já os esperavam. Uma delas era um homem de meia idade, cabelo longo e ondulado, de olhos puxados e pele amarelada; um mério. A outra era uma mulher negra de lábios carnudos e cabelos volumosos, fenótipo comum das astenis.
— O que houve com ele?! — perguntou o estrangeiro.
— Ferimento de bala, perna direita, parece ter acertado o osso.
— Um soldado atirou em mim quando eu tinha a garota em mãos! — esbravejou Astovi, segurando a dor na voz. — Ainda bem que cheguei até você a tempo.
— Rudon — o mério disse enquanto examinava o ferimento —, teria como tirar o projétil?
A mulher afirmou que sim com a cabeça. Ela correu para uma estante ao lado e puxou uma placa de madeira com doze pedaços metálicos diferentes.
Depois, pôs a tábua ao lado do frade enquanto tocava a quinta chapa, feita de chumbo. A mulher de pele negra fechou os olhos e se concentrou, acariciando o objeto. Estendeu a mão direita aberta sobre o ferimento sem tocá-lo e, em um movimento violento, lançou a mão para o alto, fazendo o projétil se arrancar.
Astovi uivou de dor, tanto que se engasgou com a própria saliva. O mério tentou acudir o sujeito, olhando para a asteni à espera de uma resposta. Rudon estendeu a mão fechada para o doutor e revelou a bala e os restos de chumbo ao abri-la.
— Muito bem, Rudon, muito bem.
— Navofini, se for para me matar aqui, que tivessem me deixado em Carasovralo.
— Foi necessário, Astovi, havia pedaços de chumbo que eu não conseguiria achar. — Ele voltou a examinar a ferida. — Acho que um osso foi atingido. Terei que consertar manualmente.
A palavra “manualmente” embrulhou o estômago do frade. Também estava sem alternativas.
— Faça logo. — Um médico o ofereceu um pano para pôr na boca.
O outro doutor leifanês trouxe uma bacia de água para Navofini lavar as mãos. Ele molhou seus dedos, esfregou-nos com força e depois apontou para a estante, indicando a gaveta do meio. Rudon tirou de lá uma pequena e pesada bolsa de couro, repleta de tesouras, bisturis, pinças e outros objetos de metal.
Navofini tomou um bisturi e uma tesoura e os lavou na água com a ajuda de um lenço. Ele os segurou um em cada mão, como se medisse a temperatura. Não satisfeito, lavou-nos de novo, repetindo o processo três vezes.
— Agora está bom. — Ele se curvou ao redor da canela do sujeito.
O metal encostou na abertura da bala pela primeira vez. A dor avançou pelo corpo de Astovi, seus gritos abafados pelo pano mordido. Ele se debateu de um lado para o outro, forçando os médicos que o trouxeram a segurar sua perna para que não se ferisse por acidente. Incapaz de suportar a dor, desmaiou.
Navofini suspirou ao ver o sujeito apagar, satisfeito que a operação aconteceria sem percalços adicionais. Depois, focou na cirurgia. Pôs a mão sobre a ferida e fechou seus olhos, concentrando-se para a parte mais crítica do procedimento.
Aos poucos, enquanto o mério mantinha-se de olhos fechados, a cena grotesca se desfez, com todos os filamentos de pele conectando-se enquanto o ferimento fechava. Os dois doutores leifaneses mal podiam crer como o estrangeiro poderia realizar tal operação de minutos em poucos segundos, sem usar qualquer agulha e linha.
Restou uma única mancha escura e deformada. O médico apontou para a mesma estante que Rudon buscou a bolsinha, dessa vez pedindo-a uma vasilha. A mulher trouxe o recipiente com a mesma pressa de antes e o estendeu para Navofini, que pôs seu polegar no interior do objeto e retirou uma porção de pomada esverdeada. Ele a colocou sobre o resto da ferida, que absorveu o medicamento como água na areia.
Por fim, o pouco que restava do buraco do disparo se contraiu até que tudo estivesse coberto por pele firme e viva outra vez. Ao ver o resultado, o mério fitou seus companheiros.
— Feito.
***
A perna de Astovi melhorou de tal forma que ele sequer precisava de muletas após uma semana. O médico recomendou repouso até o fim da dor, mas ele não tinha tempo para perder. Afinal, seu experimento estava perdido e cabia a ele encontrá-lo.
