A Companhia Mercenária do Sul - Capítulo 15
Rovibar sabia que havia recebido uma oportunidade única. Ser o responsável pela defesa da capital enquanto Juno partia em campanha era uma honra que seria difícil de se repetir, e ele sabia bem.
O general se olhava no espelho, ajeitando a gravata preta entre a gola da camisa branca. Também realinhou a gola do uniforme, enfeitada com fios dourados. Desenrolou os alamares e as franjas das dragonas.
Olhou mais uma vez para o reflexo, com o peito estufado. Uniforme azul-marinho, calça branca, bicórnio e uma espada curvada. Queixo erguido, expressão rígida. Elegante e implacável, como todo bom comandante deve ser.
Enquanto se encarava em um ato um tanto vaidoso, Rovibar escutou passos tímidos crescerem à sua esquerda. Um sorriso cresceu em sua face.
— Esse uniforme é um pouco velho, mas ainda está muito bem preservado — disse uma voz feminina e aguda.
— Pena que o tempo não deixou o dono tão bem cuidado quanto — disse Rovibar, olhando para sua esposa pela imagem refletida.
— Você não está velho, Lomaci, só um pouco maltratado pelo trabalho. Poderias estar como… Madro, por exemplo!
— Tens um pouco de razão nisso. Para alguém que vive na frente de batalha, até que estou bem longe do pior. Já para você, meu bem… o tempo foi mais generoso.
O general se virou para a esposa, que pôs uma das mãos para segurar o queixo após o elogio.
— Dizes para me agradar, sou tão velha quanto você.
— O que importa são os olhos de quem vê, Brena.
Os dois trocaram olhares como um casal adolescente por alguns instantes. Desde o início da guerra civil, momentos assim eram raros, com a maior parte da comunicação entre ambos feita por cartas. Dependendo de como o marechal enfrentaria os garuístas, Rovibar sabia que tal momento seria breve. Aproveitaria cada instante com sua amada ao máximo.
— Suponho que vais ao parlamento. Já fazem mais de duas semanas que Juno partiu em campanha e Tiso e Lodrovi não te deixam em paz.
— Às vezes penso se Juno não foi enfrentar os garuístas para tirar férias dos dois. Acho que vou fazer o mesmo.
— Vai ajudar Juno?
— Para me livrar da dupla de patetas? Iria de bom grado. Mas acho que já me afastei de casa por muito tempo para sair tão cedo. Então, que Faor e Kolur me abençoem com paciência!
— Ah, meu bem, não fique de murmúrios. — Brena pegou as duas abas do uniforme do marido e as alinhou. — Juno voltará em breve.
— Eu sei. Aquele jovem é uma besta na arte da guerra, é possível que ele já tenha resgatado Saravi e esteja marchando de volta!
Brena se surpreendeu ao ouvi-lo com tanto ânimo. Ela disse que Juno voltaria logo só para consolar o esposo, sem imaginar que ele aceitaria tão facilmente suas palavras.
— Confias tanto assim no talento dele?
— Acho que confio menos do que devia, isso sim. Ele é quase um conquistador dos tempos antigos, como Farintora, o Desalmado, Zhilan, Erinovi e Carasovi.
— Credo! Metade dos que disse o nome são tiranos, parece até que queres insultá-lo.
— Irônico que ele ajudou a depor um, não?
Mesmo longe da porta da casa, ambos ouviram as batidas na porta do imóvel. General e esposa viram a governanta passar pelos corredores com uma pressa que não viam desde quando os filhos do casal eram pequenos.
Saindo do quarto, o casal foi em direção a sala, logo atrás da empregada desenfreada. Chegando lá, viram a mulher abrir a porta para dois cavalheiros.
O primeiro era um senhor grisalho, magro, de queixo avantajado. Ignorando o padrão da vestimenta urbana, estava com calças bejes e um colete marrom, junto de uma camisa branca e gravata azul por baixo. Não tinha cabelo no topo da cabeça, exceto por uma única mecha branca um pouco acima da testa.
O outro era jovem, na casa dos vinte, olhos verdes e cabelos negros e encaracolados. Era mais encorpado que seu acompanhante. Tinha uma cartola negra na cabeça, combinando com seu fraque e colete.
