A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 21
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- Capítulo 21 - Um velho general na batalha de Tova
O frio vento era forte o suficiente para arrancar os bicórnios dos comandantes republicanos, obrigados a segurar seus chapéus. O cheiro da grama molhada pelo orvalho e o clima nublado indicariam uma chuva aproximando-se, mas Juno e seus generais haviam visto esse teatro enganoso antes. No máximo, uma curta garoa.
O marechal analisava os regimentos de infantaria leve garuístas que tentavam atrasar o avanço da sua força. As ações de retaguarda dos gravatas azuis retardaram a coluna colorada por quase uma semana, demora que seria perigosa para os cercados em Bulirka.
— Maldito Garuín, senhor! — disse o general Danilki a Juno. — Desde que seus capachos apareceram, só conseguimos marchar trinta quilômetros por dia. Saravi terá que aguentar mais que o previsto.
— Ousado da sua parte pensar que isso é coisa de Garuín — Kurco intrometeu-se. — Isso é coisa de Levefder. Provavelmente o único general decente que foi burro para se aliar ao príncipe mimado.
Os cinco comandantes estavam no alto de um morro, acompanhados por uma pequena escolta de carabineiros. De lá, tinham uma excelente visão do campo de batalha.
No flanco esquerdo, existia um bosque que descia da posição do Exército Republicano à planície que antecedia a vila de Tova. Era denso, com árvores em cada metro, mas todas de caule fino e reto, tornando o bosque um obstáculo menos formidável do que aparentava.
Ao meio, uma estrada de terra simples cortava o campo. Seria proveitoso para a cavalaria, porém os canhões montados nas trincheiras ao redor do vilarejo impediam que os ginetes atacassem sem serem moídos por munição do tipo metralha.
No flanco direito, descia um rio represado, criando uma barreira adicional para os soldados. O reservatório era perigosamente próximo a vila, de tal modo que uma simples chuva de verão poderia alagar o lugar.
“Que tipo de idiota planejou esse lugar?”, pensou Juno.
A força garuísta era bem menor do que a republicana — algo de dois para um —, mas as condições do campo de batalha forçaria os colorados a sofrerem baixas consideráveis. Sem saber como quebrar o impasse, os revolucionários se limitavam a bombardear o inimigo.
— Devemos ignorá-los, senhor — falou o velho general Madro. — É melhor dar a volta e marchar mais ao oeste, depois ao sul e então para Bulirka.
— A última junção de estradas foi a quinze quilômetros — respondeu o marechal —, teríamos que marchar o dobro disso para chegar na mesma distância de agora, perdendo um dia inteiro de avanço. Isso enquanto torcemos para que Levefder não faça outro bloqueio.
— Conseguimos marchar mais que esses frangalhos — insistiu Madro. — Nossos homens são soldados jovens e aguentam andar um pouco mais do que o de costume.
— Uma marcha forçada só vai cansar os soldados e causar atrito. Não quero metade dos soldados doentes antes de vermos os muros de Bulirka.
Madro expirou e desviou o olhar, na esperança — bem-sucedida — de que Juno visse sua indignação.
Restava encontrar uma solução. Com sua luneta, o comandante republicano analisou bem as trincheiras inimigas, em busca de um ponto fraco. Eram formidáveis. Um fosso de três metros antecedia o muro de terra, preso por paliçadas de madeira. Soldados e artilharia preenchiam cada metro da fortificação.
Porém, mesmo que as trincheiras fossem firmes, dependiam da falta de arrojo do comandante adversário. Não era o caso de Juno.
— Esse bosque — apontou — é bem denso. Acho que o inimigo não verá uma força pequena, dois ou três batalhões. Talvez uma bateria de artilharia.
— Parece um bom plano — concordou Danilki —, o inimigo fortaleceu apenas o centro, está contando com o rio e o bosque para guardar os flancos. Só precisaremos ser rápidos o suficiente para que não tenham tempo de chamar reforços.
— Madro liderará o ataque. O I Corpo deve atacar com batalhões em coluna, enquanto um de seus regimentos desviará para o bosque e acertará o inimigo num martelo¹. — Juno fazia gestos, contornando sua mão esquerda com a destra, em imitação ao golpe de flanco. — Depois, Madro avançará em direção ao rio, partindo-os em dois. Favrilo e Danilki deverão fixar o resto da força adversária no centro e na esquerda. — O marechal procurou por Kurco. — O Corpo de Cavalaria?
