A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 20
Luci pôs a menina por trás de suas pernas. Sem pestanejar, arrancou a pistola de Astovi da cintura e a apontou para o sujeito.
Porém, Tadeu pediu para que ela baixasse a arma. O soldado tomou o braço direito de Leto e o encarou com a face séria. O cabo parecia não se importar, mostrando um sorriso que só a escória da terra era capaz de produzir.
— “Matá-la”, Leto? Essa não são as ordens que temos do Conselho Republicano!
— O Conselho é para os leifaneses, eu sou do Império. — Ele libertou seu braço com brutalidade.
Tadeu não sabia como agir. Ele queria o praça longe da menina. Além disso, matá-la era contra as ordens recebidas pela Noligre, que ainda detinha a dívida da captura do frade e da garota ao regime republicano.
— Não vou deixar você tocar nela.
— “Não”, Tadeu? Desde que eu me lembre você não possui patente suficiente para dar ordens a mim.
— Você é um cabo. — Sua voz soou tão clara quanto ríspida. — Só vou deixá-lo perto dela quando o capitão chegar.
O mercenário teve um lapso de consciência naquele momento. Percebeu que, ao falar aquilo, estava cruzando um ponto sem retorno.
— Ela matou seus companheiros…
— Foi o frade Astovi que fez aquilo, Leto.
— Ela envergonhou a honra da nossa companhia…
— Leto, não.
— Ela é um demônio!
O silêncio surgiu após a palavra “demônio”. O cabo estava furioso. O rapaz mostrou um olhar perdido, mas manteve-se em sua posição, sem deixar que o superior se aproximasse de Igri.
Leto expirou, acalmando-se. Precisaria gastar saliva para que seu subordinado colaborasse.
— Soldado — falou em uma voz conciliadora —, entendo sua indignação.
“Tem coisa aí, Leto não é de falar nesse tom.”
— Você não quer desobedecer às ordens dos superiores, certo? — Tadeu respondeu que sim. — Só que “acidentes” podem acontecer. — O homem gesticulava enquanto o contornava, a fim de ver a menina. Luci se manteve à frente de Igri. — Na verdade, acontecem o tempo todo!
— Desembucha, Leto — falou Tevoul, com o mosquete apontado para o homem.
— Abaixe essa arma, soldado. — O ruivo obedeceu, mas manteve-se pronto. — O que estou dizendo é que a garota poderia ter atacado nossa esquadra de novo, obrigando nossos homens a usar da força. Tragicamente, a força foi… exagerada.
— Você quer forjar um combate para se safar? — Tadeu se enojou.
— Se é assim que entende melhor, então sim. — Apesar de tentar dissuadi-lo, era óbvio que o cabo era incapaz de ludibriar o rapaz. — Vamos, soldado. Ela matou seus irmãos de farda. Você nem a conhece! Não há motivos para proteger essa pirralha.
Estava claro que não existia intenção de obedecer às ordens do Conselho por parte do sujeito.
— Desculpa, Leto, mas só responderei a Orleno, Doni ou Walifer.
O cabo viu seu soldado novamente se pôr entre ele e Luci. Em altura, Leto não mal chegava em seus ombros, mas a disputa era acirrada em orgulho.
— Acha mesmo que aquela medalha muda alguma coisa?
Tadeu levantou uma sobrancelha, confuso. Sua mente falhou em captar onde Leto queria chegar.
— Sabe por que Cefas deixou você ganhar aquela medalha? Para satisfazer os soldados. Homens como você não são nada além de jumentos que precisam ser postos cabrestos para obedecer. E, se quiserem se rebelar, basta dar uma esmola de reconhecimento.
O soldado rosnou. A provocação feriu seu orgulho de tal modo que ele voaria para o pescoço do cabo a qualquer instante. Ele olhou para Tevoul, que balançava a cabeça em negação.
— Depois, quando não servem mais… Basta descartar.
Foi como uma adaga em seu peito. Naquele instante, notou dois mercenários da sua esquadra se aproximarem, ambos cercando o líder da formação.
— O que houve, cabo? — um deles perguntou.
— Eles não querem entregar a menina. Estão tentando…
— Mentira! — ele protestou. Os dois soldados levantaram seus mosquetes para proteger Leto.
— Não levante a voz contra mim, traidor! Vocês não serão perdoados por isso!
Sob a mira de duas armas, era impossível escapar. Tadeu se virou para Luci com o rosto sério.
— Quando tiver a chance, corra — falou cochichando. Nervosa, a mulher acenou, dizendo que sim.
— Vamos logo, soldado! — Leto provocou, chamando sua atenção. — Será que…
O punho do rapaz chocou-se com a bochecha esquerda de Leto, lançando-o no chão. Tadeu pulou em cima do mercenário caído e lhe desferiu uma sequência de socos no rosto.
Os dois soldados tentaram pará-lo, agarrando-lhe pelos braços. Ele libertou a canhota, agarrou o capacho de Leto à sua esquerda pela gola e o arremessou contra o outro, libertando-se por um instante.
Olhou para trás. Luci e Igri fugiam por uma viela, sem ninguém as perseguindo.