“Ótimo, agora não tenho paz nem em minha própria casa!”, lamentou o comandante.
— Posso saber o porquê de tão nobre visita em minha casa?
— Perdão por chegarmos sem avisar, general — disse o mais jovem —, Mas o assunto é urgente.
— Sempre é urgente.
Os dois contornaram o sofá de estofado branco e se dirigiram ao casal. Faziam força para sorrir, sinal de sabiam do incômodo que causavam.
— General — disse o mais velho, cumprimentando-o —, senhora Brena — estendeu a mão à mulher —, é uma honra está em vossa casa.
— Eu já estava de partida para vos encontrar, quase que perdiam a viagem.
— Sorte nossa que ainda estava em casa, então — disse o jovem, sentando-se no estofado. — Como eu falei, o assunto é urgente e, de certa forma, também secreto. É melhor que isso não seja discutido na assembleia, já que há traidores por todas as salas.
— Verdade, Favrilo contou de Bisa na reunião de campanha. Foi uma surpresa saber que ela estava envolvida com uma conspiração.
— Em tempos como esse, as pessoas buscam a melhor forma de levar proveito dos outros, meu caro — disse o mais velho. — Por isso eu, Tiso e Juno fazemos questão de lidar com os assuntos da República enquanto estivermos em guerra civil. Por sorte, a traição da deputada Bisa serviu para aquietar um pouco o parlamento. A democracia é a forma de governo superior, mas agora precisamos manter o poder do Conselho se quisermos suceder.
— Sem ofensas ao senhor, general, mas a ausência de Juno também afeta muito — disse o jovem Tiso. — Eu e Lodrovi que lidamos com a política e a diplomacia, mas o marechal é a espada. Se tiverem a chance de nos depôr, o farão quase sem pensar.
— Pelo visto, meus planos de ajudar o marechal vão ter que ser adiados, então.
O general olhou para a esquerda, a fim de ver a reação risonha de sua esposa.
— Sim, melhor que fiques por aqui até o retorno do marechal — disse Lodrovi, sem entender a piada.
— Mas acredito que não era esse o assunto, afinal, disseram que era urgente e secreto. Que Juno é a cola que une a República, todos já sabem.
Os dois cavalheiros trocaram olhares, um esperando que o outro falasse primeiro. Foi Tiso que cedeu.
— Após o marechal tomar a cidade de Jorodar, um regimento mercenário informou que um ilusionista usou de magia para furar o cerco, certo?
— Sim, ouvi falar nisso.
— E, quando viram o ilusionista, disseram que era uma menina.
— Foi o que me disseram. Aparentemente, não devia ter mais de catorze anos.
— Como sabes, Rovibar — disse Lodrovi —, os feiticeiros estudam por anos as diferentes artes do Vivo e Intocável para aplicar truques nas mentes humanas. Não há como uma criança ter aprendido a criar ilusões tão grandiosas e tê-las mantido sob fogo de mosquete.
— E ainda por cima — completou Tiso — não só criar ilusões, como provocar dor e ferimentos nos soldados.
— Dor diz respeito ao tato, a ilusão à vista. Pouquíssimos feiticeiros conseguem controlar um sentido humano completamente e essa garotinha, que mal deveria controlar um, conseguiu controlar dois com maestria — falou Lodrovi.
— Ela também teria controlado o som — disse o general. — Houve relatos de que os ouvidos de alguns homens sangraram.
— Três sentidos — disse Lodrovi, perplexo. — Eu não conheço nenhum feiticeiro que consiga isso.
— Onde vocês querem chegar com isso?
— Ela pode ser uma Filha de Kolur — respondeu Tiso. — As guerreiras da mente criadas por Carasovi durante a Guerra do Intocável.
Rovibar fez uma faceta confusa. Sequer conseguia manter a boca fechada após tamanha suposição.
— Já faz trezentos anos da guerra, impossível que alguma tenha sobrevivido tudo isso.
— A não ser que ela tenha sido criada nos dias de hoje — respondeu Lodrovi.
