33: Depois de Salvarem um Mundo - Capítulo 174
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- Capítulo 174 - Trigésima Quinta Página do Diário – Parte 1
Trigésima Quinta Página do Diário – Parte 1
Eu sou um demônio?
Que merda eu tinha falado?
Esse mundo nem tinha um conceito de demônio como antítese aos deuses. Na verdade, tudo de bom e de mau era relacionado aos deuses, então eu deveria ter dito que era o deus do mal.
Mas que merda eu estava pensando agora?
Era como se minha cabeça estivesse funcionando de uma forma diferente. Como se meus pensamentos fossem mais rápidos do que eu era capaz de acompanhar. Como se tivesse outra pessoa pensando por mim…
Eu ainda não entendia o que estava acontecendo, mas tinha a impressão que estava relacionado com o papinho que bati com o cara esquisito que me amaldiçoou com esse poder bizarro que não era magia.
Ao que parece ele tinha aumentado minha capacidade de regeneração e me dado uma melhoria mental. Não conseguia explicar, mas me sentia mais inteligente. Ou menos burro, eu acho.
Não sei de onde saíram tantas ideias de improviso, mas acredito que deu certo. Eu tinha conseguido meio que um exército de pessoas esquálidas à beira da morte por inanição de tão raquíticas…
Que merda eu estava pensando? Esquálidas? Inanição? Raquíticas? Desde quando essas palavras faziam parte do meu vocabulário? E nem deveria saber o que era inanição, mas sabia. Não sabia como sabia, mas sabia que sabia.
Era confuso.
Ai merda. Eu estava pensando demais, rápido demais, em mais de uma coisa ao mesmo tempo. Até que todas as minhas linhas de raciocínio me disseram ao mesmo tempo que eu precisava descansar.
Então cheguei à decisão de tentar manter todas essas linhas funcionando em sincronia. Se eu fosse tentar pensar em coisas demais ao mesmo tempo, poderia acabar me perdendo.
Foi difícil manter a concentração e dormir. Primeiro porque eu tinha dormido por sei lá quanto tempo, e segundo, por causa da minha ansiedade. Cada vez que eu ia pegando no sono, parecia que alguém me chamava.
E nesse sofrimento, dois dias se passaram.
Em dois dias eu consegui fazer amizade com a maioria dos outros presos da masmorra. Eram pessoas demais para lembrar o nome de todos, mas fiz o meu melhor. Também consegui identificar dois possíveis traidores, mas eles foram silenciados.
Matar eles, ali na frente de todos, foi uma boa forma de mostrar quem mandava.
As pessoas já temiam o meu nome, eu tinha dito que era a porra de um demônio, então por que não baixar o nível e fazer uma execução sumária? Devo considerar o fato de que desmembrar pessoas já não me causava nenhum tipo de desconforto.
Confesso que na verdade eu fiquei até feliz.
Uma dica: Se o seu dia está uma merda, arranque os braços e as pernas de alguém que você odeia. Vai ver como seu humor melhora em 200%.
Após esconder os corpos, ou o que sobrou deles, e voltar para a minha cela, ouvi passos vindos da escadaria de pedra. Era raro que alguém fosse a uma masmorra fazer visita, mas depois que me colocaram ali, parece que virou um ponto turístico.
Eu estava me sentindo um palhaço macabro em um circo de horrores. Era chato, no entanto, como as visitas eram mais para mim, eu ganhava pontos de fama com os outros prisioneiros.
Nos dois dias que se passaram desde que acordei, recebi a visita de três cavaleiros de armadura, que vinham sempre reiterar sobre a cerimônia de noivado e tentar me fazer uma tortura mental.
Comecei a ver um padrão. Eles queriam de todas as formas me tirar do sério, e levando em conta a minha fama de “poucas ideias”, ficou óbvio que o intuito era fazer com que eu tentasse agredir um deles.
Um prisioneiro que conseguiu a graça de ter sua condenação à morte reduzida para prisão perpétua atacar um cavaleiro do reino era motivo para ele morrer sem precisar de julgamento. Era por isso que mandavam cavaleiros em vez de qualquer outro tipo de pessoa.
Cavaleiros tinham muito poder no Reino de Prata. Isso eu tinha aprendido anos antes, quando ainda era um dos ratos e precisava me sujeitar às mais diversas situações humilhantes para sobreviver.
Não importava quem estava vindo dessa vez, eu não cairia no joguinho deles. Eu ia jogar e mostrar que também era capaz de manipular meus inimigos com estratégias mentais.
Infelizmente, eu estava muito errado, para variar.
Quem apareceu no corredor não foi um cara grande de armadura, e sim uma garota ruiva com um vestido verde cheio de bordados em forma de folhas. Se aquilo fosse um plano para abalar meu estado psicológico, com toda certeza funcionou.
