33: Depois de Salvarem um Mundo - Capítulo 201
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Quadragésima Primeira Página do Diário
Foi perfeito.
Ter Zita em meus braços foi a melhor coisa que me aconteceu, um presente inesperado que me fez baixar a guarda e relaxar. Pela primeira vez em anos, eu me senti feliz de verdade.
Enquanto olhava para o teto escuro, senti a minha ruiva se acomodar melhor ao meu lado, usando meu braço como travesseiro. Aproximei meu rosto e senti melhor o seu cheiro doce de flor de tangerina. Gostava daquele cheiro, me deixava calmo como nenhuma outra coisa no mundo.
Não no mundo em que estávamos.
Quatro anos nesse mundo e eu não tive um dia sequer de tranquilidade verdadeira. Pelo menos não até aquele momento. Claro que eu tive momentos felizes na toca dos ratos, e também lá no Reino do Leste, no entanto, tranquilidade real, era como se apenas Zita fosse capaz de me fazer sentir.
Acariciei seus cabelos e admirei o tom avermelhado dos fios. Lembrei do dia em que eles ganharam aquele tom de brasa ardente, diferente de quando a vi pela primeira vez, quando ainda eram apenas castanhos.
Agora ela era ruiva. A minha ruiva. E eu não poderia perdê-la jamais, principalmente depois de admitir que estava completamente apaixonado por ela e tendo meus sentimentos correspondidos.
Só queria ficar ali abraçado com Zita, sem me preocupar com o futuro, nem com reinos, ou heróis, muito menos com conflitos e guerras. Apesar de tudo, ainda estávamos de lados diferentes, e ambos tínhamos firmado compromisso com nossos respectivos aliados.
Suspirei preocupado, no mesmo momento que minha barriga roncou.
Zita abriu os olhos e sorriu de uma forma fofa. Não resisti a tanta fofura e beijei sua testa, apertando-a em meus braços. Em resposta, ela me deu uma mordida no ombro, mas não doeu, era apenas uma forma diferente de demonstrar carinho.
Eu não estava acostumado a ser amado.
— Com fome? — Zita me perguntou — Sua barriga roncou igual o chewbacca…
— Rrrruuuurrr!!! — Imitei o som do personagem peludo.
— Bom ver que sua memória seletiva lembra de filmes de qualidade. — Zita comentou rindo, enquanto vestia de volta as roupas que havíamos deixado espalhadas pelo chão.
Após também me vestir, saímos juntos. No lado de fora o sol já estava alto no céu, deveria ser por volta das dez da manhã. Eu nunca acordava tão tarde, nem tão relaxado.
As ruínas continuavam transmitindo aquela sensação de abandono e antiguidade. As poucas pedras escuras empilhadas que sobraram do que havia sido um castelo em meio às montanhas eram apenas parte da história.
Mas por algum motivo, pareciam menos tristes naquele dia.
Com exceção das ruínas, tudo onde a vista podia alcançar era apenas montanhas e céu. Até as nuvens ali eram poucas. Mas haviam dois sóis, um que iluminava o céu e a terra, e outro que brilhava com um sorriso lindo bem na minha frente enquanto fazíamos comida.
Por mais que a noite tivesse sido maravilhosa, eu me sentia tímido em falar a respeito. Achei que Zita também estava se sentindo da mesma forma, principalmente porque, enquanto fazíamos o desjejum, ela me olhava por alguns segundos sorrindo, e depois virava o rosto tentando esconder que estava enrubescida.
Para não ficar naquele silêncio estranho, resolvi puxar conversa.
— Quais os planos para o futuro?
— Como assim? — Zita mordiscou um pedaço de carne seca — Fala em relação a nós dois ou…
— Todo o resto! — respondi rápido — Quanto a nós dois, eu gostaria que continuasse assim.
— Também gostaria… — Ela suspirou — Você sabe o quanto eu te amo… Mas tem todo o lance de ser herói e… e a tal profecia…
Ela estava confusa.
— O que a profecia diz mesmo? — Perguntei, tentando fazer ela focar em uma coisa por vez — Sei que fala sobre os heróis salvarem o mundo de uma guerra, mas nunca soube dos detalhes.
A parte que eu conhecia era apenas o senso comum. Todos os habitantes dos sete reinos conheciam a profecia, entretanto, seus pormenores eram sigilosos. Zita, como uma dentre os escolhidos, deveria saber. O problema era se ela poderia me contar.
