33: Depois de Salvarem um Mundo - Capítulo 163
Ferdinand Argent
Shiduu seguia Felipe, Valmir e a garota chamada Maria pela escadaria de pedra que subia a encosta íngreme da montanha. Um pouco de movimento era bom depois de tanto tempo presos em um barquinho à vela.
Ela se perguntava o que havia acontecido com o capitão do barco, que desapareceu no momento em que chegaram à ilha. Ele não tinha descido do barco, mas também não havia fica a bordo.
O local chamado de “morada dos deuses” parecia ser bastante estranho, mas passava uma sensação de familiaridade, assim como a garota Maria. Mesmo assim havia uma inquietação no coração de Shiduu.
Por mais que estivesse vendo e sentido o local, ela não se sentia como se estivesse realmente ali. Shiduu começava inclusive a duvidar do que estava vendo.
Poderia ser tudo aquilo uma ilusão?
Talvez fosse, mas quando se tratava de deuses e magia, Shiduu não arriscava sequer tentar pensar a respeito. Tudo que restava era seguir o fluxo e tentar se encaixar, fingindo entender o que estava acontecendo, mas sem deixar ninguém perceber que ela estava por fora do assunto.
Ao final da escadaria havia uma entrada. Uma porta escavada na rocha, algo como a entrada de uma caverna, nada digno de ser a porta da frente da casa dos deuses. Shiduu até mesmo precisou se abaixar para entrar.
Como os deuses conseguiam entrar e sair por aquele lugar?
Os pensamentos de Shiduu foram interrompidos quando ela percebeu a forte luz que vinha de todas as direções. Diferente do cenário acinzentado do lado de fora, a parte de dentro era totalmente construída em ouro e prata.
Shiduu abandonou toda a esperança de compreender aquilo de forma lógica. Não havia forma daquilo fazer sentido, ela apenas respirou fundo e continuou andando.
— Está se sentindo bem? — Maria perguntou.
— Apenas cansada… — Shiduu disse em meio a um suspiro.
— Sente-se e descanse, em breve tudo isso vai acabar. — Maria indicou uma cadeira dourada com adornos de pedras preciosas.
Shiduu tinha certeza de que aquela cadeira não estava ali um minuto atrás, mas achou melhor não pensar a respeito e sentou-se. Foi então que ela percebeu que todos os outros já estavam sentados, incluindo Maria, que estava de pé ao lado dela um segundo atrás e agora estava do outro lado do salão.
Ao lado de Maria estava o capitão do barco. Shiduu não sabia com ou quando ele havia chagado ali, mas xingou toda aquela merda mentalmente e deixou rolar. Mas quando ela piscou e viu que todas as cadeiras douradas, antes espalhadas pelo salão, agora estavam em um círculo pequeno, não pôde evitar.
— Puta que pariu! Dá pra parar com essa merda?
— Desculpe, — disse o capitão do barco — às vezes o espaço aqui costuma se distorcer.
— Tá. — Shiduu sacudiu as mãos — Só façam… seja lá o que vão fazer.
* * *
Felipe enfrentou uma longa viagem para chegar até o lugar conhecido como “Morada dos Deuses” e encontrar com aquele que o escolheu para ser o herói da sabedoria. Ele tinha muitas perguntas no início, mas a maioria delas já foram sanadas no momento que chegaram.
Para começar, aquele lugar não era real. No momento que “pisou” no trapiche, Felipe percebeu que tudo aquilo era uma espécie de distorção espacial semelhante a uma dimensão de bolso. Algo assim só deveria existir em teoria e em histórias de ficção, mas ele estava em uma.
Então ele percebeu a existência de duas almas no local. A primeira era Maria, u anagrama para “Miraa”, que estava desaparecida. E a outra alma era a do capitão do barco que os trouxe.
Isso significava que um dos dois deveria ser o Deus da Sabedoria. E não poderia ser Miraa, ou melhor, Maria. Ela possuía o cajado da sabedoria, um dos artefatos divinos mais perigosos. Sem contar que os deuses deveriam estar presos fora da existência.
E essa última afirmação levava ao último dos fatores. Se s deuses estavam fora da existência, então aquela dimensão estava muito além de onde qualquer humano já teria conseguido ir. E isso só atiçava ainda mais sua curiosidade.
Agora estavam os cinco sentados em círculo dentro de um salão dourado. Felipe, Valmir, Shiduu, Maria e o capitão. Felipe tinha a impressão de que as perguntas seriam respondidas em breve sem precisar que ele perguntasse.
— Sejam bem-vindos! — O capitão disse — Meu nome é Fer, eu fui o primeiro rei sobre o Trono de Prata, mas podem me chamar também de Ferdinand Argent. Para que não fique nenhuma dúvida, eu também sou o Deus da Sabedoria, e fui eu quem criou esse lugar.
Isso surpreendeu Felipe. Que o homem ali era o deus que ela buscava, não havia dúvidas, mas o sobrenome dele e o fato de ter sido o primeiro Rei de Prata, isso fez o cérebro de Felipe começar a funcionar rapidamente.
Argente significava “prata”. Alice era filha de Ferdinand Argent, o que significava que um dos deuses já esteve no mundo dos heróis, e ainda deixou uma filha lá.
