A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 16
Do outro lado da rua, revoltosos desordenados arremessaram pedras, tijolos e pedaços de madeira em qualquer um que chegasse perto da barricada. Soldados da Noligre os observavam em uma distância segura, às vezes ousando se aproximar.
— Mas que raios esse povo bebeu para ficar assim?! Aqui é a capital da República! — disse Cefas, próximo de Walifer.
Os mercenários estavam entrincheirados atrás de suas próprias paliçadas, muito menores que as dos rebeldes. Posicionavam-se a cerca de quatrocentos metros do inimigo. Walifer e Cefas, em cima de suas respectivas escadas, deixavam somente suas cabeças do lado de cima da proteção. Ambos tinham lunetas, caçando possíveis pontos fracos na fortaleza improvisada.
— Parece planejado, capitão. Esses miseráveis estavam esperando por nós.
— Merda… Alguma das ruas que levam até o maldito palácio está sem barricadas?
— Não mesmo, Cefas, todas as onze ruas bloqueadas. É possível que tenhamos que começar um sítio.
Tomando cuidado para não se desequilibrar, Orleno desabotoou duas casas do seu uniforme, o suficiente para passar sua mão. Tirou de lá um pacote de tabaco para mascar.
— E a artilharia divisionária?
— Ouvi dizer que estão a caminho, mas não devem chegar em menos de uma hora.
O capitão rosnou. Ainda levaria muito tempo. O Palácio Central, antiga Universidade da Oblast¹ de Carasovralo, era a sede da Duma² e do Senado, respectivamente as câmaras baixa e alta do governo da República. Haviam deputados e senadores no local quando os revoltosos iniciaram o levante. Seu resgate era prioridade máxima.
— Não temos tempo para esperar pelos canhões — explicou Walifer —, é possível que isso seja uma distração para tropas inimigas se aproveitarem da ausência do marechal e conquistem a cidade. Precisamos ser rápidos.
— E o que sugere, coronel?
— Ataque a barricada com seus homens e avance para o Palácio Central. Tente criar um perímetro pro resto do seu batalhão quando o major Doni chegar.
— Um ataque frontal?
— Não há alternativa. — Walifer tomou seu bicórnio e luneta sobre a barricada e desceu da escada. Cefas o acompanhou ao chão. — Não sabemos que tipo de atrocidade está sendo feita aos políticos da câmara.
— Está certo, senhor. Iremos atacar a barricada assim que eu organizar os meus soldados.
— Ótimo. — O velho oficial retraiu a luneta e vestiu o chapéu. — Preciso falar com Doni e Idavir agora. Boa sorte, capitão.
Walifer tocou o ombro de Cefas, transferindo confiança ao oficial. Partiu com certa pressa.
Quando o coronel saiu de sua vista, Cefas reuniu suas tropas. Todos os seus homens passaram pela abertura da barricada e formaram uma coluna, com cada uma de suas esquadras criando uma larga massa de carne.
Mesmo passado-se quase um mês, Cefas ainda tinha pendências com os demônios em sua cabeça. Não só estava irado com o frade por ter massacrado duas de suas esquadras, mas também consigo. Ele havia dito ao inimigo que poderia vencê-lo. Por mais que odiasse admitir seus erros, Cefas sentia-se culpado pela tragédia.
Impotência. O aperto em seu peito lutava contra o ódio fervente dos seus pensamentos. O medo de ser incapaz de salvar seus homens de tal criatura era perturbador.
Mas a aranha gigante não seria sua maior preocupação naquele dia. Antes de chegarem no palácio, os mercenários teriam que ultrapassar a barreira cruzando a rua. A paliçada era feita com materiais improvisados, com múltiplos mosqueteiros guardando o topo. Tinha a altura de uma casa simples.
Mercenários e rebeldes ficaram em impasse que durou minutos. Nenhum dos lados tomou a iniciativa, mantendo-se em espera pela ação do outro.
Os soldados iniciaram um burburinho. Esperar por reforços virou o tópico central entre as linhas, que viram sua discussão ser interrompida pelo capitão. Ao contrário de seus homens, ver a barreira e seus defensores causava nada além de desdém para Cefas. Era só um contratempo para chegar ao palácio para ele.
Antes do início da carga, o oficial notou a aproximação do seu ajudante de ordens e guia. Ele o encarava com um olhar morto.
— Laviel, sabe me dizer se existe alguma outra companhia para reforçar o ataque?
O leifanês parecia indiferente com a barreira no caminho, feito algo que não lhe dizia respeito. Estava sem medo, confiança ou fatiga. Cefas sabia que o homem ficou daquele jeito desde Jorodar.