— A profecia não é bem clara… — Ela deu um gole no chá que havíamos acabado de preparar e continuou — Fala sobre o presente e o passado, sobre uma guerra entre os deuses e algo mais antigo que eles. Pelo que dá de entender, já aconteceu uma guerra assim séculos atrás, e após a nossa chegada está confirmada uma repetição da destruição que somente deuses são capazes de gerar.
— Se a guerra é entre os deuses, onde entram os heróis? — perguntei.
— Somos os “representantes” dos deuses. Fomos escolhidos por sermos os mais aptos a herdarem uma fração de seus poderes, e junto veio a missão de buscar aliados entre os humanos.
— É por isso que vocês foram divididos entre os reinos? Aposto que levaram em conta o poder de cada um!
— Sim. Por sorte o meu despertar foi naquela noite… — Ela fez uma expressão triste — Eu já tinha sido definida para treinar com os monges, eles não me achavam forte…
— E agora?
— Não é querendo me gabar, mas lembro de ter derrotado até você! — Ela deu um sorriso fofo e malvado.
— Eu não sou um herói. — Ergui as mãos em defesa.
— Não muda o fato de que todos os outros morrem de medo de você. — Zita deu uma risada — Depois que você peitou o Wagner e depois a Anne, fora o tanto de soldado que já matou, não me admira que seja considerado o segundo mais forte.
— E quem é o primeiro?
Zita sorriu e abriu os braços.
— Eu, obviamente. Por isso os reis e príncipes se jogam aos meus pés. As pessoas me idolatram. Até de outras mulheres já recebi declarações de amor. Eles me amam e temem por ser a mais forte, sem contar “imune ao fogo”. — Então mudou a expressão para um sorriso meigo — Minha única fraqueza é você. Por você eu me derreto toda…
Segurei a vontade de agarrar ela ali mesmo. Respirei fundo, tomei um gole de chá e continuei a conversa. Queria saber como prosseguiríamos a partir dali. Não seria seguro eu voltar com ela para o Reino de Prata, nem ela ir comigo para o Leste.
Não foi uma conversa fácil.
Me doía o coração ter que falar sobre nos separarmos, contudo, ambos sabíamos que cada um tinha uma missão para cumprir. No fim concordamos em tentar criar uma terceira opção para enfrentar a tal guerra profetizada.
Zita tentaria recrutar Felipe e Leonardo. Um era forte, o outro, inteligente. Com dois dos melhores heróis ao nosso lado seria fácil encontrar uma solução para contornar a guerra.
Eu fiquei responsável por tentar convencer o pessoal do Leste a não fazer merda. Confesso que fiquei com a parte mais difícil, principalmente porque quando a história era fazer besteira, eu era o primeiro da fila.
Havia uma pessoa que também pensamos em trazer para o nosso lado. Alguém que poderia botar medo e impor respeito em praticamente qualquer um: Haroldo, meu pai. Aquele que, por algum motivo, me ajudou e escondeu de mim o fato de sermos família.
Lembrando de como ele era durante a minha infância, concluí que meu pai deveria ter um motivo muito importante para manter o segredo. Talvez para me proteger de seus inimigos, ou para proteger-se dos meus.
Eu teria que perguntar para ele na próxima vez que nos encontrássemos.
Como não estávamos prontos para nos separar, eu e Zita treinamos juntos por um mês e meio. Ela me ensinava como confrontar os poderes dos heróis e eu a ensinava as técnicas de combate que aprendi no Leste.
A falta de recursos para nos alimentar pela região foi o que nos obrigou a partir. No meio das montanhas não havia árvores, e os poucos arbustos não eram ricos em frutos. Os animais também eram poucos, e na maioria eram lagartos.
Até a água era pouca. Sem contar que tinha um leve sabor de ferrugem, que descobri ser causado por uma carruagem que havia caído no poço muitas décadas antes. Se alguém jogou intencionalmente, foi uma baita feladaputagem.
Quando chegamos no limite da nossa resistência, decidimos partir.
Zita pegaria o caminho rumo ao oeste, para a Torre dos Sábios. Eu voltaria à Montanha Solitária, capital do Reino do Leste. Nossa jornada para salvar o mundo começava ali.
Nos despedimos com um beijo demorado, e cada um pegou seu caminho sem olhar para trás. Agora eu tinha outro motivo para continuar vivendo. Percebi que a vida já não era mais tão ruim quanto eu costumava achar.