A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 22
Os corredores do Palácio Central eram belíssimos, com o piso em mármore, teto escarlate abobadado e paredes enfeitadas por quadros de batalhas e personalidades históricas. Antes da revolução, o local era a universidade de Carasovralo, tornando-se, através de uma decisão extraordinária, a sede do governo republicano.
Mas os dois mercenários não conseguiam ver a formosura do prédio naquelas circunstâncias. Quatro soldados de vermelho, incluindo Laviel, carregavam-nos para discutir suas ações. Pelo pouco que sabiam, teriam uma conversa com os cônsules Lodrovi e Tiso e com o general Rovibar, supostamente por traição.
— Você acha que a guilhotina vai estar bem afiada na minha vez? — o ruivo perguntou com um sorriso irônico enquanto era arrastado. — Tomara que sim, não quero correr o risco de ter meu pescoço rasgado pela lâmina.
— Tevoul, por favor.
— Não, não, não, eu estou preocupado. Quero que me cortem o pescoço retinho, como se fosse uma placa de mármore de tão bem cortado.
— Tevoul.
— E, se possível — fitou um dos soldados, sabendo muito bem que não falava sua língua —, tem como pedir pra me enterrarem em dois lugares diferentes? Sempre quis ser como aqueles reis e cardeais que enterram seus corpos em um lugar e o coração em outro. Se bem que vai ser a cabeça, né? Vai ficar meio estranho, melhor não. Sabe…
— Ele é sempre tão irritante assim? — perguntou Laviel, que carregava o braço esquerdo de Tadeu.
— Te garanto, você não viu nem metade.
As duas portas de madeira no fim do corredor se abriram, permitindo que vissem o grupo que os esperava.
Do outro lado, uma larga sala com piso em mármore terminava em uma imensa vidraça oposta à entrada. Aos lados, duas estantes de livros, mantidas do seu passado acadêmico. Em ambas as laterais haviam portas guardadas por uma dupla de colorados cada, escondidas pelas prateleiras.
Uma larga mesa de madeira cobria quase toda a largura do espaço. Sentados nela, estavam Lodrovi, Rovibar e Tiso, da esquerda para a direita. O comandante reconheceu a dupla de imediato, espantando-se com a coincidência.
— Vocês?!
— Olá de novo, general — disse Tevoul, enquanto um dos colorados o desamarrava. — Espero que o senhor se lembre que não era eu que estava fazendo as perguntas da outra vez.
Tadeu quase ficou surpreso com a “traição” do colega. Quase.
— Que perguntas? — Lodrovi questionou Rovibar.
— Nada de importante, cônsul. — O militar voltou sua atenção para Tevoul. — Ainda sim, você estava com a criança e não fez nada para trazê-la até nós. Também ameaçou o cabo que tentou impedi-los com sua arma. Você é, no mínimo, cúmplice.
— Eh, já sabia que ia falar algo assim — Tevoul se desanimou —, mas valeu a tentativa.
— Não vou me estender explicando o que fizeram, afinal vocês devem lembrar muito bem. Sabem que isso pode ser considerado como traição, não sabem?
Os dois vacilaram por um instante, mas acenaram com a cabeça em afirmação. Tadeu pensou em protestar para dar sua versão do incidente, porém, assim como Cefas havia falado, seria inútil. O Conselho não lhe ouviria nem se ele tivesse provas da conduta de Leto.
— Também sabem — Rovibar prosseguiu — que a guilhotina que cortou o pescoço do rei ainda está armada na praça principal, não sabem?
Dessa vez, ambos empalideceram, para o alívio de Rovibar. Era exatamente a reação que queria causar.
Ele não queria executá-los. Mesmo que ambos desconhecessem, o comandante os considerava um presente divino. Havia recebido dois soldados que conheciam a Filha de Kolur para a expedição e sequer precisaria convencê-los.
— Mas, infelizmente, precisamos de vocês. Os dois são mercenários da Noligre, que é uma das poucas de nossas forças que tiveram contato com a Filha de Kolur. Ainda tememos que ela seja o trunfo de Nasti e de toda a coroa para retomar o país.
— Conversamos com seus oficiais pouco antes dessa reunião — revelou Lodrovi. — A verdade é que não há homens mais qualificados para capturar a garota. Vocês falharam da primeira vez, mas garantimos que a República e seus empregadores na Companhia Noligre os perdoarão se a trouxerem para nós.
— Capturar a pirralha? Nós dois? Sozinhos? — Tevoul perguntou.
— Melhor do que a guilhotina, não acha? — ironizou Tiso.
— Não estarão sozinhos. Terão companhia nessa missão para auxiliá-los — explicou o general. Ele dobrou a cabeça para a direita, encarando um casaca colorada. — Darapo!
O homem na porta da parede à direita do general a abriu, o ranger indicando a falta de óleo nas dobradiças. Cinco soldados saíram do cômodo vizinho, trazendo consigo duas pessoas, ambas amarradas.
O primeiro, de cabelo espetado e olhos castanhos, era facilmente identificável pelo uniforme vermelho bem mais enfeitado que o de um regular. Um oficial. Estava arranhando os dentes de raiva, mas continha-se.