Zita caminhou a passos lentos até a frente da minha cela. Foram os segundos mais longos que já vivi, a ansiedade misturada com a angústia me fez tremer.
Nos encaramos por um tempo, parecia uma competição de encaradas, onde quem pisca primeiro perde.
— Obrigado… — Uma palavra solitária, em tom de hesitação, foi tudo o que eu ouvi de Zita.
O que eu queria ouvir? Queria que ela dissesse que estava feliz? Ou que me pedisse ajuda? Ou ainda que contasse uma piada e fingisse que nós dois não estávamos na merda?
Querer que ela dissesse algo seria mais que hipocrisia, seria burrice.
Então cabia a mim dar o próximo passo. Mas o que eu deveria fazer? Estava perdido, tinha todo um planejamento para brincar com o psicológico de um cavaleiro de armadura e me aparece uma ruiva linda daquelas.
Eu precisava falar algo. Não conseguia pensar em nada para dizer, então falei sem pensar. No fundo, eu era bom nisso.
— Você está bem? — Perguntei.
Zita não me respondeu, apenas desviou o olhar, enquanto segurava o antebraço esquerdo, como se estivesse tentando se esconder. Eu podia ver o medo em seu olhar, a confusão interna que ela estava enfrentando não era tão diferente da minha.
Eu gostaria de dizer muitas coisas, de perguntar sobre o que tinha acontecido, queria saber se ela estava mesmo bem. Naquele momento a minha preocupação com ela era maior do que comigo mesmo.
Eu estava preso, mas estava bem, de certa forma. Enquanto ela foi praticamente obrigada a aceitar um pedido de casamento para me proteger. Se ela me odiasse, teria toda razão, e eu não poderia julgá-la.
Mas eu não consegui dizer mais nada. Estava muito nervoso. Toda a minha coragem e inteligência desapareceu assim como havia aparecido, do nada.
Ela ficou lá. Parada. Apenas me encarando.
Era incômodo ser observado daquele jeito, no entanto, eu não tinha palavras naquele momento. Queria dizer muitas coisas, mas nada saia da minha boca, minha língua estava travada, e minha garganta parecia que queria fechar.
Eu gostaria de perguntar se ela estava bem, se estava machucada, e também questionar o motivo dela ter aceitado casar com Flek. Queria perguntar se eu tinha alguma importância para ela.
Porque para mim, ela era muito importante.
Descobri que eu amava aquela garota. De alguma forma, dentro de mim havia um sentimento que me impedia de odiá-la. Mesmo que ela tivesse quase me matado, eu sabia que lá no fundo ela não teve a intenção.
Eu fui lá para salvá-la. Estava disposto a me sacrificar por ela. Não só por ela, eu sempre estive disposto a morrer, desde o princípio. Mesmo que algo me segurasse quando a morte puxava meu braço.
E mais uma vez eu havia sobrevivido.
Zita se aproximou da grade da cela. Naquele momento eu pude ver melhor seu rosto iluminado pela chama da tocha. Percebi que seus olhos estavam úmidos e uma lágrima descia pela sua face.
Ela estava triste.
Seus lábios se moveram, mas nenhuma palavra foi dita. Ela parecia estar buscando as palavras certas. Um leve tremor fez sua boca se fechar. O mundo pareceu não existir, o tempo parou de correr. Éramos apenas nós dois. Era como se o silêncio dissesse tudo…
Ela mordeu os lábios e respirou fundo. Então pude ouvir sua voz.
“Fiz essa canção pra dizer algumas coisas…”
“Cuidado com o destino, ele brinca com as pessoas…”
“Tipo uma foto com um sorriso inocente;
Mas a vida tinha um plano e separou a gente…”
“Mas… Se quem eu amo tem amor por mim…”
Zita cantou.
As frases eram ditas com um espaço entre uma e outra. Como se ele quisesse me dizer tudo com aquelas palavras.
Então eu reconheci. Aquela era a segunda parte da música que cantei para Zita no dia que ela me levou ao castelo. O mesmo castelo onde eu estava preso.
Ela soluçou e enxugou os olhos com o pulso.
“Se quem eu amo tem amor por mim…
Eu sei que ainda estamos muito longe do fim…”
Então o choro a dominou. Ela cobriu o rosto com as mãos e soluçou. E depois de alguns segundos levantou o rosto e me encarou com os olhos avermelhados de tanto chorar.
Não dissemos mais nenhuma palavra.
Zita foi embora, e eu não consegui dizer nada a ela. Somente depois que ela sumiu pelo corredor escuro foi que percebi que haviam lágrimas escorrendo pelo meu rosto.