Distraído, não notou o chute de um dos soldados que derrubou, acertando sua costela e colocando-lhe no chão. Instantes depois, outra dupla chegou no perímetro, rendendo Tevoul sem uma luta.
Leto se ergueu após o soldado lhe atacar. Mesmo que não tivesse os quebrado, acariciou o queixo e o nariz, o último jorrando sangue. Avançou com pressa até o mercenário rendido por dois e lhe chutou o estômago, derrubando-o novamente. O cabo estava de novo no comando.
Leto o golpeou sucessivas vezes contra a barriga, fazendo o soldado golfar na última. Tevoul tentou ajudá-lo, mas foi posto ao chão pelos seus captores. Tadeu estava só.
— Quem você pensa que é, imprestável?!
— Vai… Vai pro inferno — ferido, o soldado balbuciou.
O cabo deu um passo para trás, tomando impulso. Com toda sua força, chutou o rosto do mercenário, que desmaiou.
***
Minutos se passaram. Tadeu ainda estava tonto, mas aos poucos recobrava a consciência. A dor do chute pinicava por toda sua cabeça, latejando feito no dia que escutou o gritar da aranha em Jorodar.
O barulho da conversa agitada em sua frente era incompreensível, mas ainda foi capaz de reconhecer as vozes. Coronel Walifer e capitão Cefas.
“Merda… Estou ferrado.”
— Mas não conseguiram nenhum rastro dessas duas? — perguntou o oficial mais velho.
— Não mesmo, coronel. A mulher é uma dessas bandoleiras que andam sem destino, sumir é a especialidade dessa raça — o cabo respondeu. Ao olhar para o lado, notou o rapaz recobrar os sentidos. — Veja, o traidor acordou.
Tadeu estava com os olhos entreabertos, ainda grogue. Sentiu o sangue escorrer pelo nariz, mas não pôde limpá-lo. Suas mãos e pés estavam amarrados.
Por instinto, procurou por Tevoul. À esquerda do rapaz, seu colega também estava enlaçado, porém menos abatido que ele.
— Soldado Tadeu — disse Cefas, aproximando-se. — Pode me explicar o que aconteceu aqui?
— Estás sendo acusado de traição. Existem testemunhas, então não tente negar seu crime — falou Walifer.
O mercenário procurou por Leto, com seus olhos furiosos. Ao encontrá-lo entre os dois oficiais, sentiu uma chama em seu peito o empurrando na direção do homem.
— Você… — Tentou atacar Leto, mas as amarras o derrubaram antes que se pusesse de pé.
— Nós te fizemos uma pergunta, soldado. — Walifer se pôs entre os dois.
— Leto queria matar a garota, eu o impedi!
— Sandice! Meus homens estavam comigo e podem desmentir esse traidor.
Walifer e Cefas olharam para o quarteto que acompanhava o cabo. Sob o olhar dos superiores, mostravam uma ansiedade estranha. Sempre que um dos oficiais fitava um soldado, esse baixava a cabeça, como uma criança que desobedeceu aos pais.
— Quando chegamos, Tadeu estava impedindo que o cabo capturasse a garota — falou um deles.
O rapaz rendido encarou o colega de esquadra com a testa franzida, deixando-o pálido. Somente as cordas o seguravam de fazer uma loucura.
O capitão desconfiou. Por mais que a história do cabo pudesse ser verídica, algo estava solto. Seus soldados estavam acanhados, como se estivessem incertos da verdade. Reação estranha para quem teria presenciado toda a ação.
“Você não me engana, Leto”, concluiu o capitão. Mas, ao olhar para o soldado, sabia que seu destino estava selado. “Uma pena que o Conselho Republicano nunca vai acreditar nisso.”
— Leto é um membro valoroso da Noligre, soldado — disse Walifer. — Ele tem testemunhas, então sua acusação não vale de nada.
— Cefas… — Tadeu o chamou ao ver seu olhar desesperançoso.
— O Conselho não vai acreditar nessa história, soldado. — O oficial matou sua última esperança.
Leto se viu sob o olhar penetrante do capitão. A expressão séria e enojada de Cefas deixaram claro que ele acreditava no soldado, por mais que suas palavras fossem sutis.
— Peguem o outro e me deixem a sós com Tadeu.
— Capitão, não ouça uma palavra desse…
— Leto. — Cefas quase explodiu, mas se segurou no último instante. Expulsou o ar do peito esse acalmou. — Apenas faça o que eu disse.
Sem alternativa, o cabo assentiu. Ele ordenou que seus homens tomassem Tevoul pelos braços e o levassem cativo, partindo com o coronel logo em seguida.
O capitão assistiu o grupo se afastar sem pressa alguma. Quando eles desaparecessem de sua vista, ele não teria nada a esconder. Voltou-se para Tadeu com um rosto sereno, mas preocupante.
— Eu acredito em você, soldado.
Tadeu se animou em um lapso de esperança. Ainda assim, a seriedade de Cefas mostrava que não seria tão fácil.
— Mas os republicanos nunca vão acreditar. Eles estão malucos demais pela captura da menina pra acreditar num soldado que supostamente os traiu. Entende?