— Pelo pouco que me disseram, não. As outras companhias de outros regimentos também estão paradas nas outras ruas.
— Por Goren, será que nada dá certo?!
Laviel olhou para o capitão, vendo como ficar inativo o deixara irritado. Conhecia que Cefas também fora afetado pela luta contra a Filha de Kolur, por mais que demostrasse de forma diferente.
— Walifer nos deu a ordem para atacar — o capitão comentou.
— O quê?! Senhor, o inimigo está numa posição forte, precisamos esperar por artilharia!
— Não temos tempo, parece que os malditos podem fazer mal aos deputados e senadores. Não que eu ache ruim tirar um dente ou outro de um político.
O guia o olhou preocupado e viu a dúvida em sua face.
— Avise os tamboreiros para soar o passo de carga — o capitão falou sem olhar para o guia.
Sem querer questioná-lo, Laviel saiu para informar os músicos da ordem.
Cefas desembainhou seu sabre em um movimento rápido, pondo a guarda de frente para o seu rosto. A música cruel dos tambores rugiu para os mercenários. Cada soldado saiu da posição de descanso e apoiou suas armas contra o ombro esquerdo, esperando pelo fim da melodia.
À frente de todos, ergueu sua espada para o alto, gritando para seus:
— 2ª Companhia… Carga!
A massa de soldados em verde arremessou-se em direção a barricada com mosquetes, baionetas e escadas. Tiros voaram do lado oposto, derrubando alguns dos bravos antes de chegarem aos pés da barreira.
Os guerreiros tentaram revidar, mas a milícia rebelde se mostrava feroz. Quanto mais próximos da paliçada, mais disparos cortavam os homens que avançavam, acompanhados de pedras, tocos de madeira, tijolos e qualquer tipo de entulho grande o suficiente para ferir.
Tentando levar uma das escadas para a base da barreira, o capitão assistiu seus mercenários se erguerem suas armas para o alto, em uma vã tentativa de defender-se da chuva de projéteis. Alguns eram acertados por balas, enquanto outros por pedradas na cabeça. Era uma cena horrenda. Sangue misturado de suor escorria de suas testas enquanto falhavam em se proteger.
O tempo estava se esgotando, Cefas sabia bem. O temor de outra chacina o inundou.
— Retirada! Retirada! — ele gritou, brandindo sua espada no ar.
O oficial coordenou um retrocesso organizado. Derrotada, a Noligre voltou para sua linha original sob o grito de júbilo e escárnio oriundo da barreira inimiga.
“Maldição… Walifer está tentando nos matar?!”
***
Estava outra vez atrás da barreira feita por seus subordinados. Sobre a mesma escada de antes, mascando dois pedaços de tabaco, encarava os corpos dos seus soldados aos pés da barricada inimiga.
“Olha o que você virou Cefas: uma donzela. Não consegue mais ver cinco homens mortos?”
Por mais que o número de fatalidades fosse baixo, era o bastante para mexer com o oficial. Os feridos, numerando em três vezes mais, só cooperavam para sua agonia.
— Onde estão os canhões!? — gritou de cima da paliçada. — Meus homens estão morrendo, malditos!
— Tenha paciência, capitão — respondeu Laviel —, os canhões já estão vindo!
Eram como anjos. Duas bocas de fogo de doze libras, carregadas por dois cavalos de carga, acompanhadas de seus artilheiros.
— Pois atirem logo, pela honra de Faor!
Removendo os bloqueios da barreira, os mercenários abriram espaço para as peças de artilharia. Os canhoneiros desmontaram as armas dos cavalos e as posicionaram nas brechas feitas pelos soldados, tornando a barricada mercenária parecida com a lateral armada de um navio de linha.
As peças eram manejadas por uma tenente de cabelos negros, assistida por doze homens, seis em cada boca de fogo. Ao contrário das outras armas, a artilharia possuía uma quantidade considerável de mulheres em seu oficialato.
— Já montaram os canhões? — disse a tenente.
— Sim, senhora!
— Ótimo, carreguem pelouros³ sólidos e mirem no centro da barricada.
Os artilheiros alinharam as peças na mesma pressa que as desmontaram dos cavalos. Após isso, puseram a carga de pólvora e o projétil pela boca das bocas de fogo, socando-os até ficarem firmes na culatra.
Ao perceber os canhões carregados, os revoltosos fugiram em uma retirada desordenada. Homens empurravam-se uns aos outros em desespero, alguns caindo para fora da paliçada.