— Ainda está longe — respondeu com desgosto. — Vamos precisar de mais algumas horas.
— Então não teremos como persegui-los — ele lamentou. Estava genuinamente frustrado.
— Queres metade do exército inimigo, marechal. Não acha que querer o resto é muita ganância?
Quebrando o decoro, os generais permitiram-se curtas gargalhadas. Até mesmo o marechal, sempre sério e reservado, exprimiu um sorriso no canto da boca.
— Não é por ganância, Kurco. Muito pelo contrário. É para acabar com ela o mais rápido possível.
A força comandada por Madro partiu às onze e meia da manhã para enfrentar o flanco direito inimigo. As árvores dificultavam o caminho. Os soldados em uniformes vermelhos eram forçados a quebrar a formação, marchando mais como infantaria leve do que na linha tradicional. Enquanto isso, os canhões precisavam executar desvios constantes ao redor da vegetação, deixando a artilharia perigosamente para trás.
O general usava usava seu sabre como ponteiro² para a tropa. Em meio a gritaria, lembrou do dia que o ganhou: era uma cerimônia especial na qual ele e outros quatro receberam a promoção para major-general de Leifas. A espada foi entregue pelo marechal hussardo Hujore, na época o líder da Ordem dos Cavaleiros de Erinovi, a força de cavalaria mais tradicional e temida de Leifas.
O rei Grozyr havia marcado presença, contudo acabou por faltar ao evento. Às vezes, Madro se questionava se fora o idealismo republicano ou a ofensa do monarca que o fez escolher os lutar pela revolução. Talvez fossem ambos.
Um disparo ecoou pelo bosque, fazendo os soldados cortarem a marcha. Logo em seguida, dúzias de balas riscaram o ar do pequeno bosque. Madro sabia bem o que era aquilo: os soldados da vanguarda haviam contatado o inimigo.
— Nós os encontramos, senhor — disse Rasupen, o coronel do 14º Regimento, que acompanhava o general como o segundo em comando.
— Percebi — respondeu Madro, olhando para trás. — Ordene que o 1º Batalhão tome a direita e o 2º a esquerda. O 3º ficará na reserva.
O coronel acenou com a cabeça e correu para as fileiras, gritando ordens aos subordinados. Os batalhões formaram-se em linha, tentando manter-se ombro a ombro enquanto desviavam das árvores.
Madro procurava um sinal do inimigo em meio as árvores quando viu um soldado de uniforme e calças cinzas se aproximar. O rifle de cano curto e o uniforme menos chamativo denunciavam um caçador da vanguarda.
— Senhor, senhor! — gritava o soldado, enquanto tentava não se desequilibrar no terreno acidentado.
— Fale! — disse Madro, notando seu desespero. — O que houve!?
— Os garuístas estão avançando!
— Onde? Em que número?
— Na nossa direção! Uma brigada inteira!
— Uma brigada!? — O general se espantou enquanto o tiroteio crescia em intensidade. — Onde estão os malditos canhões!?
Ele procurou alguém que respondesse sua pergunta. Sem sucesso. Olhou para trás, buscando suas seis bocas de fogo, encontrando-as no topo da colina em meio as árvores.
— Rasupen! Rasupen! — gritou o general.
— Estou aqui, senhor! — respondeu o coronel do 14º. — O que deseja?
— Por que os canhões ficaram presos no caminho?!
— O terreno é muito acidentado, general — explicou. — Os artilheiros precisam desviar toda vez que encontram um caminho menor que as rodas do canhão.
O general socou uma árvore à sua direita, provocando um salto no coronel. Ele pensou no que poderia fazer. Um regimento contra uma brigada era uma luta de dois para um, quando não três. Precisava de poder de fogo. Ele olhou para o alto do morro, onde suas bocas de fogo ainda desviavam da vegetação.
— Onde estão os sapadores?
— Estão na reserva com o 3º Batalhão, general. Acredito que eles não ajudarão.
— Cuide do resto do regimento, coronel — disse em um tom claro. — E não ceda um mísero centímetro enquanto eu não voltar. Nenhum. Maldito. Centímetro.
O oficial sequer pensou em uma resposta quando Madro se virou e lançou-se em busca do terceiro batalhão.
O general escalou o morro em um ritmo quase que de corrida, apesar da sua idade. Apoiava-se nas árvores ao seu redor e puxava-se, quase como se quisesse saltar em direção à tropa de reserva.