Mesmo que não quisesse admitir, o soldado foi forçado a concordar.
— Espero que me perdoe, Tadeu. — Sua voz pesou.
***
Rovibar entrou no parlamento com espada desembainhada, acompanhado de cerca de vinte casacas coloradas. Os invasores estavam neutralizados ou presos, enquanto os deputados rebeldes estavam segurados pelos braços de granadeiros republicanos.
O palácio fora tomado. Como havia sido profetizado, uma tentativa de golpe na ausência de Juno. Por sorte, nenhum dos líderes republicanos estava morto.
— Senhor Rovibar. — Um oficial de barba castanha e espessa saldou o general, acompanhado por dois granadeiros.
— Brigadeiro Veranci — respondeu o general. — Detalhes, por favor.
— A deputada Bisa era apenas uma gota d’água num oceano de traidores. Eles reuniram uma parcela da população e nos acusaram de querer reestabelecer a monarquia, provocando a massa a tentar tomar o poder à força. Por sorte, não conseguiram muitas armas, enfrentamos uma multidão de revoltosos despreparados. O plano era prender Tiso e Lodrovi aqui, mas os dois haviam saído antes do previsto.
— Estavam na minha casa. — Podia-se perceber a voz de Rovibar se tranquilizar. — Decidiram me informar de algumas coisas lá justamente por medo disso. Não sei se foi sorte ou gênio da parte deles, pra ser sincero.
— Também encontramos vestígios de participação de tropas monarquistas, bem como de alguns oficiais inimigos. O golpe também teve dedo dos miseráveis.
— O parlamento republicano que queria depor o Conselho por autoritarismo pediu ajuda à filha do tirano? — O general falou alto para ter certeza que os deputados ouvissem o quão irônico soava.
Ele se aproximou de um dos deputados mais agitados, segurado por dois granadeiros enquanto tentava se livrar. Esforço inútil, considerando o tamanho dos dois brutamontes.
— Me soltem, traidores! — gritava o jovem político. — A República os levará à guilhotina!
“Irônico”, pensou o comandante. Quase riu. “Desejas aos outros o que acontecerá contigo.”
Com a situação sob controle, o general teve que esperar cerca de uma hora para o retorno dos dois membros do Conselho, forçados a sair de Carasovralo por conta do levante. Lodrovi e Tiso chegaram com uma escolta pouco menor que a de Rovibar. Era visível que a dupla estava temerosa, mesmo acompanhados por uma dúzia de soldados e com a garantia de segurança por vários oficiais do exército.
— Já identificaram os líderes disso, general? — perguntou Lodrovi, aproximando-se com as costas arqueadas de medo.
— As mentes por trás da tentativa de golpe aparentam ser o deputado Ofreve e a deputada Ekaterina, nenhum dos dois presentes aqui.
— Alguma chance de ainda estarem na cidade?
— Muito remota.
— Maldição! — O velho socou o vento, indignado.
— Não se preocupem, dificilmente eles serão uma ameaça agora que o plano falhou. Acho possível que eles tenham fugido para o leste, numa tentativa de se reunir com os monarquistas.
— Monarquistas? — espantou-se Tiso. — Eu não deveria estar surpreso, para ser sincero. Ainda há muitos lacaios da nobreza que se disfarçam de republicanos na esperança de saírem como heróis da coroa.
— Isso sem contar os inúmeros nobres que se dizem favoráveis à nossa causa. Muitos podem estar querendo uma chance para reclamar o trono — completou Lodrovi.
— É como tu dizes, general — falou o jovem Tiso. — “Lealdade é uma substância solúvel.”
Rovibar gesticulou, concordando com ambos. A República era um verdadeiro barril de pólvora na ausência do marechal Juno. O trio só desejava que fossem capazes de apagar todas as fagulhas antes de um desastre.
— Senhor Rovibar — falou um soldado, estendendo uma carta para o general —, mensagem do 3º Regimento Noligre.
Rovibar tomou a carta do homem e prontamente a abriu. Lodrovi e Tiso assistiram o general enquanto ele lia a mensagem. A curiosidade de ambos aumentou ao ver o homem se decepcionar.
— Do que se trata, general? — Tiso perguntou.
— Adivinhe? Mais acusações de traição. Aparentemente dois soldados da Noligre foram vistos ajudando revoltosos.
— Eles estão em maus lençóis.
— Mais dois para a guilhotina, então — Rovibar lamentou, tomando uma das cadeiras do parlamento.
Ao contrário dos seus dois companheiros de prosa, Lodrovi balançou a cabeça em negação. Sua face mostrava uma malícia esquisita, principalmente quando ele levou a mão ao queixo.
— Talvez nem tanto meu caro. Onde você vê traição, pode haver oportunidade.
Quase como se lesse a mente do cônsul, Rovibar entendeu onde o velho político queria chegar.
— Lembrei-me de algo. Não eram vocês que precisavam de soldados que já lutaram com a menina para capturá-la?
Lodrovi permitiu que um sorriso controlado se abrisse.
— Acho que não precisamos mais.