A segunda pessoa era uma moça de cabelos ruivos. Vestia uma camisa branca que contrastava com seu pelerine¹ e saia pretos. Por algum motivo, estava vendada. Não aparentava ter mais de trinta anos. Mesmo que seus olhos estivessem ocultos pela faixa de pano branco, o nervosismo em sua face era evidente.
— Esta será vossa equipe — disse Lodrovi. — Este cavalheiro uniformizado é Nico, um ex-major do Exército Republicano. Ele se meteu em maus lençóis, assim como vocês. A vendada é Marí, uma feiticeira do Sindicato, uma organização criminosa que ensina magia sem autorização da Igreja de Kolur. É uma ilusionista da Visão.
— Daremos a vocês uma boa quantia em dinheiro, comida, água, munição, armas brancas, uma carroça com um bom cavalo e uma escolta até que cheguem perto de Gurvralo. Depois estarão por conta própria — explicou o general.
— Além disso — o velho cônsul completou —, entregaremos uma lista de homens de confiança da República. São espiões, guerrilheiros e intelectuais que nos apoiam em território inimigo. Caso capturem a Filha de Kolur, vocês deverão entregá-la a eles e esperar até que o grosso da força do marechal complete a conquista do inimigo. Todos usam pseudônimos e endereços falsos, além de estarem com sua segurança redobrada. Então, mesmo que vocês tentem denunciá-los para que Nasti os ajude, saibam que será em vão.
— E quem te garante que vamos obedecer? — Tadeu ergueu sua voz. — Nós quatro podemos pegar essa carroça e fugir.
“Quão ingênuo…”, pensou Rovibar. Um sorriso de canto surgiu, zombando da ideia do soldado traidor.
— Bem, a família de Marí está presa por uma das leis contra agitadores da coroa. Ela precisa de nós para vê-la outra vez. Já Nico tem duas opções: a corte marcial da República, já que ele é um dissidente, ou ser capturado e morto como um traidor pela coroa — respondeu o comandante.
Ao ouvi-lo descrever sua situação, o oficial Nico rosnou. Ao contrário da ira controlada de antes, ele quase saltou em direção ao homem, sendo barrado pelos guardas que o seguravam.
Após a curta cena, mostrando decepção com a selvageria do prisioneiro, Tiso se levantou da cadeira e rumou para a dupla, rodeando a mesa com elegância. Ao chegar perto de ambos, ficou atrás dos mercenários de tal maneira que só poderiam ouvir sua voz.
— Já vocês… — falou com mansidão, pondo sua mão sobre o ombro esquerdo de Tevoul — não têm para onde fugir. Estarão longe de casa e em terra estrangeira.
Os soldados pareciam nervosos com a presença do jovem revolucionário, que pôs sua cabeça entre eles para que ouvissem suas palavras diretamente em seus ouvidos.
— E quando vencermos a guerra — continuou —, porque nós vamos vencer, não será difícil achar dois vagabundos que dormem na sarjeta e que falam a língua do Sul. Não acham?
O sangue dos dois ferveu. Tinham ouvido sobre liberdade, igualdade, união e oposição à tirania, mas desconheciam o lado mais sangrento da República. A república que deseja o melhor para todos, mesmo que ao preço de alguns.
— “Liberdade aos que precisam, morte aos que se opõem”, rapazes. Esse é o lema pelo qual vivemos, e vamos mantê-lo.
— Não há escolha para ninguém aqui — disse Rovibar. — A única chance de vocês é capturar a garota ou irão à guilhotina.
Os dois mercenários assistiram Tiso retornar para a cadeira. Eles se entreolharam com as faces sérias, em um semblante estático e carente de socorro. Não havia outra opção além da missão suicida.
Tadeu encarou os prisioneiros que seriam seus companheiros. A moça, mesmo que vendada, parecia confusa e assustada. O oficial parecia conformado com seu destino, mesmo que quase tivesse atacado os líderes da República.
Ao seu lado, Tevoul mostrava uma faceta abatida. O peito do mercenário apertou ao notar o que significava aquele olhar sem peso ou vigor. O ruivo não se importava com seu destino. A responsabilidade da escolha passou a estar totalmente com ele.
— Que seja. Nós iremos. — O mercenário já parecia arrependido.
— Bom que escolheste corretamente, jovem Tadeu — disse o general. — Amanhã vocês partem para Gurvralo. Boa sorte.
Rovibar acenou para um dos soldados em vermelho, que devolveu o gesto com uma saudação. Os quatro casacas coloradas agarraram cada braço dos mercenários, acompanhados pelos outros cinco republicanos que traziam o resto dos prisioneiros.
Aos poucos, o grupo se retirou do recinto. Os últimos dois soldados puxaram as portas de madeira, fechando a sala. Com o choque entre as duas partes da entrada, Lodrovi, Tiso e Rovibar quebraram a postura implacável do “julgamento”.
— General — Tiso soou preocupado —, nós ao menos temos alguma pista da garota além de “ela foi na direção de Gurvralo”, certo? Porque, caso contrário, não vejo como esses quatro vão achá-la.
