33: Depois de Salvarem um Mundo - Capítulo 169
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- Capítulo 169 - Trigésima Quarta Página do Diário – parte 1
Trigésima Quarta Página do Diário – parte 1
Eu poderia dizer que tinha chegado ao fundo do poço. Mas acredito que nenhum poço era tão fedido, desconfortável, barulhento e nojento quanto o local onde me vi deitado.
Dizer que me vi é um pouco exagerado também. Do jeito que aquela porcaria de lugar era mal iluminado, eu não conseguia ver minhas próprias mãos. A única fonte de luz que tinha era uma tocha no final do corredor, que eu via através das grades.
O fedor de excrementos humanos, para não chamar de merda, me lembrava meu antigo trabalho de limpador de latrinas. Não que eu sentisse saudade dos meus tempos de rato, principalmente agora que todos eles estavam seguros.
Tentei me levantar e senti uma dor desgraçada no tornozelo. Lembrei que havia ferrado ele um tempo atrás. Só não sabia quanto tempo havia sido.
Busquei pela memória os fatos que poderiam ter a ver com eu estar acordando em uma masmorra, ou alguma prisão imunda que fosse, em sabe deus onde. E tudo que tive como respostas foram alguns flashes.
Lembrei de ter tentado “salvar” Zita, e também dela ter tentado me matar. Lembrei de ficar inconsciente, e daí foi ladeira abaixo. Parte das memórias estavam nubladas, mas acredito que lembro de ouvir os heróis que extavam com Zita discutindo sobre me matar ou não.
Ainda bem que não concordaram.
Haviam outras memórias, mas estavam confusas demais para fazer sentido. Busquei me focar em meu corpo, que não estava lá muito bem. Tornozelo quebrado e garganta queimada eram apenas o começo.
Eu tinha uma dúzia de escoriações, pelo menos. Estava morrendo de fome e sede, estava cagado, e a minha cela não tinha sequer onde sentar. Tudo ali era de uma imundice só, o que não me fez vomitar apenas por eu não ter nada no estômago.
Como muita dificuldade, consegui me levantar. Um simples ato de erguer meu corpo pareceu tão cansativo quanto correr uma maratona. A dor era tanta que parecia que eu tinha levado uma surra.
Um flash de memória me dizia que talvez eu tivesse mesmo levado uma surra.
Não era totalmente confiável, mas eu tinha quase certeza que aquele bando de filhas da puta dos heroizinhos de merda me agrediram enquanto eu estava desacordado.
Ah, mas vai ter volta!
— Falei que ele estava vivo. — Uma voz alta e rouca veio do outro lado do corredor — Me deve um quarto de pão!
— Moleque resistente da desgraça! — comentou outra voz vinda da mesma direção — Ele não poderia simplesmente morrer de vez?
— Não é todo mundo que aguenta uma semana nessa cela ali. — A primeira das vozes disse.
Tentei pedir para que parassem de me agourar, mas a minha garganta ferrada não emitiu voz alguma. Minha boca seca pedia por um pouco de água que fosse, me fazendo não temer a humilhação de lamber a umidade do chão da cela.
Tudo pela minha sobrevivência.
Estava prestes a passar minha língua pelo chão imundo, quando ouvi passos metálicos vindo da extremidade do corredor. Minha pouca experiência era suficiente para afirmar que se tratava de alguém usando armadura.
Para um cavaleiro do reino estar em uma masmorra podre e abandonada pelos deuses, algo importante ele queria.
Os passos cessaram bem diante da minha cela e pude ver o metal polido com sua superfície brilhante refletindo a pouca luz do local. Até imaginei que se trataria do Cavaleiro de Prata, mas era muita autoestima achar que alguém tão metido quanto ele iria até em tal inferno apenas para me ver.
— Você deve ser o André. — O homem de armadura falou — Que bom que finalmente acordou.
Então eu tinha passado muito tempo desacordado? Quanto tempo foi?
— Coma isso. — Ele jogou um pão e um cantil de água — As ordens são de te manter vivo até o casamento.
Casamento? Que casamento?
— Ah, sim. — Ele tirou o elmo e coçou o nariz, talvez incomodado com o mal cheiro do lugar — Enquanto você esteve dormindo igual uma princesa, os heróis decidiram que iam te matar, mas a Sacerdotisa Elizabeth implorou por sua vida. Acredita? Uma pessoa do nível dela implorando para que não te matassem!
Então foi isso que aconteceu? Por isso eu ainda estava vivo.
— O príncipe Flek intercedeu em favor dela, e por isso a sacerdotisa aceitou seu pedido de casamento.
Então era ela quem estava se casando?
Não sei porque, mas aquela notícia me doeu muito. Depois de arriscar minha vida para salvá-la, saber que ela aceitou casar com aquele merdinha do príncipe Flek. Como alguém no mundo teria coragem de sequer cogitar aceitar o pedido de casamento de alguém como ele?