Junto da mulher asteni, o frade estava nos corredores do Palácio Real de Revragova para discutir sua próxima ação. Porém, ao dar um passo em falso, sentiu a canela doer ao ponto de forçá-lo uma parada.
— Tudo bem, frade? — ela perguntou.
— Essa perna que não fica boa nunca!
Ele ainda mancava com a perna, muito por ignorar os avisos de Navofini.
— Talvez o senhor devesse descansar como o médico aconselhou.
— O dever fala mais alto, Rudon. Afinal, sou o que restou entre a República e a coroa. Você entende isso, não entende?
A mulher evadiu o assunto, muito por falta de uma resposta coerente.
— Os colorados têm a vantagem na guerra. Seremos exterminados se tentarmos lutar contra eles em termos iguais.
— Eu sei. Por isso você quer a menina de volta.
— Sim. Precisamos completar o experimento e depois o replicaremos em números que possam rivalizar o Exército Republicano. Como estou ferido, precisarei de você para buscá-la.
— Alguma ideia de como vou fazer isso?
— O Patriarca autorizou que me entregassem um grupo de Executores e alguns Infantes para a busca. Como todos os outros, ele já desistiu do projeto, mas ainda quer que eu o recapture.
— O tamanho de Gurvralo deixará tudo mais difícil. Não sei se com esse punhado de homens conseguirei fazer algo.
— E eu não sei? O Patriarca me dá tudo em conta-gotas. — Recuperado, o frade reiniciou a marcha. — Todos aceitaram a derrota nessa guerra, Rudon. O Patriarca, o Grão-Mestre Maravi, os nobres menos influentes… Talvez até a própria regente. Só eu posso salvar esse país dos demônios que decapitaram Grozyr. E você será uma peça-chave.
A asteni assentiu com a cabeça. Compreendia muito bem o seu papel para vencer o conflito.
Enfim à entrada da sala do trono, Astovi pediu para que um dos guardas informasse sua chegada aos que o esperavam. Pouco mais de um minuto depois de passar a mensagem, dois lanceiros abriram as pesadas portas de madeira, permitindo que Astovi e Rudon entrassem no recinto.
Um longo tapete vermelho se estendia até o trono, com alabardeiros cerimoniais por todo o percurso. As janelas eram projetadas para deixar a maior parte da sala com pouca luz, com a exceção do trono, iluminado por todas as direções.
Uma jovem que sequer chegara na maioridade sentava-se na cadeira monárquica. Vestia um longo vestido de seda, seus cabelos castanhos em um belo e complexo penteado. Em seu rosto, um par de olhos azuis competiam em brilho com a coroa no topo da sua cabeça.
— Frade — disse a moça no trono. — Agrada-me vê-lo recuperado.
Astovi interrompeu sua caminhada e pôs sua mão direita abaixo do braço, curvando-se em reverência à soberana.
— Agrado-me eu em tornar a vê-la, Vossa Majestade.
Nasti sorriu para o homem, que se pôs ereto outra vez. Além de meia dúzia de guardas alabardeiros, três cavalheiros e uma senhorita estavam ao lado da regente. Entre os senhores, dois vestiam as roupas extravagantes comuns da nobreza, enquanto o outro, um militar, tinha o uniforme de um hussardo. A mulher era uma ama de Nasti, sempre próxima da princesa.
— Alguma novidade da menina?
— Infelizmente não, Vossa Majestade. Sabemos que os únicos lugares que ela pode estar são as cidades de Carasovralo e de Gurvralo. Como os traidores também devem estar atrás dela, acredito que a segunda cidade é mais provável.
— Gurvralo é uma cidade enorme — disse um dos nobres. — Encontrá-la será uma tarefa difícil.
— De fato. O pior de tudo é que ela certamente irá para a zona mais pobre da cidade. Aquele lugar é governado por ladrões, contrabandistas e hereges do Sindicato.
— Alguma ideia para resolver esse problema? — perguntou o mesmo cavalheiro.
— Borovralo, não seja ingênuo — intrometeu-se Nasti. — Por anos os guetos existem e nunca conseguimos desmantelá-los. Não será hoje que eles cessarão de existir.
— Vossa Majestade, não há necessidade de repreender o duque. No fim das contas, precisaremos de uma solução para tal problema. Rápida, de preferência.