— Uma das pessoas que estava com a menina era uma mulher do Sul. Jovem, de seus vinte e poucos anos. Provavelmente não fala nossa língua tão bem, então é quase certo que ela vá em algum gueto da cidade, especificamente os que possuem gente do Império.
— É uma boa suposição, Rovibar, mas não apresenta nada de concreto. Eles estarão em território inimigo, então toda informação vai ser dada aos monarquistas, não a nós.
— São os guetos de Gurvralo, Tiso — Lodrovi se intrometeu. — Já estive lá e posso dizer que não existe lealdade a ninguém ali. Aquelas pessoas vivem na miséria e na boêmia há tanto tempo que já se esqueceram até que existe um governo e deuses, é como se o próprio Faor tivesse os deixado.
— Isso não resolve o problema, só cria outro.
— Verdade, mas, pelo menos, as nossas chances e as dos monarquistas serão iguais. Só espero que esses quatro tenham o mínimo de bom senso naquele lugar. A propósito, general — Lodrovi focou sua atenção para Rovibar —, alguma notícia de Juno?
— Na última carta que li, ele me disse que a ofensiva não estava indo tão rápido quanto gostaria. O general Levefder está se mostrando um comandante hábil, realizando ações de atrito na retaguarda. Mas Juno me garantiu que isso é temporário e que em breve conseguirá uma batalha decisiva contra as forças de Garuín.
— “Forças”, você diz. Aquele moleque não possui força alguma, é só um fantoche de Poluvín. Como sempre, Gilina tentando tomar o que não é seu. Nós deveríamos ter repartido aquele lugar com Gomenir, a Hária e a Cistarra na guerra do Intocável assim que soubemos da morte do maldito Carasovi.
— Deixe a discussão histórica para os historiadores, Lodrovi. A paz de Augemound foi há quase três séculos.
— Três séculos em que poderíamos ser livres desse espírito imundo, general.
— De uma forma ou de outra, Garuín é uma realidade. Para nos livrarmos da monarquia, precisaremos nos livrar de ambos que querem a coroa.
Os dois cônsules continuaram a conversa com o general, tocando nos mais diferentes assuntos, fossem políticos, militares, diplomáticos ou religiosos. No fim, era tudo o que poderiam fazer. Restava saber se o grupo de Tevoul e Tadeu faria algo mais.
***
Do lado de fora do palácio, Tadeu, Tevoul e seus dois novos companheiros eram levados feito criminosos para uma carroça coberta, sua nova casa. Um dos soldados, o cabo Laviel, permitiu-se apresentar os itens no interior do veículo.
— Aqui estão todos os suprimentos e informações que podemos dar a vocês. De agora em diante, a República só oferecerá uma escolta até os entornos de Gurvralo — explicou.
Os outros soldados desamarraram o grupo enquanto o homem os instruía. Também removeram a venda da moça, revelando sua particularidade.
“Os olhos dela são de cores diferentes?”, indagou Tadeu ao ver que o olho direito da mulher era verde, enquanto o esquerdo era vermelho.
Enquanto admirava a heterocromia da estranha, o mercenário demorou para notar a aproximação de um conhecido. Ao percebê-lo, reconheceu de imediato a imagem do capitão Cefas. Sua face era séria, mas demonstrava uma estranha preocupação.
— Capitão — disse surpreso —, o que quer de mim?
— Garoto, não tenho muito tempo, mas vou te pedir uma coisa.
“Acho que é um pouco tarde pra pedir, não acha, Cefas?”, ironizou em sua mente. Quanto mais gente da Noligre passava em sua visão, mais sua indignação crescia com a injustiça que sofreu.
— Pode falar.
— Como eu já disse, eu acredito em você. Conheço Leto e sei que não é flor que se cheire. Mas você é diferente. Você é um soldado excepcional, um mercenário digno do nome da Noligre.
— O que quer dizer com isso, Cefas?
— Eu tenho certeza que você pode trazer a menina de volta, Tadeu. Traga ela e restaure sua honra que eu te receberei de braços abertos.
O soldado ficou mexido. As palavras do capitão eram consoladoras e o motivariam em outras circunstâncias, mas a situação o fazia fraquejar. Sabia que voltar com vida da missão era uma tarefa impossível.
Contudo, desde sua captura, sentiu que ainda havia uma chama clamando para que prosseguisse. Um calor forte, empurrando-lhe a uma jornada que começaria após seu retorno. Um novo objetivo bem maior que as glórias e as medalhas que lhe foram arrancadas. Fazer justiça. Ou melhor, por um fim na sua ausência em um certo líder de esquadra mercenário.
— Diga-me, soldado, você me promete que retornará?
Tadeu pensou em uma resposta. Com os olhos determinados e prontos para o futuro, encarou o oficial.
— Diga a Leto que eu voltarei. Voltarei nem que eu tenha que trazer as legiões do Desalmado comigo.
— Era isso que eu queria ouvir, moleque — Cefas respondeu com um sorriso.
Notas do Autor
¹Pelerine: Peça de roupa similar a um sobretudo, porém que só cobre até o cotovelo.