33: Depois de Salvarem um Mundo - Capítulo 165
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- Capítulo 165 - Trigésima Terceira Página do Diário
Trigésima Terceira Página do Diário
Tudo que consegui ver foi um mundo etéreo.
Ou melhor, não havia nada para “ver”. Eu conseguia sentir que estava em algum lugar, mas não conseguia dizer que tipo de lugar era. Como se tudo fosse apenas um vazio, mas eu sabia que não estava vazio.
Eu não sabia como sabia, mas sabia que sabia. Era complexo e contraditório, mas eu me sentia bem ali.
— Finalmente você chegou. — Disse uma voz grave dentro da minha mente — Eu estava te esperando.
Eu conhecia bem aquela voz. Era a mesma que tinha falado comigo dentro da Grande Falha, a voz do esqueleto ancestral que tretou com os deuses ou algo do tipo. Não lembrava bem o que ele tinha dito, mas era nesse rumo aí.
Pensando bem foi ele que me deu o poder do Rancor, certo?
Eu não tinha nenhum poder antes de ser jogado naquele buraco e encontrar a ossada antiga. Ou será que tinha a ver com a bolinha de osso que ele pediu para que eu guardasse?
Tinha muita coisa na minha cabeça ao mesmo tempo. Não havia uma linha de raciocínio apenas, mas tudo estava passando ao mesmo tempo como se as minhas memórias estivessem sendo misturadas em um liquidificador.
O que deveria ser um liquidificador mesmo?
Parte das minhas memórias estavam nebulosas ou pareciam ser criações da minha mente, como se eu estivesse em um sonho e ao mesmo tempo acordado. Haviam vozes conhecidas, como a de Miraa e Surii, mas também haviam vozes familiares, porém, desconhecidas.
— Calma, garoto, eu estou aqui. — Novamente aquela voz ecoou em minha mente — Não se perca em suas próprias memórias.
Minha mente começou a entrar em equilíbrio, então fiquei mais relaxado. Aquela sensação de ter tudo misturado em meus pensamentos foi horrível demais, não tive controle dos meus próprios pensamentos e parecia que estava enlouquecendo.
— Bem melhor. — Eu disse quando senti meus pensamentos estabilizarem — Você que me ajudou?
— Ajudar é um termo ambíguo. — A voz grave disse — Tudo que fiz foi separar suas memórias dessa vida e da anterior.
— Então você me ajudou.
— Eu te ajudei, e você me ajudou.
— Como eu te ajudei?
— Acho que você não lembra, já que desmaiou antes que eu conseguisse te explicar, mas tive que passar para você uma parte da maldição que me prende.
— O quê? Como assim? — Aquilo me pegou de surpresa. Eu estava amaldiçoado esse tempo todo e não sabia.
— Não percebeu um tipo de “névoa” saindo de você de vez em quando?
— Fala do Rancor? Achei que era um tipo de poder especial…
— …
Então tivemos um momento de silêncio. Aparentemente, o ser que falava comigo não estava entendendo o meu ponto, ou eu não estava entendendo o ponto dele. Ou ainda, talvez fossem as duas opções.
De qualquer forma, eu precisava aproveitar para obter informações.
— Você está usando a maldição como se fosse um poder?
Falando daquele jeito parecia ser bem errado. Talvez fosse, mas estava funcionando bem até o momento.
— Pra começar, eu nem sabia que era uma maldição. — Tentei me explicar — E se tá funcionando, não tem mal algum em usar, né?
— Aquela coisa corrói seu corpo de dentro para fora. — Ele disse — Por isso que eu sinto diversas lesões nos seus órgãos internos! Se não tivesse dado a bênção sobre seu corpo, você já teria morrido há muito tempo.
Devo admitir que isso me assustou muito.
— Como assim “bênção”?
— Já que te passei uma parte da maldição, também te dei uma proteção sobre seu corpo. Isso te dá resistência física, recuperação e reduz dores e estresse físico. — Ele explicou — Deveria ter sido o suficiente, mas ao usar a maldição, a bênção foi superada e seu corpo sofreu danos severos.
Ótimo, eu estava lascado e nem sabia. Na verdade sabia, mas não conhecia o quanto estava lascado.
— Eu vou morrer?
— Deveria estar mais preocupado em morrer quando foi quase carbonizado pela heroína do fogo, não por causa de um cancerzinho no pâncreas, fígado, intestino e pulmões.
Ah sim, lembrei que havia perdido a consciência quando tentei parar Zita. Pensando direito, por que diabos eu inventei de ir no meio da porcaria do acampamento cheio de heróis e soldados para tentar ajudar alguém que era considerada uma das pessoas mais fortes desse mundo mesmo?
— Devo me desculpar por fazer você ir até a garota. — Ele disse — Mas precisava de uma forma de falar com você.