Mas não haveria misericórdia por parte da artilharia.
— Fogo!
Ergueu-se uma grande nuvem de fogo e chumbo, acompanhado pelo rugido ensurdecedor dos reis da batalha⁴. A barricada saiu pelos ares, espalhando terra, tijolos e estilhaços de madeira pelo céu. Pedras voaram por todo o lado, quebrando janelas e espalhando cacos de vidro pela rua, enquanto a poeira caía do alto feito uma chuva cinzenta.
— Tentem enfrentar meus garotos de igual pra igual agora, malditos! — Cefas proclamou enquanto retirava seu sabre da bainha. — 2ª Companhia… Carga!
Com seu oficial os liderando da frente, os soldados atacaram a paliçada em um segundo esforço. Dessa vez, muro algum pararia a avalanche de armas trazidas pelo capitão.
Fogo de mosquete tentou pará-los, levando alguns ao chão. A companhia manteve o passo. Sem disparar suas armas, outro feroz ataque de baioneta avançou contra a multidão, agora rumo a brecha aberta pelos pelouros da artilharia.
Com a espada erguida, Cefas foi o primeiro a cruzar a barricada. Atacou o primeiro inimigo que viu e o cortou com seu sabre. Depois, esperou que seus homens se amontassem ao seu redor, formando uma linha pouco organizada.
Quando todos da Noligre entraram pela abertura, viram-se na mira de uma gigantesca massa rebelde que se aproximava, armada com porretes e ferramentas para o plantio.
O capitão não perdeu tempo. Ordenou seus cabos para reformar a linha, formando uma frente defensiva que ocupou toda a largura da rua, com três homens de profundidade.
— Esses bastardos derrubaram seus irmãos! Me diga, Noligre, você quer vingança?! — Cefas exclamou.
Um poderoso brado de guerra rugiu da formação. Em um movimento preciso e disciplinado, os mosquetes e baionetas apontaram para os corações inimigos como um enorme cavalo de frisa⁵ humano. Não haveria misericórdia.
— Fogo!
A saraiva de chumbo derrubou dezenas de rebeldes antes que alcançarem a linha mercenária. Sem dar tempo para a fumaça dissipar, Cefas ordenou que seus homens recarregassem e disparassem outra salva.
Mais uma vez homens caíram em montes. A leva revoltosa desesperou-se em um brado covarde, dividindo-se entre lutar e correr pelas suas vidas.
Cefas encarou seus soldados. Em seus olhos, viu a determinação e a confiança dos homens renovada. Estavam prontos para a próxima ordem.
— 4ª Companhia, avançar!
A linha de verde se levantou em uma poderosa carga. Gritavam em plenos pulmões enquanto corriam, fazendo o inimigo fugir antes de chegar ao alcance de suas baionetas.
— Senhor! — gritou um mercenário. — Estão recuando para o Palácio!
— Não deixem eles se organizarem, continuem pressionando! — respondeu Cefas girando seu sabre na direção do rapaz. — Vamos ver quem vai protegê-los agora, malditos!
Notas
¹Oblast: Refere-se a um tipo de limite administrativo nos países do leste europeu, sendo mais comum na Rússia, Belarus e Ucrânia. É comumente traduzido como “província”, porém se trata de uma simplificação. Na Federação Russa, com cada estado possuindo uma autonomia distinta, as oblasts são o tipo de divisão com menor autonomia.
²Duma: É o nome dado para a câmara dos deputados da Rússia. Como eu acho “câmara dos deputados” um nome pouco inspirado, achei bacana variar.
³Pelouro: É o “nome oficial” da bala de canhão. Vem em diferentes tipos: os sólidos, que são a bola maciça de ferro; metralha, conhecido como grapeshot, canistershot ou buckshot, que transforma o canhão em uma escopeta; e o shapnel, um tipo de munição híbrido dos anteriores, que era uma bala oca em que se colocava explosivo dentro para que explodisse ao chegar perto do inimigo.
⁴Rei/Rainha da batalha: título dado à artilharia após seu emprego aumentar depois do Renascimento. Muitos dos maiores comandantes da época conseguiram sucesso graças a alguma revolução que aplicaram no uso dos canhões. Sua influência era grande ao ponto de inspirar uma das frases mais icônicas de Napoleão: “Deus luta do lado com a melhor artilharia.”
⁵Cavalo de Frisa: trata-se de uma barreira de espinhos usada para barrar cavalaria. Era mais ou menos da altura dos peitos de um homem, com quatro linhas de espinhos unidas por um tronco central.