A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 23
Cefas se despediu de seus soldados e os deixou para seu destino, partindo em direção ao Palácio Central. Existia certa angústia em Tadeu em saber que poderia ser a última vez que o via.
“Espero que eu conheça outro homem que nem você, capitão”, pensou o mercenário. “Tomara que menos ranzinza e irritado, pelo menos.”
Dando as costas para o lugar onde foi condenado, o jovem se preparou para entrar na carroça coberta junto de seus novos colegas, mas, antes que embarcasse, notou outra figura com uniforme da Noligre se aproximar. Era um soldado, com uma faixa branca sobre o braço direito.
— Alen? — perguntou surpreso. — O que está fazendo aqui?
— Tadeu, vim te fazer um pedido — falou em um tom implorante.
O moreno ficou confuso. Não conseguia imaginar que tipo de desejo poderia realizar ao companheiro naquele estado.
— Qual seria?
— Deixa eu ir com você e Tevoul.
Seus olhos quase saltaram para fora em surpresa.
— O quê?! Isso não é um passeio, Alen, é possível que a gente morra!
As palavras de Tadeu marretaram o rapaz em um duro golpe. Ele viu o jovem de cabelo castanho-avermelhado virar a face para o lado com vergonha, quase como se fosse o culpado pela desgraça alheia.
Ao ver a reação do amigo, o mercenário se arrependeu de ter sido tão rude, mesmo sem ter o intuito.
— Alen…
— Eu também sou culpado. Não é justo que você e Tevoul passem por isso sozinhos.
— Culpado? Você não tem nada a ver com isso, Alen, não precisa…
— Se eu não tivesse me ferido, nós três teríamos ido atrás da garota — Alen disse com pesar. Tadeu finalmente entendeu de onde vinha a “culpa” que o colega sentia. — Eu estaria no mesmo lugar que vocês e também teria sido vítima do maluco do Leto.
“Ele está contra Leto?”
Um alívio inútil invadiu o peito de Tadeu. Aparentemente, a fama do cabo era ruim o bastante para que nem todos dentro da Noligre se convencessem da história.
Por mais que admirasse que o parceiro ferido estivesse se voluntariando por ele e Tevoul, sabia que a ação era pelo calor do momento. Permitir que outro conhecido fosse posto naquela expedição seria loucura.
— Não precisa se expor, Alen. Seja lá o que os deuses pensam, eles quiseram que você escapasse disso. Aproveite a oportunidade.
— Mas…
— Escute. — Ele pôs a destra sobre o ombro esquerdo de Alen. — Você teve a sorte de escapar dessa. Não desperdice a chance.
Por mais que tentasse, o soldado não conseguiu pensar em algo que mudasse a cabeça de Tadeu.
— Apenas… tentem voltar inteiros.
Em resposta, o mercenário acenou com a cabeça e deu dois tapas no ombro do colega, balançando-o no último.
— Garanto que vou fazer de tudo pra que isso aconteça.
Alen e Tadeu sorriram um ao outro em uma despedida sem o mínimo de esperança. O mercenário que ficou viu o ruivo e o moreno subirem na carroça, assistindo-a se distanciar com o coração na mão.
***
Dentro do veículo, a recém-formada trupe de captura da Filha de Kolur seguiu caminho pelas ruas da capital da República, já rumando para a cidade de Gurvralo. O piso irregular de pedra provocava leves pulos nas rodas da telega, chacoalhando o interior.
A carroça era levada por um cocheiro acompanhado de dois soldados colorados. Atrás dela, oito dragões¹ a cavalo os escoltavam, separados em linhas de dois.
Até aquele momento, todos os quatro se mantiveram calados, talvez esperando que alguém quebrasse o silêncio. Normalmente, seria tarefa de Tevoul quebrar o impasse. Contudo o ruivo ficou com a boca fechada, algo impensável para Tadeu, que já estava preocupado. Temia que tivesse destruído a amizade por impulsividade.
Porém, antes que tentasse puxar assunto para se desculpar, percebeu que seu amigo estava distraído com a moça que os acompanhava. Depois do “julgamento”, ela passou a vestir um belo chapéu negro que quase escondia seus olhos. Também estava com um broche na altura do seu pescoço unindo o pelerine, enfeitado com uma opala azulada.
Além de terem cores distintas, os olhos da misteriosa tinham mais peculiaridades quando vistos de perto. Seu olho direito, o verde, era natural, em um belo tom que combinava com seu cabelo ferrugem. Mas o esquerdo, além de vermelho, reluzia feito um rubi, possuindo um contorno negro ao redor da íris.
Ao contrário dele e de Tevoul, ela parecia mais cansada do que com medo do futuro.
— É para o ilusionismo — falou ela ao perceber a curiosidade da dupla. Sua voz tinha um tom grave, mas ainda feminino. — O direito é normal e se engana com os truques, mas o esquerdo consegue ver sem a ilusão.
— E se você perder o olho esquerdo? — questionou Tevoul. — Você perde o poder?
— Primeiro porque eu não vou perder meu olho esquerdo, é o meu charme — respondeu ela, tomando interesse pelo mercenário. — Na verdade, você só fica incapaz de ver sem a ilusão, mas ainda funciona.
— Entendi…
— Bem, se vamos morrer juntos, é melhor se apresentar direito. Meu nome é Marí Constanikaya. O seu?
— Tevoul. Tevoul Darville de Tourses, da bela terra de Mautinir. Esse aqui é Tadeu Ávera, meu amigo. Essa cara de lesado vem de Selamica mesmo, da região de Gunere. Ele paga de ser o mais inteligente de nós dois, mas foi ele que jogou a gente nisso.
Tadeu olhou com a testa franzida para o parceiro, tentando pensar em uma resposta para a piada ácida. Talvez até conseguisse se o ruivo não tivesse falado exatamente o que aconteceu.