— Você me fez ir até ela?
— Eu meio que fiz ela perder o controle e depois te fiz sentir ansiedade para “salvá-la”. Foi por isso que você sentiu estranho enquanto ia para o acampamento.
— Filho de uma puta!
— Eu precisava te trazer até o subconsciente da sua alma para poder te salvar, se não fizesse isso, em cerca de três semanas a maldição corroeria seus órgãos e chegaria no seu coração. Aí nem mesmo eu seria capaz de te salvar.
— E tinha que meter a Zita na história?
— Sua mente precisava estar bagunçada… E você precisava… morrer…
Minha mente deu “tela azul”. Eu não sabia o que deveria ser uma tela azul, mas minha mente deu isso.
— Mas você disse que me trouxe aqui pra eu não morrer!
— Não morrer da maldição, de outras formas eu posso te salvar, mas a maldição é outra história.
Bufei mentalmente.
— Você precisa de mais poder para o que está por vir, e para isso seu corpo tem que estar mais forte. Não vai conseguir resistir a tudo com esse corpo fraco, corroído por uma doença e cheio de escoriações como está nesse exato momento.
— Tá bom. Me dê poder então.
— Não é tão simples. Para fazer seu corpo ficar mais forte eu preciso reconstruir tudo praticamente do zero. Por isso precisava que você morresse outra vez.
— Outra vez?
— Nunca se perguntou o motivo de ser o único que não tinha memórias? Seu corpo original morreu, e eu precisei refazer tudo. Mas se eu deixasse suas memórias, de todos os traumas da sua vida passada, não seria capaz de te fazer ficar mais forte.
— Traumas?
— Tudo que posso dizer é que sua vida anterior não foi lá muito boa.
— A atual também não é essas coisas todas…
— Não se preocupe, na hora certa você vai relembrar de tudo. Por enquanto é melhor deixar assim, ou a maldição vai ficar mais forte.
— E o que exatamente é essa maldição?
— A maldição que compartilhamos tem sua origem na “Criação”. Ela é feita do resíduo do poder original que criou cada mundo, e eu sou apenas o guardião desse mundo, portanto, existe um poder muito maior, e é ele que me prende.
Que merda!
— Os deuses, de alguma forma, acessaram esse poder que está além de suas próprias compreensões e usaram para roubar a imortalidade, depois me prenderam na Grande Falha e fizeram um monte de merda no que sobrou do mundo.
— Está dizendo que… queeeeeee…
O que eu queria dizer? Nem mesmo eu sabia.
— Pare de pensar e ouça. Preciso que preste atenção e confie no que vou te dizer.
Era difícil, mas bora lá.
— Os heróis estão sendo manipulados pelos deuses, que por sua vez tentam manipular uns aos outros. Mas existem pessoas que não estão de um lado nem de outro, são essas pessoas que precisamos para o nosso lado.
Essa conversa estava mudando de rumo muito rápido.
— Para que consiga encontrar tudo que precisa, vou te dar uma bênção espiritual e curar seu corpo. Quando você acordar vai estar tudo bem, mas não se assuste com o local onde estará.
Como assim não me assustar? Isso estava me assustando.
— Também deixarei o fragmento do meu espírito com você. Da primeira vez te dei o fragmento do corpo, e com esse, só faltará o da minha mente.
Acho que ele falava da bolinha de gude feita de osso. Eu havia deixado aquilo guardado na Montanha Solitária dede que ganhei um quarto lá. Não existia lugar mais seguro no mundo que a sede do poder do Reino do Leste.
— Por fim, estou chegando ao meu limite. Essa maldição não me permite falar mais do que isso, ou não serei capaz de curar seu corpo.
— Foi um bom papo. — Eu disse — Muito esclarecedor e perturbante.
— Perturbador, você quer dizer.
— Se entendeu não precisa corrigir…
— Nossa conversa se encerra aqui. Fique bem, não seja imprudente, use a cabeça e sobreviva…
Senti o mundo se distorcer ao meu redor. A noção de equilíbrio se perdeu e meu corpo parecia flutuar no nada, uma sensação igual à do dia que cheguei nesse mundo. Parecia que eu estava mergulhado em uma piscina sem fundo, mas algo dentro de mim dizia que era apenas a sensação de ter meu corpo reconstruído.
Era bom e confortável, igual um colo de mãe.
Pensei em Miraa, mas nunca a vi como uma mãe de verdade. Ela sempre foi alguém que me ensinou, protegeu e deu conselhos, mas não era a minha mãe. Mesmo que fosse obrigado a chama-la de mãe em público, Miraa era mais como uma irmã mais velha…
Minha mãe era Sônia…
Quem deveria ser Sônia? De onde saiu esse nome? Qual nome? Senti como se tivesse esquecido algo importante…
Então adormeci.