Ao chegar na posição do 3º Batalhão e dos sapadores, o comandante chamou cerca de sessenta homens, todos de grande estatura, cada um carregando pás ou machados, para ajudá-lo. Sob suas ordens, o grupo criou um cinturão de homens que ia da primeira peça de artilharia até os dois batalhões na frente.
— Cortem todas as árvores daqui até o 1º e o 2º. Esses canhões precisam chegar lá em baixo em quinze minutos, entenderam?! — gritou Madro, com sua voz quase falhando.
— Isso é impossível, senhor, é muito longe! — disse um deles.
— Impossível será você falar depois que eu arrancar sua língua! Têm quase mil soldados lá embaixo dando sangue e suor e que vão ser trucidados se a merda desses canhões ficarem aqui. Só por isso, agora eles chegam em dez!
O grupo arregalou os olhos para o general, sem reação. Madro tomou o machado das mãos de um dos sapadores e começou a derrubar a primeira árvore que encontrou. Após três golpes, gritou:
— Vão me fazer derrubar o caminho sozinho!? Movam-se!
Sob sua voz furiosa, cada soldado correu na direção de uma árvore. Com todos os tipos de ferramentas disponíveis, o grupo iniciou a remoção de cada obstáculo, pedra e árvore no caminho para a frente de batalha.
A pequena estrada tomava forma a medida que cada árvore era posta ao chão. Com o novo caminho, os canhões desceram o morro mais rápido que antes, aproximando-se dos dois batalhões em uma velocidade incomum para o terreno.
A essa altura, os gritos dos oficiais e os estampidos dos mosquetes já eram indescritíveis de uma grande batalha. À direita da tropa, os outros dois corpos republicanos trocavam disparos com as tropas entrincheiradas. Uma distração. Tudo parte do plano do marechal.
O trabalho para abrir caminho continuou até a última árvore ser posta ao chão. Quando ela tombou, o general olhou seu relógio. Oito minutos. Madro guardou o aparelho e disparou em busca dos dois batalhões, ambos já cobertos pela fumaça do combate.
As linhas se alternavam entre disparar e recarregar as armas. Os voleios de mosquete estalavam pela floresta a todo instante, a pólvora fazendo o bosque feder a enxofre. Era como se o inferno tivesse se tornado verde.
— Rasupen! Rasupen! — gritou o general, não conseguindo pronunciar a última sílaba.
— Senhor! O que desejas?
O general exalou seu ar, cansado da corrida. Depois, olhou no fundo dos olhos do subordinado, quase o partindo ao meio.
— Aquela árvore — apontou furioso — estava alinhada com o 1º Batalhão! Você fez a droga do regimento recuar!?
— Não, senhor! — Sua cara gritava medo. — O senhor deve ter confundido a árvore!
Rasupen mentiu. Ele havia ordenado um retrocesso de dois passos para melhor coordenar as tropas no calor da batalha. Ainda sim, preferiu não questionar o general.
— Que seja! — O general não conseguia se manter parado. — Mande o 3º Batalhão contornar pela esquerda e flanqueie o inimigo!
— Eles estão em maior número, senhor, os gravatas azuis perceberão esse movimento!
— Quem não vai perceber o movimento é sua esposa quando eu te esfolar e você voltar morto no caixão! Apenas faça o que estou mandando, é tão difícil assim?!
Cabisbaixo, Rasupen assentiu e se retirou da presença de Madro.
— Artilheiros! — Continuou com seus gritos, quase sem voz em meio aos tiros incessantes. — Três posições, dois canhões em cada: uma na esquerda, uma entre o 1º e o 2º Batalhão, a última na direita. Esperem ao máximo pelos bastardos e não disparem outra coisa além de metralha. Agora!
— Sim, senhor! — os soldados da bateria responderam.
Em pouquíssimo tempo, os canhoneiros arrastaram as peças às posições determinadas pelo general, formando um crescente de soldados e canhões.
O fogo de mosquete era intenso, a neblina do fogo ascendendo acima da copa das árvores, tão espessa que mal se podia ver o inimigo. Salvo após salvo, soldados recarregavam suas armas a medida que caiam, em uma disputa mortal entre atirar e morrer.
Os garuístas se moviam lentamente, cada passo do avanço lhe custando dezenas de vidas. Usavam os mesmos uniformes brancos dos soldados alvirrubros de Nasti, porém sem as lapelas vermelhas e com um lenço azul-claro em volta do pescoço, o que os rendeu o apelido de “gravatas azuis”.