Pelo menos, sua consciência ficou mais leve. A voz de Tevoul, apesar de irônica e um tanto revoltada, não parecia ser a de alguém que o odiava com todas as suas forças.
— E o que o rapaz calado fez para terminar nessa carroça? — O olhar da mulher misturava dúvida, curiosidade e confusão, pedindo por uma explicação com os olhos.
— O maldito queria matar a menina, eu fui contra. Ele acusou nós dois de traição e agora tenho que pegar ela de volta.
Nico, que sequer parecia ouvir a conversa antes, olhou de relance para o rapaz. O mercenário percebeu que atraiu sua atenção, porém, ao retribuir o gesto, percebeu que o sujeito desviou a vista para o lado.
Desde quando entrou na carroça, o ex-oficial fingia ser o único ali. Parecia estar com a mente distante, sempre olhando para a direção do cocheiro e para os dois casacas coloradas que o acompanhavam. Um olhar mais atento notaria que ele olhava para o céu.
— Interessante. Algo a acrescentar? — Marí parecia investida na história.
— Quando eu levar a garota de volta pro Conselho, vou poder ter a minha vida de volta e dar uma lição no bastardo.
— Entendi… — Ela sorriu sem mostrar os dentes. — Quer escapar da sua desgraça pra sair por cima no fim. Levantar das sombras dos outros para projetar a sua, talvez?
Tadeu lançou um olhar conflitado para a moça. Algo nas palavras que Marí escolheu fez todos os seus motivos soarem mais egoístas do que imaginava.
— Bem, tudo que posso dizer para sua busca por justiça contra os maus é “boa sorte”, soldado Tadeu.
— Desejo para a senhorita a mesma sorte.
A ruiva riu da resposta. Depois, refletiu por sobre como o destino a levou para essa maluquice.
— Não me faça rir, soldado. Foi justamente essa vadia que me jogou aqui.
A carroça parou antes que a conversa prosseguisse, para a surpresa do grupo. Eles viram o cocheiro e os guardas que os escoltavam descerem com certa pressa, o que aumentou sua dúvida.
— O que houve?! — Enraivecido, Nico abriu a boca pela primeira vez.
— Pegamos o caminho pela praça — respondeu o cocheiro, esgueirando-se para dentro. — As execuções estão acontecendo, tem uma plateia enorme aqui.
— Parece que vão matar os “traidores” — a ruiva falou com um ânimo estranho para os dois mercenários. — Demos sorte de não ser com a gente.
Na companhia da escolta, o grupo saiu da telega para ver a multidão polvorosa mais de perto. A todo instante pessoas amaldiçoavam os condenados. Alguns se amontoavam para subir no cadafalso enquanto balançavam as bandeiras escarlates com a rosa, sendo forçados a descer por soldados colorados à coronhadas.
Duas guilhotinas estavam prontas. Uma dupla de guardas de vermelho levaram os condenados, uma mulher e um homem, ambos já passando dos seus quarenta.
“Aquele não é o barão de Jorodar?”, Tadeu se perguntou.
Ao analisar mais um pouco, teve certeza. Era Muromets, o homem que ele ajudou a capturar. Ironicamente, tinha ido do herói que prendeu o sujeito para um infeliz tão condenado quanto ele.
Os guardas no chão formaram duas correntes humanas para barrar a avalanche do público, permitindo a passagem do anunciante de roupas extravagantes. Ele subiu a escadaria do cadafalso e se dirigiu a leva que tentava escalar o palanque.
— Diga-me, Leifas, você quer sangue?! — exclamou.
Um enorme brado sedento respondeu que sim. Os leifaneses na plateia sequer pareciam homens civilizados, agindo como bárbaros do pior tipo.
O grupo viu os dois condenados serem postos nas guilhotinas, por mais que não conseguissem enxergar suas cabeças, tapadas pela multidão e pelas bandeiras flamulantes. O homem balançava os braços enquanto incitava o espetáculo horrendo, causando um enorme alvoroço ao encostar sua mão sobre a alavanca. Pausou por um instante e, em um movimento poderoso, acionou as máquinas de matar.
As duas lâminas chocaram-se contra a madeira do cadafalso. A plateia foi a loucura com o derramamento de sangue, comemorando a morte de ambos como um grande festival.
Tadeu descria que aquilo era a sociedade civilizada e fraternal que a República tanto pregava. Ele mesmo poderia ter sido vítima do carrasco, mesmo inocente.
“Esse povo realmente acredita que isso é melhor que ter um rei?”, não pôde deixar de se perguntar.
Muitos foram injustiçados, muitos receberam uma punição maior que a devida e uma quantia ainda maior pereceria em uma busca por um idealismo inalcançável. Naquele instante, após sofrer na pele o que era ter o destino roubado por alguém com mais autoridade que ele, percebeu que a República em nada era diferente dos tiranos que condenava.
“Liberdade aos que precisam” e “morte aos que se opõem” deveriam ser iguais, contudo, sob o jugo da rosa de Carasovralo, o último era mais verdade que o primeiro.
Outras execuções aconteceram naquela tarde, totalizando dezesseis decapitados. Após o fim da luxúria sangrenta da revolução, a plateia se dispersou aos poucos, permitindo que o caminho para fora da cidade ficasse livre outra vez.
Sem perder tempo com mais barbárie, o grupo subiu na carroça e partiu rumo ao desconhecido.
Notas do Autor
Dragões¹: tipo de soldado de cavalaria. Eram a “infantaria móvel” da época, usando seus cavalos para deslocamento, mas lutando a pé. Com o tempo, sua função caiu em desuso, mas até hoje existem unidades em exércitos com a alcunha de dragões.