— Mulheres são proibidas de fazer feitiçaria por Sacra e pela Igreja de Kolur desde tais tempos, isso faria de quem a criou um herege! E quem dera isso fosse o pior: que torturas teriam que fazer com a criança para ela se tornar uma?!
— Proibições da Igreja não fazem nada, de qualquer modo. Existem mulheres que praticam feitiçaria mesmo com a proibição — disse Tiso.
— Ainda sim não é motivo para que isso ocorra — respondeu Lodrovi.
— O que a Igreja de Kolur permite ou proíbe não tem valor dentro da República de Leifas.
— Fale isso — Lodrovi subiu o tom — quando o Patriarca de Sacra atravessar a fronteira com cinquenta golems e quarenta mil soldados do exército de Poluvín!
— Silêncio, os dois! — Rovibar ordenou com a voz de ríspida de um general. — Se quiserem discutir sobre a Igreja, discutam na assembleia, com os deputados. Sou o anfitrião dessa casa e autoridade de ninguém se aplica dentro dos meus muros além da minha.
Brena tossiu e cruzou seus braços, desferindo um olhar penetrante no marido.
— Além da minha e de minha esposa.
— Perdão — disseram ambos.
Um breve silêncio se estabeleceu. Vendo que os dois homens pararam a discussão, Rovibar retomou a conversa.
— E o que nós podemos fazer a respeito disso?
— Precisamos capturar a menina — disse Lodrovi. — E depois daremos um destino apropriado.
— O que quer dizer com “destino apropriado”, cônsul? — questionou Brena.
— Nada de radical, senhora! — Tiso balançou os braços em negação. — Mas confesso que não fazemos ideia do que fazer com ela depois da captura. As Filhas de Kolur são famosas por serem instáveis quando ficam muito tempo sem contato com seus Inoculadores. Precisamos achar uma solução para isso.
— Capturá-la será uma tarefa quase impossível. Não só Astovi ainda deve estar em nosso território, como ele pode usar os poderes da menina para se esconder. Alguma noção de quem faria esse trabalho?
— Já temos alguns homens para o serviço — disse Lodrovi. — Uma ilusionista procurada pela Igreja e um oficial do Exército Republicano preso por insubordinação.
— Por que me parece que eles vão fazer isso por vontade própria? — Lodrovi e Tiso riram da ironia do general.
— De fato, meu caro, pra que gastar bons homens enquanto temos bucha de canhão? — disse Lodrovi. — Mas ainda falta uma coisa: alguém que tenha conhecimento da garotinha. Alguém que viu a criatura com seus próprios olhos, que tenha a mínima ideia de como ela age. Sem isso, não há equipe de captura.
— Homens da Noligre, então. Mas eu não acredito que nenhum daqueles homens, mesmo sendo mercenários, vão aceitar expor suas vidas dessa forma.
— Fale com eles, general — falou Tiso. — Existe louco para tudo nesse mundo.
A conversa não se alongou. Após poucos minutos, os dois homens saíram da casa, acompanhados pelo general e sua esposa. Rovibar e Brena os conduziram os portões gradeados. Depois, ambos os cônsules se despediram dos anfitriões, que acenaram em resposta por detrás do portão.
Tiso pôs seu pé no degrau da carruagem, porém, antes de entrar, ouviu um grito que chamou sua atenção. Ele olhou para a esquerda, de onde o som vinha, e depois para trás, onde estavam Lodrovi, o general e sua esposa, todos olhando para a mesma direção.
Outro brado, dessa vez de uma multidão, soou ainda mais alto. Uma poderosa explosão rugiu pela cidade, fazendo o chão tremer e desequilibrar as pernas dos quatro.
O general enlaçou sua esposa com os braços, impedindo que ela caísse. Após o estrondo, viu uma fumaça negra erguendo-se pelo céu, oriunda do centro de Carasovralo. Mais gritos ergueram enquanto dezenas de soldados de uniformes vermelhos correram do fim do quarteirão para proteger os dois cônsules e o general, formando uma parede de carne ao redor da casa do comandante.
— Cavalheiros! — Rovibar gritou para a dupla. — Escondam-se enquanto puderem!
— O que está acontecendo!? — disse Tiso, quase no chão.
— Apenas fuja, cônsul! Você não vai querer estar aqui para descobrir!