Eram em sua maioria recém-recrutados. Sua inexperiência ficava evidente ao ver que os garuístas disparavam dois voleios a cada três colorados. Mesmo assim, a massa de gravatas azuis era muito maior que a republicana. Em algum momento o 14º Regimento não teria mais munição para conter o inimigo.
A marcha dos garuístas prosseguiu até chegarem a cerca de cinquenta metros dos colorados. Fogo de mosquete se tornava mais letal a curta distância, fazendo linhas inteiras se dilacerarem em um único rugido das armas.
Enquanto o inimigo chegava, a artilharia preparara sua surpresa. Em vez do tradicional pelouro redondo de metal, os canhões foram carregados com um cartucho que mais se parecia com um cacho de uvas amarrado entre duas rodelas de madeira. Metralha.
Madro parou ao lado de um dos canhões do centro. Ele viu o artilheiro pôr a munição na boca de fogo com cuidado enquanto outro, com um soquete, empurrou o cartucho para dentro. Outro canhoneiro ajustou a direção do disparo, girando a manivela com toda sua força.
Enquanto isso, um quarto segurava o bota-fogo na parte de trás do canhão, aguardando a ordem. Madro o encarou e, sem esperar pelo oficial da artilharia, bradou:
— Fogo!
O soldado encostou o bota-fogo contra a peça, fazendo-a rugir em meio as árvores, saltando para trás com o poderoso recuo. Dezenas de projéteis voaram do cano da arma em direção ao inimigo, rasgando homens como se fossem de papel.
Os outros canhões repetiram o estrago enquanto cuspiam fogo. Linhas inteiras de soldados se transformaram em mortos, projetando uma névoa vermelha em meio ao cinza da fumaça.
Os artilheiros se esforçaram para recarregar: Saca-trapo. Lanada. Pólvora. Metralha.
— Fogo!
Outra companhia de gravatas azuis conhecia o mesmo destino da anterior. Gemidos agonizantes de feridos clamaram por piedade na carnificina, mas lamúria alguma seria atendida.
— Fogo! — Os caídos soavam como um coro dos condenados ao inferno.
Antes que pudessem reagir aos canhões, mais gravatas azuis tombaram, atingidos por saraiva à sua direita. Do lado esquerdo colorado, erguendo-se das árvores, estava Rasupen, brandindo seu sabre no ar. O 3º Batalhão havia chegado.
“Finalmente”, pensou o general Madro. “Hora de fazê-los conhecerem o Submundo!”
— Soldados — gritou o general —, baionetas, calar baionetas!
Os canhões cessaram. Cada um dos soldados colorados içaram suas setas na ponta das suas armas, esperando o comando.
De repente, um silêncio inusual. Madro sorriu. Era hora de fazer esses vermes provarem do que era feito um homem em uniforme vermelho.
— Tamboreiros — gritou o general, desembainhando a espada —, passo de carga!
Os tambores soaram. Um grito de guerra feroz se ergueu pelas fileiras do regimento. Como uma onda de um mar em tormenta, os soldados saíram de suas linhas, erguendo-se em uma avalanche na direção do adversário.
Os garuístas carregaram suas armas com pressa vinda mais do medo que da coragem. Uma salva contra os republicanos tentou pará-los, pondo alguns ao chão, mas o mar de carne e metal não cedia, engolindo cada metro de terreno pela frente. Não havia mais nada a fazer.
— Recuar! — gritou um oficial garuísta, em desespero. — Soldados, recuar!
Homens fugiram em pânico enquanto eram caçados por impiedosos ceifadores em vermelho. A linha dos gravatas azuis se desfez, deixando no campo de batalha vergonha e comida para os abutres.
Notas do Autor
¹Bigorna e Martelo: Juno se referia a tática de Bigorna e Martelo. Trata-se de uma manobra onde uma parte do exército (geralmente a maior) luta contra o principal elemento inimigo, fazendo o papel da “bigorna”. Enquanto isso, um destacamento menor, geralmente cavalaria, contorna o adversário e o acerta pela retaguarda, sendo “o martelo”. Um bom exemplo histórico é a batalha de Zama na Segunda Guerra Púnica.
²Ponteiro: um tipo de bastão usado pelos professores no passado, servia para (acreditem ou não) apontar para determinadas partes do quadro negro.