— Acho melhor contar a história desde o começo. — Ferdinand disse — Vou tentar resumir para focar apenas nos pontos principais:
“Um dia o guardião desse mundo visitou os humanos e escolheu alguns para receberem dons. Os sete reis originais, os sete sacerdotes elementares, os sete guerreiros mais poderosos, os sete mais puros de coração, e três filhos do vazio.
Cada um destes recebeu um dom e um artefato. E depois de algum tempo, o guardião do mundo desapareceu. Usamos o poder que nos foi confiado para proteger esse mundo, como nos fora ordenado. Mas o coração humano carrega a ganância.
Com o tempo, a velhice foi chegando. O medo da morte começou a aterrorizar alguns de nós, e o temor de que nossos herdeiros fossem incapazes de dar seguimento à longa jornada que tivemos, fez com que agíssemos sem pensar.
Nem mesmo com todo o conhecimento que achei ter acumulado fui capaz de fazer a coisa certa. Eu sabia que estava errado, mas insisti no erro. Então nos juntamos para roubar o segredo da imortalidade e prendemos o guardião desse mundo em uma falha geológica.
Foi a partir desse momento que as coisas começaram a dar errado.
Nossos poderes vinham do guardião, e quanto mais ele vai enfraquecendo, mais esse mundo definha, nossos poderes desaparecem e o fim de tudo se aproxima. Quando pensei nisso, concluí que precisava agir.
Expliquei para meus “irmãos”, os outros deuses, que fizemos a coisa errada, mas eles tinham medo de que tentar consertar poderia colocar tudo a perder. Apenas alguns poucos entenderam a minha posição.
Foi quando pedi a Hermes, o deus do tempo, que roubasse os artefatos dos outros deuses e escondesse em locais aleatórios. Eu só queria a chave do mundo, não me importava com o restante.
Então fui para um mundo diferente em busca de ajuda. O problema era que lá não havia magia alguma, então a chave simplesmente parou de funcionar e fiquei preso por muitos anos”.
— Então foi assim que você conheceu a mãe da Alice? — Felipe perguntou.
— Conhece minha filha? — Ferdinand respondeu com outra pergunta.
— Ela já tentou matar alguns de nós. — Felipe deu de ombros.
— Alice teve uma infância difícil… — Ferdinand abaixou a cabeça —Para entenderem o quem vem a seguir, estejam cientes de que o tempo pode ser relativo…
— Einstein disse isso. — Valmir retrucou.
— Eu quem ensinou isso a ele. — Ferdinand deu um sorrisinho — Quando viajei entre os mundos, descobri que eles não seguem o mesmo fluxo de tempo. Às vezes o tempo passa mais rápido aqui, outras vezes lá. Mas agora os dois mundos estão ancorados devido à presença de heróis, então o tempo passa igual.
“Mas os quase cem anos que passei lá foram apenas vinte anos aqui. Enquanto eu estava desesperado para encontrar uma forma de voltar, após conseguir compreender a tecnologia daquele mundo, nesse mundo nada acontecia.
Então eu conheci um jovem estudante de antropologia chamado Haroldo. Ele estava fazendo doutorado na França e acabara de casar com uma jovem que estudava engenharia elétrica, Sônia. Ficamos amigos e eu convenci eles de estudar a chave do mundo.
É claro que eu não contei o que realmente era, disse apenas que havia encontrado em uma ruina antiga e parecia ser magnética. Isso foi para despertar a curiosidade de Sônia, ela era jovem, inteligente e sonhava em criar uma forma de energia sustentável.
Poucos anos depois, a minha esposa tinha morrido no parto, eu tinha que cuidar da minha filha e ainda buscava uma forma de voltar, e uma noite Haroldo me ligou avisando que Sônia havia feito uma descoberta. Aparentemente ela conseguiu acessar a energia mágica dentro da chave e reproduzi-la artificialmente.
Eu estava muito animado com a possibilidade de voltar, então peguei minha filha, que já estava com treze anos e fui para o Brasil. Mas as coisas não saíram como eu esperava.
Quando a chave entro em contato coma fonte de energia, houve uma reação inesperada e fomos jogados em diversas direções. O primeiro foi Haroldo, ele chegou aqui quatrocentos anos atrás. Depois foi a Maria Julia, a filha mais velha de Haroldo, ela chegou cerca de quarenta anos atrás. Eu cheguei vinte anos depois.
O tempo e o espaço ficaram uma bagunça, mas qual foi minha surpresa quando vi que Haroldo havia conseguido resolver em parte o problema que eu tentava sanar. E mesmo após tanto tempo, ele ainda estava vivo.
Ele dizia que não poderia morrer sem ver seu filho mais uma vez.
Então, quase treze anos atrás, o filho mais novo e outras 32 crianças da mesma idade dele chagaram do nada. Eles tinham os mesmos poderes dos deuses, e um deles estava conectado a mim”.
— Então… — Felipe se virou para a garota chamada Maria — Você é Miraa, e senhora do Leste, mas também é Maria Julia Lima, filha de Sônia e Haroldo, irmã mais velha de André.
— Essa sou eu. — Maria Julia respondeu com um sorriso calmo.
— Poderia simplesmente ter dito isso desde o começo. — Shiduu reclamou.
— Que babado! — Valmir coçava o queixo.
— E quanto a salvar esse mundo? — Felipe perguntou a Ferdinand — O que mais você está escondendo?