Não! Tinha algo muito errado com isso tudo!
O sorriso ganancioso no rosto mal iluminado daquele cavaleiro de meia-idade calvo e barrigudo era o suficiente para saber que haviam mais peças no tabuleiro do que eu era capaz de ver.
Eu precisava manter a calma e jogar o mesmo jogo que eles. Essa era a minha função. Resolvi usar a minha condição de prisioneiro para tentar obter o máximo de informações possíveis.
As pessoas têm a mania de contar com a vitória antes do tempo, e eu estava disposto a usar isso a meu favor. Agora o problema era como fazer isso sem levantar suspeitas dos meus inimigos.
Primeiro eu precisava fazer eles acreditarem que eu tinha desistido de tudo e aceitado a derrota. Depois eu precisava encontrar informações em cada palavra que ele havia dito. Talvez encontrar aliados naquele lugar de merda, o que seria fácil, visto a quantidade de pessoas que parecia ter ali.
E por último, eu usaria meu poder para fugir dali e fazer uma bagunça NO DIA DO CASAMENTO.
Com certeza seria a festa mais lembrada em toda região oeste pelo próximo século.
— Não precisa ficar tão triste — O cavaleiro disse entre risinhos nojentos — Sua morte está programada para logo após a cerimônia, em três dias. Será o presente de Flek para Elizabeth.
Isso sim é uma notícia de merda.
A parte boa era que eu teria tempo para me preparar até lá. Se bem que nenhum dos meus planos deu certo até aquele momento. Talvez o melhor fosse deixar rolar e improvisar.
Por via das dúvidas criei dois planos: O primeiro era encontrar uma forma de obter informações e fugir, o segundo era improvisar. Se o plano “A” não desse certo, eu teria o plano “B”.
— E não adianta tentar usar seus poderes para tentar fugir! — O cavaleiro de armadura deu as costas e saiu — Esse lugar é repleto de cristais antimagia, nem mesmo os heróis têm poderes aqui em baixo! Hua-hua-hua!
Com os mesmos passos metálicos e ritmados que entrou, ele saiu.
Uma visita rápida que me deu muitas informações: Zita estava prestes a casar, eu estava destinado a morrer em breve, eles precisavam me manter vivo, e eu estava em uma prisão subterrânea.
As palavras dele “aqui em baixo” denunciaram que a prisão era no subsolo, o que indicava a possibilidade de eu estar sendo mantido no subsolo do Castelo de Prata, o que era uma boa notícia, se olhar pelo lado positivo.
Um castelo é difícil de invadir, praticamente impossível. Existem relatos de cercos a castelos que duraram meses, resultando em fracasso. A verdade por trás da ideia de construir um castelo não é pela beleza ou para exibir grandeza, os primeiros foram construídos para serem fortalezas.
A Montanha Solitária no Reino do Leste, por exemplo, poderia abrigar toda a população do reino por um ano ou mais. O castelo de Prata ficava exatamente no centro da cidade, para invadi-lo eu precisaria de um exército e armas de destruição em massa.
Mas o inimigo me subestimou e me prendeu no subsolo do castelo. Eles literalmente trouxeram o inimigo para dentro de casa. Não sei se era confiança ou arrogância, mas isso seria a ruína deles.
O que mais me ferrava era a parte de não ter poderes.
Levantei a mão e tentei acumular o Rancor. A névoa fluiu para fora do meu corpo e formou uma adaga, tudo normalmente, sem nenhuma interferência. Minha mente bugou por dois segundos.
Se o cavaleiro contou uma mentira, ele estava jogando muito arriscado. Seria muito burro da minha parte não testar se meus poderes estavam ou não sendo suprimidos.
Se o que ele falou era verdade, então eu de alguma forma era imune à pedra antimagia. O que, pensando bem, fazia sentido. Eu nunca vi meu poder como magia, era mais como… como uma maldição.
Foi isso que o cara esquisito lá do buraco me disse!
Ele tinha dito que o meu poder era uma maldição… e que ela estava me matando! Filha da puta! Ele me ferrou… Como diabos você pega uma maldição e coloca em alguém do nada?
Pelo menos eu poderia usar essa porcaria de maldição a meu favor.
Meus pensamentos foram interrompidos por sons de passos vindos do corredor. Dessa vez eram passos mais leves, um guarda talvez.
Desfiz a adaga de rancor antes que ele chegasse à minha frente. Seria muito burro ficar com ela. E eu não estava em posição de dar moral para o azar.
Ele parou em frente à minha cela e disse baixinho:
— Finalmente cê acordou, chefe. Os outros estavam começando a me encher o saco com tantas perguntas sobre a sua situação.
Chefe? Como assim chefe? Eu nunca tinha visto aquele cara antes.