— E como pretende encontrá-la, então? — perguntou o outro nobre.
— Caro duque de Korodar! Antes de tudo, a quanto tempo, meu amigo! — Astovi o saudou. — Pessoas que possuem conhecimento nas Artes de Kolur podem sentir outras pessoas que também são conhecedoras. Claro, não em uma distância tão grande, nem conseguirão ter sua direção exata, mas saberão que ela está entre eles.
— E lá está repleto de agentes do Sindicato — disse o duque de Borovralo. — Não será uma tarefa fácil se eles também criarem interesse na menina.
— Tens razão nisso. Eu até consigo sentir a localização do projeto com certa precisão, mas, devido ao ferimento, não poderei participar das buscas.
— E quem você pretende mandar? — perguntou o hussardo.
— Enviarei Rudon, minha servidora — estendeu os braços para a asteni —, que conhece a arte do Morto e Tocável, alguns Executores da Igreja e os soldados que forem possíveis. Não se preocupe, marechal Maravi, em breve terei a garota outra vez.
A feição do hussardo se fechou enquanto um sorriso nefasto apareceu em Astovi.
A conversa durou alguns minutos. Durante sua extensão, o grupo discutiu possíveis colaboradores e informantes em Gurvralo, bem como a reconstrução do que restou do Exército Real, ainda dizimado após a derrota na última grande batalha que enfrentaram.
Terminada a discussão, Astovi e Rudon se despediram do grupo e abandonaram a sala, porém, para seu desgosto, foram acompanhados de perto pelo hussardo que o frade chamara de marechal. Ele caminhou por alguns metros na esperança de despistá-lo, mas o militar manteve a perseguição feito sua sombra.
O religioso sabia que o homem o acompanharia até receber sua atenção. Ele parou a caminhada e quebrou o silêncio:
— Perdeste alguma coisa, Maravi? — perguntou sem sequer olhar para trás.
— O único perdido aqui é você.
— Falas como se conhecesse as escrituras melhor do que eu — Astovi virou-se para Maravi lentamente. — Um moralismo teológico implacável vindo de um soldado. Cuide da sua guerra, Grão-Mestre. Eu cuido da garota.
— Elas são mártires — disse o hussardo —, todas as Filhas de Kolur são. A Igreja as garantiu santidade após a crueldade de Carasovi. Proibiram todas as mulheres de aprenderem as Artes só pra que isso não se repetisse e aqui estamos — estendeu os braços em revolta —, recriando os erros do passado!
— A Igreja também garante que os reis de Leifas, de Gilina, da Hária, de Mucal, de Gomenir e de Caen são abençoados e protegidos pelo próprio Faor e, portanto, a encarnação do poder do Pai dos Homens sobre a Tautânia — Astovi caminhou ao hussardo, gesticulando enquanto falava. — A sua Ordem de Erivoni jurou proteger o rei a todo custo, até o último homem. Ainda sim, hoje ele está morto. Foi Faor que falhou? Ou você? Ou será que foram os dois?
Maravi encarou o frade olhando para baixo, já que ele não era mais alto que seus ombros. Pensou em esbofeteá-lo pela afronta contra o próprio Faor, mas sabia que era essa a intenção do homem.
— Você é podre — falou com toda a clareza e nojo possíveis. — O que fizeste aquela garota sofrer na Inoculação deveria ser o suficiente para que nunca mais pisasse nesse palácio. É uma lástima que exista gente como você dentro da santa Igreja de Kolur.
— Mas Nasti precisa de mim, Maravi. Ela, você, os duques, quiçá até a Igreja! E se eu não encontrar a garota, eu vou dar um jeito de fazer outra. Cem, se necessário! Eu vou salvar esse país enquanto você faz nada, da mesma forma como não fizeste nada para salvar o seu rei!
O indicador de Astovi apontou para o rosto do hussardo, acusando-o pela execução. Com sua ira devidamente contida, o militar pôs sua mão sobre a do frade, abaixando o dedo julgador para longe do seu nariz.
— Que Faor tenha piedade de você, frade. Que ele abra seus olhos, que se tornaram cegos.
— Cuide da sua guerra, soldado.
Astovi ofereceu as costas para o Grão-Mestre, tomando a mão esquerda de Rudon. Junto da mulher, distanciou-se do marechal monarquista com passadas furiosas no mármore branco.